O jornalista Hélio Doyle teve uma passagem meteórica pela EBC: tendo sido nomeado presidente em fevereiro, foi demitido em outubro, depois de ter repostado tuíte do cartunista Carlos Latuff, que dizia “Para apoiar Israel não é preciso ser sionista, basta ser idiota”.
Pois bem. A Comissão de Ética Pública do governo houve por bem manter o pagamento de salários ao ex-presidente por 6 meses, em função de potenciais “conflitos de interesses”. Em outras palavras, o jornalista poderia usar dados sigilosos e estratégicos da EBC para a iniciativa privada. Fico cá imaginando que interesse teriam as empresas jornalísticas nos dados dessa potência da mídia brasileira, que tem no traço a marca de sua audiência.
O fato é que o petismo não abandona os seus. Ao ser obrigado a demitir o presidente da EBC pela pressão da opinião pública, o ministro da Comunicações, Paulo Pimenta, deve ter prometido a continuidade da sinecura ao jornalista. Afinal, um defensor da democracia não merece ficar na chuva. A Comissão de Ética cumpriu o seu papel e, de maneira muito ética, determinou o pagamento do salário de R$ 35 mil por mais 6 meses.
Idiotas somos nós.
PS.: Bolsonaro teve 4 anos para privatizar ou fechar a EBC. Não o fez. A culpa é dele.
A posse de presidentes argentinos de campo ideológico oposto ao do presidente brasileiro é um fenômeno recente. Até a posse de Macri, todos os presidentes argentinos eleitos desde a redemocratização eram mais ou menos do mesmo campo ou, pelo menos, neutros em relação ao presidente brasileiro. Assim, Sarney compareceu à posse de Menem em 1989, FHC foi à posse de De La Rua em 1999, Lula foi à posse de Nestor Kirshner e Cristina Kirshner em 2003 e 2007 respectivamente e Dilma Rousseff compareceu à posse de Cristina Kirshner em 2011.
No primeiro teste de civilidade democrática, Dilma Rousseff saiu-se bem, comparecendo à posse de Maurício Macri em 2015, mesmo com sua amiga íntima, Cristina Kirshner, recusando-se a passar a faixa para o presidente eleito. Pode-se tentar argumentar que Macri é um comunista perto de Milei, mas esse argumento perde força se considerarmos que o ex-presidente argentino apoiou Milei e o está ajudando a montar o governo. Assim, Dilma, mesmo em um ambiente já conflagrado aqui (ela seria impichada 5 meses depois) deu mostras de colocar as prioridades do país acima de suas preferências ideológicas.
Foi Bolsonaro quem inaugurou a agora tradição de não comparecer à posse do presidente do terceiro maior parceiro comercial do Brasil se este for do campo oposto. Alegando “imprevistos de última hora”, enviou o vice-presidente, Hamilton Mourão, para a posse de Alberto Fernandes em 2019.
Lula desceu mais um degrau na picuinha ideológica. O vice-presidente, ao menos, é um representante eleito do povo brasileiro. Sua presença, apesar de não compensar a falta do presidente, ao menos tem alguma carga simbólica. Muito melhor do que mandar o chanceler Mauro Vieira, que não passa, com todo respeito, de um ajudante de ordens graduado do governo.
Diziam que Lula era o contraponto democrático de Bolsonaro. Eu nunca engoli essa. É nessas pequenas coisas que Lula se mostra tão avesso aos rituais democráticos quanto Bolsonaro. Essa era uma oportunidade de marcar a diferença. Como vimos, não somente Lula imitou Bolsonaro, como o superou na incivilidade democrática.
A Receita Federal soltou uma nota que responde à pergunta que fiz no post anterior sobre “o que fez a Receita”. Pelo que entendi, a coisa é a seguinte:
1) Não pode entrar com objetos acima de US$ 1 mil sem declarar (isso já sabíamos)
2) Os oficiais da Receita orientaram as autoridades brasileiras sobre o procedimento de regularização, qual seja, provar que se tratava de objetos de interesse histórico, de modo que pudessem ser incorporados ao acervo da República.
