O xadrez da eleição paulistana

Bruno Covas já teria definido sua tática para as eleições de 2020: atacar pela centro-esquerda. Para tanto, contaria com centro-avante contratado do PT, o atual secretário da cultura, Ale Youssef.

Não sei se é verdade (essas notinhas costumam expressar mais a vontade de quem as plantou do que a realidade propriamente dita), mas a narrativa orna com a desastrosa administração Covas até o momento.

E Doria?

Bem, esse joga em todas as pontas. É natural que tenha um discurso partidário a mais de um ano das eleições. Afinal, ele conta com a máquina do partido para o seu projeto nacional. Mas certamente dará também seu apoio a Joice Hasselmann, se esta conseguir a indicação pelo PSL de São Paulo. Será um pouco como nas eleições de 2002, quando FHC tinha Lula como seu candidato in pectore e trabalhou muito pouco pela candidatura de Serra.

Doria, assim, manteria a máquina do partido, mas apostaria no cavalo certamente vencedor. Funcionará? A se ver.

Infraestrutura

Era abril de 2013. Estava eu acompanhando uma comitiva de japoneses para reuniões em Brasília. Eles estavam muito animados com as perspectivas do Brasil, que iria sediar a Copa do Mundo no ano seguinte e as Olimpíadas em 2016.

Quiseram visitar o estádio Mané Garrincha, que iria ser o palco de abertura da Copa das Confederações dali a dois meses, justamente em um jogo entre Brasil e Japão.

Quando lá chegamos, o cenário era de desolação. A estrutura estava em pé, mas o entorno parecia um cenário de Mad Max. Uns poucos tratores ainda terraplenavam onde já deveria haver calçadas e rampas de acesso. Os japoneses perguntaram, perplexos, se o estádio ficaria pronto a tempo do jogo de abertura. Respondi: tranquilo, no Brasil as coisas ficam prontas dois meses depois do prazo, mas ficam prontas afinal.

Recordei desse episódio quando li a provocação do governador João Doria a respeito do teórico autódromo do Rio. Sim, o autódromo ficará pronto, à moda brasileira. Resta saber se o chefão da F1 vai realmente querer assumir o risco.

Resultados

Passou quase despercebido: a Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou a extinção de 4 estatais paulistas.

João Doria fez política, tem uma base de apoio na Assembleia, e entregou resultados. Simples assim.

Vai, PSDB!

Aécio Neves perdeu em MG para Dilma Rousseff em 2014. Foi eleito deputado federal em 2018 com a 19a votação do Estado.

O PSDB foi o partido que mais realizou privatizações na história do País. Qual a lógica de retirar o partido da base de apoio do Novo, que tem basicamente a mesma agenda? Existem duas explicações.

Primeiro, a explicação programática. O PSDB foi empurrado pelo PT para a direita do espectro político, contra a vontade de seus caciques tradicionais. É notório o esforço para disputar o eleitor do PT com um discurso “social”, razão pela qual perdeu 4 eleições seguidas. A vitória da direita é a oportunidade para vincar as diferenças e colocar-se no conforto do campo da esquerda. Doria, por outro lado, vislumbra a avenida de oportunidade à direita do espectro político, representado por não-partidos como o PSL, partidos nanicos como o Novo ou partidos ligados ao Centrão, como o DEM. Na visão de Doria, o PSDB pode fazer o contraponto ao PT, agregando a direita em um partido verdadeiramente nacional.

A segunda explicação é fisiológica: Aécio é um cacique em busca de sobrevivência política. O discurso de não “atrelar-se” a um partido nanico vai na linha de manter a “história” do PSDB, onde os velhos caciques ainda mandam e desmandam. O que Aécio e os outros caciques da velha guarda ainda não perceberam (ou fingem não perceber) é que o “velho” PSDB foi dizimado nas urnas. Apegar-se ao passado só interessa a essas velhas figurinhas carimbadas.

A raposa Kassab

A primeira vez que ouvi falar de Gilberto Kassab foi nas eleições para prefeito de São Paulo de 2004. Vice na chapa de José Serra, Kassab assumiu o cargo em 2006, quando Serra saiu para ser candidato a governador. Nos dois anos que transcorreram até as eleições de 2008, Kassab conseguiu emplacar o grande marco da sua administração, a Lei Cidade Limpa, em que se proibiam outdoors e quaisquer outros tipos de publicidade externa na cidade. Foi uma lei bastante popular, que lhe garantiu a reeleição em 2008, contra nada menos que Geraldo Alckmin e Marta Suplicy. E reeleger-se na cidade de São Paulo não é para qualquer um: o último prefeito da cidade reeleito havia sido José Pires do Rio, no longínquo ano de 1928. Costumo dizer que a cidade de São Paulo é uma máquina de moer prefeito.

