Inversão de papeis

Ainda sobre salários de homens e mulheres.

Em determinada altura do debate, Bolsonaro é questionado por Meirelles sobre a política salarial para as mulheres. Bolsonaro responde que isso já está na CLT, e a lei precisa ser respeitada. Meirelles insiste na réplica, dizendo que a lei, apesar de existir, não é cumprida, e que, no seu governo, este assunto merecerá especial atenção.

Então acontece, na minha visão, a inversão dos papeis que normalmente associamos a Bolsonaro e a Meirelles. Em sua tréplica, Bolsonaro insiste que a lei deve ser cumprida. Mas chama Meirelles de demagogo, ao querer explorar esta questão para jogar as mulheres contra ele. Insiste, nesse sentido, que o governo não tem nada que se meter na vida das empresas.

Essa questão da diferença salarial entre homens e mulheres é muito complexa. Não conheço estudo que comprove, controlando por todas as variáveis relevantes, esta diferença. Pode existir tal estudo, reconheço minha ignorância neste assunto. E também não estou dizendo que a diferença não exista. Estou apenas supondo que, se existe, pode ser explicada por outras variáveis que não o gênero. Como eu disse, a questão é muito complexa para se prestar a tratamentos demagógicos.

Mas o ponto não é se existe ou não a diferença. O ponto é que, se existe esta diferença, pode haver uma explicação econômica por trás, que deve ser investigada. Acontece que este debate não está no plano econômico, mas sim, sociológico. Os empresários pagariam menos para as mulheres por puro preconceito, e não por razões econômicas. Aí, não tem jeito, só uma lei para resolver.

O que Bolsonaro diz, por incrível que pareça, tem muito mais bom senso do que o que Meirelles diz a respeito do assunto. O capitão afirma que o governo não deve se meter na vida das empresas. Estamos cansados de ver leis que tornam a vida dos empresários um inferno e que, no limite, impedem a atividade econômica. Uma lei que promovesse a igualdade de salários entre homens e mulheres na marra seria tão complexa, envolveria tantas variáveis, seria tão difícil de implementar, que apenas faria a festa dos fiscais do trabalho, sem resolver realmente o problema.

E não resolveria por um motivo muito simples: o problema tem natureza econômica, não sociológica. No limite, o empregador deixaria de empregar mulheres, por absoluta incapacidade de cumprir a lei. O passo seguinte seria criar cotas para mulheres, em mais uma intromissão do Estado na vida das empresas. Curioso que o “estatista” Bolsonaro esteja defendendo a liberdade das empresas de atuarem de acordo com a lógica empresarial, e o “liberal” Meirelles esteja defendendo a intervenção do Estado na vida das empresas apenas para supostamente ganhar alguns votos de mulheres e ficar bem com o politicamente correto.

Não estou aqui defendendo uma ou outra visão. Estou apenas chamando a atenção para a inversão de papeis: o “populista” Bolsonaro assumindo posições pouco populares e indo um pouco além da platitude “não deve haver nenhuma discriminação”, e o “estadista” Meirelles defendendo medidas demagógicas de implementação pra lá de complicada. Muito interessante.

Fake news com pedigree

Curioso como são as percepções.

Eu assisti ao mesmo trecho do debate que Vera Magalhães descreve acima, e tive uma impressão completamente diferente.

Bolsonaro estava respondendo a uma questão sobre as mulheres feita por Marina. Em determinado momento, Marina tenta interromper a fala de Bolsonaro, o que não estava previsto nas regras do debate. Foi o único incidente desse tipo na noite. Bolsonaro interrompeu sua resposta para chamar a atenção de Marina sobre o cumprimento das regras.

Qual foi minha percepção? A de que Marina não aguenta pressão e pode espanar na primeira crise de governo. Já Bolsonaro, descontando-se sua chucrice, se mostrou senhor da situação. Já Vera Magalhães viu “pressão” sobre Bolsonaro, assim como de resto o próprio Estadão, que estampou esse embate na capa.