3) O ponto fundamental da nota é o esclarecimento de que não basta uma “iniciativa pessoal”. É necessário “efetivo interesse público”. Deduzo aqui que, em momento algum se conseguiu (ou se tentou) provar que aqueles objetos tinham interesse público.
4. O prazo para produzir tais provas se encerrou em julho/22.
Essa nota, para mim, afunila o caso. Temos dois fatos que precisam ser explicados:
1) Inexplicavelmente, um funcionário do governo tenta entrar no País com um presente diplomático sem declara-lo.
2) Inexplicavelmente, o governo não conseguiu (ou não tentou) provar para a Receita o caráter público das joias, passados 6 meses.
Assim, por mais que se queira caracterizar o caso como “perseguição política” contra Bolsonaro, trata-se de evento muito estranho. Isso porque ainda não entramos no mérito de porque o príncipe árabe decidiu gastar 3 milhões de euros em presentes de cunho claramente pessoal, e não com presentes genéricos, como normalmente acontece.
O caso das “joias da Michelle” tem uma desimportância ímpar para os destinos da nação. Não estaria comentando aqui, não fosse o fato de representar um desafio lógico-dedutivo, ao confrontar duas versões para o mesmo fato. E, confesso, tenho um fraco por esse tipo de desafio.
Vejamos as duas versões. Em comum às duas, temos que, no dia 26/10/21, um assessor do ministro Bento Albuquerque é retido em inspeção de rotina na alfândega, em voo de volta de Riad, em posse de uma caixa de joias no valor estimado de 3 milhões de euros. A partir daí, as versões se bifurcam.
Na versão da imprensa, a receita oferece a opção de declarar aqueles objetos como “acervo do Estado brasileiro”, opção de pronto afastada pelo ministro. A partir daí, teriam se seguido ao menos outras 5 tentativas de liberar as joias: 1) 03/11/21: ofício do Itamaraty à Receita; 2) 03/11/21: ofício de Bento Albuquerque à Receita; 3) 28/12/22: ofício do secretário da Receita para a área de alfândega do aeroporto de Guarulhos; 4) 28/12/22: ofício do próprio presidente Bolsonaro ao gabinete da Receita; 5) 29/12/22: um funcionário da presidência toma um voo da FAB para São Paulo, com o objetivo de liberar as joias.
Na versão dos bolsonaristas (até onde pude entender), há dois ofícios que desmontariam a versão da imprensa. O primeiro, de 29/10/21, do gabinete de documentação histórica da presidência da República para o gabinete de Bento Albuquerque, respondendo a um ofício deste, datado de 28/10/21, afirmando que as joias “…enquadram-se na condição de encaminhamento a este gabinete, para análise quanto à incorporação ao acervo privado do Presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República…”.
O segundo ofício, de 03/11/21, de Bento Albuquerque à Receita (mencionado também pela reportagem), afirma que “… se faz necessário e imprescindível que seja dado ao acervo o destino legal adequado”. Esse “destino legal adequado” seria o acervo da Presidência da República, ainda que não esteja claro no ofício.
Para reforçar essa versão, há também uma suposta carta de Bento Albuquerque para o príncipe bin Salman, de 22/11/21, em que o ministro afirma que os presentes teriam sido incorporados ao “Brazilian official collection”.
A meu ver, há algumas perguntas que precisam ser respondidas, antes que consigamos concluir algo:
1) Por que o assessor de Bento Albuquerque escolheu o “nada a declarar” na alfândega, quando estava carregando o que supostamente era um presente oficial de um governo estrangeiro? Não há procedimentos diplomáticos em casos como esse?
2) Se os agentes da Receita, como afirma a reportagem, deram a opção de oficializar a entrada das joias como “acervo da Presidência”, por que essa opção não foi aceita pelo ministro? Ou essa opção não foi ofertada e as joias foram apreendidas sem que os agentes da Receita aceitassem qualquer argumentação nesse sentido?