A aprovação da lei Cidade Limpa foi o que me fez definitivamente prestar atenção em Kassab. Não pela lei em si, mas pela forma como foi aprovada. O prefeito assumiu o cargo em março e já em setembro aprovou a lei. Detalhe: por UNANIMIDADE da Câmara dos Vereadores. Quer dizer, a lei que iria levá-lo à reeleição foi aprovada inclusive com os votos do PT! Ok, tem fisiologismo, toma lá, dá cá, tudo isso faz parte do “prefeiturismo de coalização”. Mas unanimidade? Havia aí um talento para a articulação política que merecia ser acompanhado.

Em 2010, eleito deputado federal, já em março de 2011 Kassab fundou o PSD para cooptar deputados do PSDB e do DEM então insatisfeitos com o fato de serem oposição ao governo Dilma. Ao ser perguntado sobre a posição ideológica do novo partido, Kassab definiu-se como “nem de direita, nem de esquerda, nem de centro”, definição lapidar para o que se convencionou chamar de Centrão.

O PSD foi criado para ser governo. Qualquer governo. Aliou-se ao PT, mas pulou fora do barco no impeachment. Apoiou a candidatura de Alckmin, mas Kassab já anunciou que está pronto a apoiar qualquer projeto do novo governo “pelo bem do país”.

Agora, Kassab faz mais um gambito que merece atenção: será chefe da Casa Civil do governo Doria. Vale lembrar que Kassab é cria de José Serra, de quem foi vice-prefeito, e a quem é ligado até hoje. O PSDB está conflagrado e a ida de Kassab para este posto chave indica que o campo de Serra entrou na órbita de Doria. Além disso, Doria conta agora com um articulador político de primeira, um ponto sabidamente fraco de seu perfil. A entrada de Kassab no gabinete de Doria é mais um sinal das pretensões nacionais do governador eleito de São Paulo.

Por fim, chama a atenção o fato de Kassab não ter nem sequer tentado negociar um cargo no governo Bolsonaro. O PSD, pela primeira vez desde a sua fundação, tem um governo pela frente que promete não trocar cargos por apoio no Congresso. A relação deverá se dar em outros termos, se é que se dará de alguma forma. Só o tempo dirá. Uma coisa, no entanto, parece certa: no dia em que Kassab se tornar oposição, é que o governo acabou.

O erro de Alckmin

Quem me acompanha já leu isso aí em algum lugar.

De qualquer forma, olhando com a perspectiva privilegiada de saber tudo o que aconteceu, parece-me que um discurso raivosamente anti-PT na boca de Alckmin soaria falso. Por um único motivo: pareceria tática eleitoral e não algo sincero, vital. O povo sente isso.

Quando Doria surpreendeu o mundo político ao citar Lula em seu primeiro discurso como prefeito, estava claro que ali surgia uma potencial candidatura presidencial. Ninguém nunca havia ouvido Alckmin desancar Lula daquele jeito. Um discurso desses às vésperas da eleição soaria tremendamente artificial.

Então, olhando para trás, o erro não foi da campanha de Alckmin. O erro foi do próprio Alckmin e do PSDB, que escolheram o candidato errado. O sentimento era o antipetismo e João Doria era quem mais autenticamente encarnava esse sentimento dentro do partido. Pode ser que não ganhasse a eleição, pois o PSDB seria um peso difícil demais para carregar. Mas não tenho dúvida de que seria um candidato bem mais difícil do que Alckmin.

A natureza do escorpião

Ontem, tanto Márcio França quanto Paulo Skaf ligaram para João Doria para cumprimenta-lo pela vitória. Não tenho dúvida de que Doria teria feito o mesmo caso o vencedor do pleito fosse qualquer um dos outros dois.

Aécio ligou para Dilma em 2014, assim como todos os candidatos derrotados nas últimas eleições presidenciais ligaram para os vitoriosos.

O derrotado parabenizar o vitorioso faz parte da liturgia de um processo eleitoral democrático. É sinal de uma oposição que pode ser forte, mas não será desleal.

Haddad não ligou ontem para Bolsonaro. Segundo ele, “porque não sabia como sua ligação seria recebida”. Parece coisa de adolescente, mas é só o cacoete de um partido hegemônico, que não aceita a derrota.

Se Bolsonaro iria ligar para Haddad em caso de derrota? A julgar pelo seu discurso da fraude nas urnas, provavelmente não. Mas isso seria apenas a confirmação de sua imagem anti-democrática.

Haddad, ao contrário, ganhou muitos votos de última hora por representar pessoalmente a imagem da “resistência democrática” ao avanço autoritário. Muitos votaram em Haddad apesar do PT, pois o seu bom-mocismo e seu ar intelectual sempre lhe deram esse ar meio PSDB.

Haddad, ao não parabenizar Bolsonaro, perdeu a chance de ouro de distender o ambiente e se mostrar um verdadeiro democrata. Perdeu a chance de se tornar um líder relevante da oposição. Vai desaparecer no meio da gritaria antidemocrática do PT.

Haddad demonstrou ontem a verdade da velha máxima, a de que o escorpião não perde a sua natureza.