Bem, “pressão” sofreram todos os candidatos que contam, e não acho que Bolsonaro tenha se saído pior ou melhor ao lidar com isso. Como eu disse ontem, não acho que ele tenha ganhado ou perdido votos depois do debate.

Mas essa é a minha percepção, e Vera Magalhães pode ter outra, sem problemas. O que não pode é espalhar fake news, como destacado no texto acima.

Fui ver o tal programa com a Luciana Giménez. É fácil de achar, está no YouTube. A pergunta era essa: “você disse que mulheres devem ganhar menos que homens porque engravidam. Confirma?”

Bolsonaro então se justificou dizendo que o que ele havia dito para o repórter do jornal é que empregadores haviam dito isso para ele, e que o repórter havia colocado isso na conta dele.”

Ok,Bolsonaro pode estar inventando isso. Ainda que, do jeito que ele defende suas ideias, por mais polêmicas que sejam, parece-me que ele não teria dificuldade em confirmar se fosse verdade. Mas sigamos, o problema vem em seguida.

Não satisfeita, como boa jornalista, Luciana pressiona Bolsonaro, perguntando se ele próprio achava aquilo certo ou errado. Depois de enrolar um pouco, Bolsonaro diz: “Eu pagaria o mesmo sem problemas, tem muita mulher que é competente”. A primeira parte sai mascada porque ele fala rápido e, principalmente, porque a última parte da resposta, “tem muita mulher competente” é repetida alto por Luciana, como se fosse uma confissão de machismo. Ela repete com ênfase: “Tem muita mulher competente! Olha o que você acabou de dizer Bolsonaro! Você é um ogro!” Ora, se ele tivesse dito que pagaria menos, isto é que seria o foco da atenção, e não a frase “tem muita mulher competente”. Luciana pega essa frase porque não há mais nada de concreto.

Podemos até discutir se o que Bolsonaro disse transpira machismo ou não. Mas ele não disse, como afirma Vera Magalhães, que acha certo que mulheres recebam menos que homens, “apesar de” existirem mulheres competentes. Isso é militância sobrepujando-se ao jornalismo, é fake news com pedigree.

A democracia nos garante a escolha do candidato que melhor (ou menos pior) se adeque às nossas convicções e desejos. Mas deixa de funcionar se é baseada na mentira.

PS.: Bolsonaro não é meu candidato. Mas a imprensa, desse jeito, está fazendo um esforço danado para que eu considere essa possibilidade, talkey?

Um programa de governo liberal

Dei uma olhada no programa de governo de Jair Bolsonaro, especificamente as propostas na área econômica. Vou listar apenas as propostas concretas, não o “dever ser” comum a todos os candidatos, e comentar.

Proposta: criação do Ministério da Economia, que abarcaria os atuais Ministérios da Fazenda, Planejamento e Indústria e Comércio.

Comentário: tudo que venha para diminuir a estrutura burocrática do Estado é bem-vindo. Mas a redução per se de ministérios tem apenas um valor simbólico, importante sem dúvida, mas que não garante a diminuição da máquina.

Proposta: logo no início do programa, encontramos a proposta de buscar superávit primário que equilibre a relação dívida/PIB no espaço de tempo mais curto possível. Mais à frente, a coisa fica mais específica: equilibrar as contas no primeiro ano e fazer superávit primário no 2o ano.

Comentário: o ajuste seria draconiano, algo equivalente, em termos políticos, ao que Collor fez ao confiscar a poupança no início do seu governo. Não estou aqui comparando as duas coisas, estou apenas chamando a atenção para a dificuldade política de se fazer isso.

Proposta: reduzir em 20% a dívida pública por meio de privatizações.

Comentário: a dívida pública está em aproximadamente R$ 3,7 trilhões. 20% somaria R$ 730 bilhões. A Petrobras seria, de longe, a empresa mais valiosa, e arrecadaria algo como R$ 100 bilhões. Mas a Petrobras não será privatizada. Fico imaginando qual foi a conta para chegar nesse montante.