3) Onde estão os ofícios da Receita, respondendo aos ofícios do Itamaraty, de Bento Albuquerque e do próprio Presidente? Esses ofícios podem esclarecer por que a Receita continuou a cobrar o imposto e a multa, se o gabinete de Bento Albuquerque tinha deixado claro que se tratava de ”acervo da Presidência” e não ”do Presidente”. Ou a mensagem não foi clara o suficiente, permitindo outra interpretação por parte da Receita?
4) Por que Bento Albuquerque escreveu uma carta para o príncipe árabe, afirmando que os presentes já tinham sido incorporados ao acervo da Presidência, quando ainda estavam retidos na alfândega?
5) O que se passou entre o ofício de Bento Albuquerque à Receita em 03/11/21 e o ofício de Bolsonaro à Receita em 28/12/22? Houve outras tentativas de liberação? Se não, porque se passou mais de um ano sem que esse problema burocrático fosse resolvido?
6) Quantos mais assessores passaram pelo “nada a declarar” da Alfândega com presentes de outros dignatários e não foram selecionados para passar pelo raio X? Onde estão esses presentes hoje? Ou esse foi o único caso desse tipo, e justamente este teve o azar de ser parado pela alfândega?
São muitos os furos nessa história. Acompanhemos o seu desenrolar nos próximos dias.
O que têm em comum os primeiros ministros Viktor Orbán, Boris Johnson e Benjamin Netanyahu com o ex-presidente Jair Bolsonaro? Os quatro representam a direita em seus países. O que os distingue? Os líderes de Hungria, Inglaterra e Israel fizeram questão de liderar pelo exemplo as campanhas de vacinação em seus países. Bolsonaro, não.
De nada adiantou dizer que “quem quis se vacinar teve vacina”, o que é verdade. Disponibilizar vacinas é muito, mas longe de ser o suficiente. Um líder lidera pelo exemplo, e uma campanha de vacinação começa com o exemplo que vem de cima.
Ao jogar a vacinação para o campo ideológico (a direita que defende a liberdade contra a esquerda totalitária que quer impor o que você deve fazer), Bolsonaro se desligou do que queria a maioria da população, que era simplesmente se livrar o quanto antes do vírus. Líderes de direita do mundo inteiro entenderam isso. Bolsonaro, não.
Lula, obviamente, se deixou fotografar sendo vacinado durante a campanha nacional e, ontem, novamente. Não precisa ser muito esperto politicamente para sacar que esse é o contraponto por excelência em relação a Bolsonaro. O ex-presidente perdeu a eleição para um ex-presidiário por meros 1,8% dos votos. Não tenho dúvida de que, se Bolsonaro tivesse seguido o exemplo de seus pares Orbán, Johnson e Netanyahu, a história teria sido diferente. A Covid foi o grande eleitor dessas eleições.
Reza a lenda que Brasília foi construída para isolar os políticos de protestos populares. Verdadeiro ou não, esse “objetivo” foi cumprido relativamente bem até o dia 17/06/2013, quando populares ocuparam a parte externa do Congresso Nacional. Ontem, novamente as sedes dos três poderes foram ocupadas por populares. Os dois eventos, separados por quase 10 anos, guardam semelhança em alguns aspectos, mas são profundamente diferentes em outros.
Os protestos de 2013 pegaram o mundo político e, porque não dizer, os próprios manifestantes, de surpresa. Sem liderança ou pauta definida, os protestos manifestavam uma espécie de “malaise” em relação ao governo de turno e à classe política em geral. O que começara com grupelhos de esquerda protestando contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo, foi engolfado por multidões protestando contra “tudo isso que está aí”. Atordoados, os políticos começaram a prometer tudo para todos, até que as manifestações voltaram ao nada de onde surgiram, e tudo voltou como dantes no quartel de abrantes. Isso é normalmente o que acontece com movimentos sem objetivos claros e, principalmente, lideranças hábeis. A Revolução Francesa só funcionou porque tinha um Robespierre com um plano de ação para o dia seguinte.