Proposta: orçamento base-zero (o montante gasto no passado não justifica os recursos demandados no presente).

Comentário: boa proposta, mas a implementação é difícil, é necessário um processo orçamentário muito mais trabalhoso. É preciso muita vontade política para a implementação.

Proposta: introdução paulatina do regime de capitalização para a Previdência.

Comentário: se pudéssemos zerar a conta de todo mundo e começar tudo de novo, este seria o melhor regime. Mas o problema é que os novos entrantes no regime pagam as pensões dos que se aposentam. Sem esses novos entrantes, que optariam pela capitalização, abre-se um rombo na previdência antiga. O programa aponta a criação de um “fundo” para custear este rombo. A origem do dinheiro para constituir este fundo não é especificado pelo programa. Inclusive, mais à frente, a proposta diz que haverá redução da tributação sobre salários. A conta não fecha.

Proposta: renda mínima universal.

Comentário: bom programa, uma extensão do Bolsa Família.

Proposta: reforma tributária.

Comentário: só coloquei aqui porque poderiam pensar que esqueci. Existem só desejos genéricos de reforma tributária, nada de realmente concreto.

Proposta: independência formal do Banco Central.

Comentário: show.

Proposta: carteira de trabalho verde-amarela, com menos direitos trabalhistas e menos impostos.

Comentário: show. Eu optaria no mesmo dia da implantação.

Proposta: redução de alíquotas de importação e barreiras não-tarifárias.

Comentário: show. Sem comentários adicionais. Aliás, se isso for verdade, distingue Bolsonaro do Trump em um ponto importante.

Proposta: depreciação acelerada.

Comentário: muito bom, favorece investimentos, mas significa um subsídio que diminuirá o imposto arrecadado das empresas. Parece ir contra o ajuste fiscal.

Proposta: criação do Balcão Único para a criação/fechamento de empresas.

Comentário: muito bom. Temos em SP a experiência do Poupa-Tempo, que funciona muito bem.

Proposta: prazo máximo de 30 dias para resposta final, por parte dos órgãos públicos, de documentação para abertura/fechamento de empresas. Caso não haja resposta neste prazo, a empresa estará automaticamente aberta ou fechada.

Comentário: show.

Proposta: redução gradual das exigências de conteúdo local para a indústria de óleo e gás.

Comentário: muito bom.

Proposta: preços praticados pela Petrobras deverão seguir os preços internacionais, mas com hedge que suavize os movimentos de curto prazo.

Comentário: falar é mais fácil do que fazer. Normalmente quando as flutuações são baixas o hedge é desnecessário e quando as flutuações são altas o hedge é muito caro.

Proposta: acabar com o monopólio da Petrobras sobre toda a cadeia de produção de gás.

Comentário: todo fim de monopólio é bem-vindo.

Comentário final: as propostas econômicas ocupam, de longe, a maior parte do programa. Talvez porque Bolsonaro sabe que precisa ganhar a confiança nesta área de potenciais indecisos. O ponto fraco é justamente como lidar com o déficit fiscal: o programa nesta área é uma mistura de boas intenções com contradições. Dá para dar um desconto, dado que se trata de um assunto complicado mesmo. A direção geral está correta, melhor do que não reconhecer que Houston, we have a problem.

Trata-se de um programa, sem sombra de dúvida, liberal. Resta saber quão sincera e perseverante é a conversão do capitão ao ideário liberal. Pois será necessária muita convicção para obter o apoio do Congresso ao programa e para manter a rota quando os resultados demorarem a aparecer.

O STF que elege Bolsonaro

Ontem, a trinca Gilmar, Toffoli e Lewandovsky fatiou mais um pouco as delações da Odebrecht contra Lula, tirando de Moro as menções, por exemplo, ao “departamento de operações estruturadas” da empreiteira. A coisa foi tão descarada, que fez renascer a esperança do advogado do presidiário de Curitiba.

Depois não sabem porque Bolsonaro não derrete nas pesquisas.