Os protestos de 2023 (e aqui incluo os acampamentos em frente aos quartéis e o quebra-quebra de ontem) também surgiram “contra o sistema”. A semelhança com 2013, além da foto de populares no telhado do Congresso, acaba aqui. Ao contrário de 2013, havia um objetivo claro e uma liderança definida, ainda que oculta. O objetivo era pedir e apoiar um golpe militar que reconduzisse ao poder o líder oculto do movimento, Jair Bolsonaro. Antes de continuar, vamos tentar construir a ponte que liga esses dois eventos separados por 10 anos.
Havia, como dissemos, um mal-estar generalizado contra a classe política. Este mal-estar só fez aumentar e explodir com as revelações da operação Lava-Jato. O movimento pró-impeachment de 2015/2016 foi uma extensão dos protestos de 2013 e, a seu exemplo, apartidário. Nesse movimento, havia uma minoria que pedia um golpe militar. Eram caminhões de som menores, que ficavam na periferia das manifestações. O núcleo do movimento, formado por grupos como o MBL e o Vem Pra Rua, defendia uma saída institucional, o que acabou ocorrendo. Mas os grupos golpistas estavam sempre ali, como relíquias de um passado distante.
O caráter apartidário desses movimentos era o sinal evidente de que qualquer político que se mostrasse desvinculado do sistema tinha grande chance de sucesso. Bolsonaro levantou essa bandeira com rara habilidade, encarnando os ideais dessa espécie de “limpeza” das instituições. O seu anti-petismo, na verdade, era um anti-sistema. Notem que a ojeriza dos bolsonaristas nunca se limitou ao PT. O PSDB sempre foi “o parceiro do PT”, o centrão só se movia por dinheiro, o STF só tinha bandidos, os governadores eram sabotadores. Nada prestava, a não ser Bolsonaro.
Jair Bolsonaro, portanto, foi o underdog que, como herói improvável, apareceu como o líder daquela franja golpista que mal aparecia nas manifestações pelo impeachment. Tendo uma parcela firme, ainda que minoritária, do eleitorado a seu lado, a lei da polarização fez com que Bolsonaro obtivesse o apoio de outras parcelas da população que não comungavam de suas convicções anti-sistema. Uma minoria, assim, tornou-se uma maioria, e ele foi eleito em 2018 e perdeu por pouco em 2022.
Chegamos, então, a janeiro de 2023. Bolsonaro perdeu as eleições e aquela franja se reuniu na frente dos quartéis, pedindo um golpe militar. E ontem, enfim, partiu para as vias de fato, uma alegoria perfeita da retórica anti-sistema. Cada parte do patrimônio público depredado é expressão física desse discurso.
Obviamente, as instituições brasileiras estão doentes. As manifestações de 2013 e a ascensão de um sujeito como Bolsonaro indicam alguma falha no sistema. No entanto, também é óbvio que qualquer “solução” por fora do sistema tem chance zero de prosperar. Quando muito, eventos como o de ontem só servem para deixar claro a que ponto pode chegar o discurso anti-sistema, o que somente fortalece o mesmo sistema, o contrário do objetivo declarado das manifestações.
Por fim, há um líder inconteste do ocorrido. Por omissão e abuso de mensagens dúbias, o ex-presidente levou essa franja golpista a acreditar que algo poderia acontecer. Na medida em que foi ficando claro que nada aconteceria, só restou o ato de desespero que testemunhamos ontem. Bolsonaro foi o político que empunhou a bandeira anti-sistema, e sua retórica se materializou na depredação de ontem. Ele é o responsável último, senão juridicamente, pelo menos, politicamente.
Mas, não nos iludamos, prender Bolsonaro e os responsáveis pela depredação de ontem não irá pacificar o país. É preciso entender o que gerou esse fenômeno. Caso contrário, estaremos fadados a repeti-lo.
Em 25/06/2021, publiquei um post curto, com apenas duas frases: “Bolsonaro passando a faixa presidencial para Lula. Alguém consegue imaginar a cena?”
Não, era uma cena inimaginável. E não vai ocorrer. O ainda presidente Bolsonaro voou para os Estados Unidos, longe da cerimônia de posse do presidente eleito.
Os democratas do país repudiam o último ato do presidente. A passagem da faixa é uma liturgia da democracia, em que o presidente que sai reconhece a legitimidade do presidente que entra. A decisão de Bolsonaro somente confirma o que todos já desconfiavam: Bolsonaro não é um verdadeiro democrata.
Ocorre que ritos democráticos somente são plenos de sentido quando temos uma democracia plena. E a nossa democracia pode ser tudo, menos plena.
Os democratas do país encontraram em Bolsonaro o espantalho perfeito, que representa a face anti-democrata da nossa democracia. Não admitem que Bolsonaro é apenas a encarnação conveniente do profundo déficit de democracia que o Brasil vive hoje.
No mesmo dia em que meia dúzia de aloprados queimava ônibus e carros em Brasília, a não muitos metros dali, ministros do TSE confraternizavam com o presidente eleito na casa de um advogado com interesses na mais alta corte do país. Os carros e ônibus em chamas eram apenas a alegoria da verdadeira demolição da democracia que se dava no sambão do advogado. Muitos litros de tinta foram gastos demonizando os aloprados, enquanto nada se publicou sobre o convescote dos respeitáveis representantes da democracia brasileira. Os aloprados fizeram o papel do espantalho conveniente.
Nas últimas eleições, concorreu um candidato que teve os seus direitos políticos restaurados com base em mensagens hackeadas ilegalmente. O candidato havia sido condenado unanimemente por quatro juízes, e a legalidade de suas sentenças havia sido confirmada pelo mais alto tribunal penal do país, o STJ. A isso chamaram de Estado Democrático de Direito.
O partido do vencedor das eleições protagonizou os dois maiores esquemas de corrupção do país nos últimos 20 anos, os dois com o objetivo de comprar apoio no Congresso. Os nossos democratas não acham que isso seja suficiente para banir este partido da nossa cena política. Pelo contrário, este partido é tratado como um ator legítimo de nossa democracia.
Bolsonaro não vai passar a faixa para o seu sucessor. Ele não entende como esses rituais são simbolicamente importantes para a manutenção de um saudável ambiente democrático. Dele não se esperaria outra coisa. Afinal, Bolsonaro não é um verdadeiro democrata.
O que nossos verdadeiros democratas se recusam a ver, como quem vira a cara diante de um ser repugnante, é que Bolsonaro é apenas a encarnação de nosso déficit democrático. Nossos democratas acreditam que, livrando-se dele, estarão se livrando desse déficit, como quem purga um pecado. Iludem-se. Bolsonaro vai-se embora, mas quase 50% do eleitorado fica. Um eleitorado cansado de um simulacro de democracia.
A faixa não transmitida é apenas mais um tijolo que cai na grande obra de depredação da nossa democracia.
O que é esse tal “mercado”, que fica “nervoso” por nada? Se pudéssemos identificar o “mercado”, talvez pudéssemos levá-lo para algumas sessões de psicoterapia que o ajudasse a manter a calma e não surtasse por qualquer bobagenzinha. Isso só “atrapalha o Brasil”, como já disse o nosso quase ex-presidente, com o qual certamente o nosso futuro presidente concordaria em gênero, número e grau.
Ontem, um tarimbado comentarista da Globo News afirmou que o mercado é “bolsonarista” e, por isso, teria ficado “nervoso” com as falas de Lula. Essa é nova.
Mas o que é, afinal, esse tal “mercado”? O mercado, muitas vezes, é confundido com os seus operadores. A “Faria Lima”, sede de muitos bancos de investimentos e gestores de recursos, seria a encarnação do mercado. A questão é que os operadores cuidam do dinheiro alheio, e precisam prestar contas do bom retorno desse dinheiro. Desde o poupador em caderneta de poupança até o mega investidor em startups de tecnologia, todos querem o seu dinheiro de volta algum dia com algum retorno. E, do outro lado da mesa, desde o tomador de um pequeno empréstimo consignado até a grande empresa que emite uma debênture para financiar empréstimos de longo prazo, querem ter disponíveis linhas de crédito a taxas módicas. No meio, os operadores do mercado financeiro tentam juntar as duas pontas. Esse é o tal do “mercado”.