O PSDB perdeu o bonde da história

O Estadão traz uma reportagem sobre a filiação recorde no PSL, o partido de Bolsonaro. A declaração abaixo é de um dos recém-filiados.

Lula ganhou as eleições de 2002 com folga. Sem bolsa-família e sem a máquina do governo. Ganhou no país inteiro, e não apenas no Nordeste, onde ainda estava longe de ser um mito. Dizem que ganhou, entre outras coisas, porque era o candidato “in pectore” de FHC, que teria feito corpo-mole na campanha do candidato de seu próprio partido. Mas isso pode ser apenas uma lenda.

Em 2006, apenas um ano depois do mensalão, Lula se reelegeu. Saiu do quase-impeachment para uma vitória eleitoral consagradora. Aí entra o trecho destacado acima.

O PSDB, com raríssimas exceções, não soube capitalizar o sentimento anti-petista surgido com o mensalão. Digo “surgido” não porque não existisse antes, mas era um fenômeno muito mais restrito. O mensalão mostrou a verdadeira cara desse partido, mas um não sei que de cumplicidade ideológica misturada com o receio de parecer troglodita aos olhos da inteligentzia nacional, fez com que o PSDB colocasse panos quentes sobre o mensalão, sovando o que seriam mais 10 anos de governos petistas.

Hoje, o discurso do PSDB não é muito diferente. “A lei é para todos” é um mote que está longe de satisfazer o anti-petismo. Levar um saco de lixo com a estrela do PT como fez Bolsonaro é o mínimo que se esperava. Não fizeram em 2005, não estão fazendo hoje. Aliás, hoje seria tarde demais. O PSDB perdeu o bonde da história.

Com a corda toda!

País herdou indolência do índio e malandragem do negro, diz Mourão.

O vice de Bolsonaro começou com a corda toda! Nesse ritmo, daqui a pouco o pessoal vai voltar a ter vergonha de declarar voto no capitão.

As estratégias dos candidatos

Reportagem hoje no Estadão traça o perfil dos “irmãos Weintraub”, Arthur e Abraham, assessores de Bolsonaro há mais de um ano.

Professores universitários, os irmãos Weintraub têm larga experiência na iniciativa privada e na academia, e são especialistas em Previdência.

Mas o que me chamou a atenção foi a migração de suas preferências políticas. Em 2014 apoiaram Marina Silva, contra “o roubo epidérmico, o patrulhamento ideológico, o narcotráfico, a ameaça do totalitarismo bolivariano”.

Ora, a migração de Marina para Bolsonaro não se encaixa em uma clivagem “esquerda x direita”. Nada indica que, em 2014, Marina fosse uma alternativa melhor ao “patrulhamento ideológico” ou ao “totalitarismo bolivariano” do que Aécio. Aparentemente, tínhamos uma clivagem “establishment x anti-establishment”, que se acentuou muito nos últimos 4 anos. Somente isso justifica a migração Marina —> Bolsonaro, opostos no campo ideológico.

Se a posição dos irmãos Weintraub indicar uma tendência importante, está clara a estratégia dos candidatos para chegar ao 2o turno:

– Alckmin, estando praticamente sozinho no campo do establishment, deve investir na clivagem “esquerda x direita”, procurando tirar votos da direita que iriam para Bolsonaro. Ana Amélia se encaixa nessa tática, assim como o discurso liberal e de segurança pública.

– Bolsonaro não está sozinho no campo anti-establishment, mas está praticamente sozinho no campo “direita”. Então, deve investir sobre outros candidatos “anti-establishment”, como Marina, atraindo votos como os dos irmãos Weintraub.

– Ciro e o candidato do PT estão no campo congestionado da esquerda, onde também estão Marina e, para os bolsonaristas, Alckmin. Portanto, devem procurar unificar os votos da “esquerda” em torno dos seus respectivos nomes. Ciro especificamente não conseguirá tirar a bandeira de “anti-establishment” de Bolsonaro ou Marina. O candidato do PT, por sua vez, é establishment e, portanto, só lhe resta apostar na clivagem “esquerda x direita”.