Ocorre que o governo, com sua dívida de quase R$ 6 trilhões, com 25% disso vencendo em menos de um ano, é, de longe, o maior player do “mercado”. Para se ter uma ideia, as operações de crédito dos bancos somavam, em setembro, R$4,7 trilhões. Ou seja, o montante de dinheiro que os bancos emprestam para empresas e pessoas físicas no país é menor do que o montante emprestado para o governo.
Como se não bastasse, o Estado é o monopolista da emissão do dinheiro. Então, além de ser o maior tomador de empréstimos do país, o governo, no limite, pode rodar a maquininha para “pagar” as suas dívidas, gerando inflação. Claro, há regras institucionais que impedem esse tipo de coisa, mas o que são “regras institucionais” em um país onde a lei não vale a tinta em que é escrita?
Portanto, o “mercado” fica ”nervoso” não porque tenha algum desvio psicológico ou porque seja bolsonarista, mas porque a metade do mercado que não é o governo não fica muito confortável com os movimentos e intenções do dono do jogo. Os operadores do mercado, confundidos com o próprio, apenas executam aquilo que seus patrões, os investidores, querem. No final do dia, tudo se resume a se proteger do governo e sua maior arma de destruição em massa: a inflação.
Para terminar, não posso deixar de registrar um curioso fenômeno sociológico: bolsonaristas que atribuíram o movimento de ontem às falas desastrosas de Lula, foram os mesmos que execraram o mercado quando os preços reagiram ao furo no teto de gastos ou às intervenções na Petrobras; e vice-versa, os mesmos petistas que atribuíam o nervosismo do mercado à irresponsabilidade do governo Bolsonaro, agora chamam o mercado de “bolsonarista” por ter tido a mesma reação diante das falas de Lula. Em ambos os casos, o “mercado” foi visto como “sabotador” ou como “arauto do desastre”, a depender do lado.
A coisa é muito mais simples: se o governo faz a coisa certa, o mercado compra; se o governo faz a coisa errada, o mercado vende. O resto é narrativa.
O presidente deu o ar da graça ontem, finalmente, após quase 48 horas do anúncio do resultado da eleição. Não admitiu explicitamente a derrota, mas autorizou, segundo o seu ministro da Casa Civil, o início da transição de governo.
Em sua curtíssima manifestação, Bolsonaro levantou apenas um ponto: a injustiça do resultado eleitoral e o direito de manifestação de seus apoiadores, ainda que tenha condenado seus métodos.
Já escrevi ontem sobre os “métodos” de manifestação usados pelos bolsonaristas, e não precisa o presidente vir dizer que eles têm “direito” a se manifestar. O direito de manifestação é garantido pela Constituição. Vou me ater, portanto, ao ponto da “injustiça”.
O presidente não especificou porque considerou “injusto” o resultado eleitoral. Podemos apenas, portanto, elocubrar sobre as suas razões. Consigo pensar em três: 1) O STF ter permitido que Lula concorresse ao levantar as suas condenações, 2) O TSE ter agido de maneira parcial durante a campanha, apoiando implicitamente o seu adversário e 3) Ter havido fraude na apuração dos votos.
Começando pelo terceiro ponto, é de se notar que a palavra “fraude” sumiu do discurso de Bolsonaro e das redes bolsonaristas. O ministério da defesa (órgão do Poder Executivo) foi destacado para fazer uma “auditoria paralela”, e até agora não se manifestou. Ou seja, para aqueles que, como eu, achava que a carta da fraude seria usada, foi uma surpresa positiva. Ao menos essa questão mais, digamos, técnica, foi descartada. Sobraram as duas hipóteses iniciais, que são políticas.
Antes de comentá-las, vou trazer aqui de volta o gráfico que, para mim, mostra tudo e não esconde nada: a popularidade líquida dos governos (ótimo/bom menos ruim/péssimo).
Nos pontos em vermelho, temos a popularidade líquida de cada governo no mês da eleição. Observem que, em todos os casos em que houve a reeleição do incumbente (1998, 2006 e 2014) ou a eleição do sucessor do mesmo partido (1994 e 2010), a popularidade líquida estava positiva. Se Bolsonaro fosse eleito, seria a primeira vez que um incumbente seria reeleito com popularidade líquida negativa. Ele quase chegou lá, porque sua popularidade melhorou com a campanha eleitoral e com as “bondades eleitorais”, mas não foi o suficiente para ultrapassar essa barreira.
Qualquer outra explicação para a derrota eleitoral do presidente precisaria justificar porque a maioria dos eleitores deveria reconduzir ao cargo um presidente impopular. Eu mesmo, que acabei votando em Bolsonaro, acho seu governo, no máximo, com muito boa vontade, regular. Na área econômica, conquistas como a Reforma da Previdência, a independência do BC e o marco do saneamento são ofuscadas pela depredação do teto de gastos e pela sabotagem da Reforma Tributária ampla que estava sendo discutida no Congresso. Sem contar a sabotagem da privatização do Ceagesp, coisa atravessada na garganta dos paulistanos. E olha que estou deixando de fora questões não econômicas, como a vacinação contra a Covid, em que Bolsonaro fez de tudo para desacreditar a campanha, inclusive fazendo questão de não se vacinar.
Acima estão percepções que construí ao longo dos últimos 4 anos. Cada um terá as suas próprias, e o resultado final estará no gráfico acima. Bolsonaro colheu o que plantou, e isso não tem nada a ver com o STF ou com o TSE.
O STF devolveu os direitos políticos a Lula, e isso pode ou não ter sido justo. O ponto é saber o quanto isso influenciou nas eleições. Pode ser, inclusive, que um outro candidato que não Lula tivesse um resultado ainda melhor. Quem sabe? Em 2018, no auge do antipetismo, com Lula na prisão e Bolsonaro ainda uma promessa, Haddad obteve 45% dos votos válidos. O fato é que, por mais que tenha sido injusta a ação do STF (e “injustiça”, neste caso, é um termo relativo, porque, para muitos, a prisão de Lula é que tinha sido injusta), é realmente difícil relacionar este evento com o resultado das eleições.
Com relação ao segundo ponto, penso que um teórico “apoio” do TSE ao candidato Lula teria efeito muito limitado sobre a votação. O caso das inserções transferidas para Lula como direito de resposta, por exemplo, ignora todo o resto, inclusive a campanha nas redes sociais, que foram o motor da vitória de Bolsonaro em 2018. O problema de Bolsonaro não foi não ter o tempo de TV, foi não ter o que mostrar no tempo de TV, a não ser denegrir o seu adversário. Portanto, mesmo que o TSE tenha implicitamente apoiado Lula, avalio que este “apoio” teria um efeito muito limitado sobre o resultado final da campanha.
Como todo time que perde campeonato, são muitas as teorias levantadas para justificar o mau resultado, inclusive o pênalti não dado pelo juiz. O fato nu e cru, no entanto, está no gráfico acima: Bolsonaro não tinha popularidade suficiente para se eleger. O resto é desculpa de perdedor.
Bom dia, amigos! Pousei ontem depois de duas semanas de férias no Japão (um post a respeito da viagem está a caminho!). Hoje, depois de uma noite de sono reparador e recuperado de dois voos intercontinentais seguidos e 12 horas de diferença de fuso, volto para falar daquilo que interessa.
O Estadão está, hoje, lamuriento. Sua manchete chama a atenção para a polarização que tomou conta do país, seu editorial clama por um “pacificador” e entrevista do cientista político Bolívar Lamounier, tucano clássico, transpira pessimismo por todos os poros em relação à capacidade do próximo presidente de “unir” o país.
Vou falar o óbvio: só existem duas opções, e vivemos em um sistema político em que “the winner takes all”. Ou seja, literalmente metade do país será governado por alguém visto como intragável. Aliás, mais da metade, se considerados os votos nulos e as abstenções. Este é o sistema em que vivemos e a única “solução” seria uma guerra civil seguida pela secessão do país.
Qualquer dos dois candidatos disponíveis não será capaz de unir o país. Em primeiro lugar, porque ambos vivem da demonização do outro. E, em segundo lugar, porque essa é uma utopia que não ocorre em nenhuma democracia. Unanimidade em torno de um projeto político somente é possível em regimes autoritários, em que o lado discordante é calado. Portanto, vamos deixar de lado as utopias e lidar com a realidade mais rasteira: Bolsonaro ou Lula será o nosso presidente nos próximos 4 anos, em um ambiente beligerante, em que o outro lado não deixará de fazer oposição feroz.
Uma pequena digressão antes de continuarmos. Ontem pousei em Guarulhos às 6 da manhã e, antes de voltar para casa, passamos por uma padaria famosa aqui em São Paulo para tomar um café. Foi triste. O serviço foi péssimo. O despreparo da mão de obra era evidente. Havia muitos empregados fazendo o serviço que poderia ser feito por muitos menos se houvesse mais eficiência. Estava clara ali a tragédia nacional. Eu estava vindo de um país com renda per capita 3 vezes maior do que a do Brasil. Isso significa que cada japonês consegue produzir 3 vezes mais do que cada brasileiro. Ou, de outra forma, cada japonês faz o serviço de 3 brasileiros. Na padaria japonesa, se existisse, seriam necessários 3 vezes menos funcionários para oferecer o mesmo nível de serviço. Isso acontece porque a mão de obra é muito melhor preparada, além de serem disponíveis meios de produção e de administração mais eficientes. PIB per capita não é apenas uma medida de riqueza, mas antes e principalmente, trata-se de eficiência. Eficiência que se traduz, no final do dia, em mais riqueza para todos.
Tendo sentido na pele o que significa viver em um país de renda média, não pude deixar de pensar o que nos oferecem os dois candidatos em relação ao aumento da eficiência. Não estou aqui falando de corrupção, empatia, pendores democráticos. Refiro-me especificamente à capacidade de ambos os candidatos de levar o país para o próximo nível em termos econômicos.
Dos dois candidatos, Bolsonaro representa um projeto econômico mais próximo daquilo que acredito estar na direção correta. As limitações do atual presidente são evidentes, não preciso gastar verbo aqui para descrevê-las. O presidente e as atuais lideranças do Congresso fizeram todo o necessário para sabotar a credibilidade da única regra fiscal que temos, o ministro da fazenda prefere a CPMF a uma reforma tributária ampla e as constantes mudanças na direção da Petrobras certamente não contribuíram para o ambiente econômico. Trata-se, afinal, de um populista, e não dá para esperar muito de um populista.
No entanto, por mais deletérias que tenham sido suas intervenções na economia, há uma diferença fundamental de natureza em relação ao ideário do PT, que nos legou a maior recessão da história do Brasil. Minha série sobre a economia na era PT faz uma autópsia desse tempo, e as manifestações de Lula a respeito indicam que nada aprenderam. Portanto, podemos esperar que tentem mais forte, usando todos os instrumentos disponíveis para intervir na atividade econômica, com os resultados conhecidos.
Por isso, meu voto vai para Bolsonaro, com a consciência de que está longe de ser o ideal. Reconheço que considerações de outras naturezas que não a econômica podem levar ao voto no candidato do PT, e respeito a escolha de cada um de acordo com a sua própria visão de mundo, assim como espero que respeitem a minha. Respeito mútuo, mais do que uma utópica concordância em torno de um projeto único, talvez seja o que esteja mais faltando em nosso país.
Este voto, obviamente, não me tirará o direito de criticar um próximo governo Bolsonaro, se eleito, em todos os seus aspectos criticáveis, como sempre fiz por aqui. Afinal, não é o voto que define o direito à crítica, mas o simples fato de ser cidadão.