Há um ano, eu comentava aqui artigo do economista Joseph Stieglitz, elogiando o acordo do FMI com a Argentina. Segundo o Nobel, pela primeira vez o FMI estava agindo corretamente, fechando um acordo “flexível”, em que o país não seria submetido a um “arrocho” sem sentido.
Bem, como era previsível, a tal “flexibilidade” não foi suficiente. Fernández vai pedir o penico para o FMI e, para tanto, pediu a ajuda de Biden. Pessoas e governos, quando se trata de dívida, costumam agir da mesma forma: trabalham no limite das possibilidades. Mais “flexibilidade” significa limite maior. E, não tenha dúvida, esse limite será utilizado. Daí, quando acontece um “imprevisto” (no caso, a maior seca dos últimos 90 anos), não há espaço de manobra. Se tem algo previsível, é que sempre ocorrerão imprevistos, seja na vida das pessoas, seja na vida dos governos.
Ao FMI não restará outra alternativa, a não ser ”flexibilizar” ainda mais o maior acordo da história com algum país, no que será novamente aplaudido por Stieglitz e seus amigos. Até que outro ”imprevisto” ocorra, e outra “flexibilização” seja solicitada. Enquanto isso, a lição de casa da austeridade vai ficando para depois, pois sempre teremos Paris, quer dizer, Washington.
Aqui no Brasil, o bolsonarismo tem sido a mais vocal, mas não única, força política a condenar o ativismo do nosso Supremo. Aqui temos um Supremo predominantemente progressista contra um Executivo conservador.
Nos EUA os papeis se invertem: um governo progressista contra um Supremo conservador. O presidente Biden rotulou a decisão da Suprema Corte de anular a Roe vs. Wade de “outrageous”, revoltante. E a Economist faz coro, dizendo que o Supremo não pode ter este tipo de “ativismo”.
No fundo, mais uma vez, não se trata de um problema conceitual sobre as atribuições da Corte Suprema, mas sobre o tipo de decisão que a Corte toma. Se me agrada, está cumprindo o seu papel. Se não me agrada, está sendo ativista. E isso vale para todas as colorações políticas.
Entre 2009 e 2014, os governos Lula e Dilma injetaram mais de R$ 500 bilhões no BNDES. Com o dólar, em média, a R$ 2,00, isso significa algo como US$ 250 bilhões. Este dinheiro não foi utilizado para comprar comida para os pobres, garanto.
Mas não é sobre o dinheiro que quero falar aqui. Nem sobre essa idiotice de matar a fome do pobre dando dinheiro, coisa que nem o nosso “pai dos pobres” conseguiu fazer. Gostaria de focar no termo “essa gente”, usado por Lula.
Existe muita discussão sobre as origens da polarização no país. A palavra tem sido muito utilizada de 2018 para cá. Tive a oportunidade de escrever um post mostrando as estatísticas. Parece que Bolsonaro trouxe a polarização para o país, um conceito supostamente estranho até então.
O uso do termo “essa gente” é a prova acabada de que a polarização é obra de Lula e do PT. Bolsonaro foi apenas a “encarnação” “dessa gente”, que se constituía, até então, como uma massa amorfa que apanhava dia e noite dos campeões da virtude que orbitam o PT. O “eu odeio a classe média” de Marilena Chauí é o corolário natural da postura implícita na expressão “essa gente”. Ocorre que “classe média” não é Jeff Bezos, Joe Biden e Elon Musk. O cara da classe C, que se ferra dia e noite para equilibrar o orçamento, e que vê o fruto do seu trabalho sendo roubado por um assaltante ou pelo governo que usa o seu dinheiro para alimentar uma máquina de corrupção, se inclui no “essa gente”. Esse sujeito acabou nos braços de Bolsonaro.
“Essa gente” é a tradução perfeita de quem se vê acima dos outros homens, arrotando uma superioridade moral que fede a hipocrisia. É bom que Lula continue falando bastante, pois talvez tenhamos esquecido o quanto seu discurso envenenou o ambiente político do país. Já escrevi aqui, e repito: o sucesso de Bolsonaro é o resultado desse discurso.
Joe Biden vai enfrentar os frigoríficos. Ao que parece, estão a explorar sua vantagem de mercado para impor preços mais altos. Mas Joe não vai deixar barato não! Quem esses frigoríficos pensam que são?
Bem, como sempre, fui dar uma olhada nos dados. A tabela abaixo, construída a partir de dados do Bureau of Labor Statistics, mostra a diferença entre a inflação geral e a inflação da carne nos EUA nos últimos 5 anos (sempre medindo a inflação dos últimos 12 meses). Números positivos (em mais verde) significam que a inflação geral foi maior que a inflação da carne, números negativos (em mais vermelho) significam que a inflação da carne foi maior que a inflação geral. Portanto, quanto mais vermelho, mais Biden tem razão (a ligação da cor vermelha com Biden foi completamente não intencional).
O que podemos observar? Em primeiro lugar, agora em novembro (último dado de inflação disponível), de fato, a inflação da carne está bem maior que a inflação geral. Mais precisamente, 9,1 pontos percentuais maior. A inflação da carne nos últimos 12 meses foi de 16,0%, contra uma inflação geral de 6,9%. É a essa diferença que Biden se refere em sua cruzada contra os frigoríficos.
Mas continuemos a observar a tabela. Se a inflação da carne está bem maior agora, já esteve bem menor em vários momentos dos últimos 5 anos. Aliás, observando as áreas verdes, em grande parte do tempo nesse período a inflação da carne foi menor que a inflação geral. Parece que o tal “poder de mercado” dos frigoríficos só se fez presente mais recentemente. Será que houve uma concentração de mercado somente nos últimos 2 anos?
Aliás, concentração de mercado somente é problema se os competidores atuam como um cartel, determinando preços. Mas, aparentemente, não é esse o problema, para o qual, aliás, já existe lei. Grandes mercados são, via de regra, concentrados, até porque os ganhos de escala falam mais alto. O que importa é que haja competição entre as empresas, sejam elas duas, cinco ou cem. Claro que a concentração facilita o cartel. Mas, repito, para isso já existe lei.
Enfim, Biden está em seu momento de “caçador de boi no pasto”, de triste memória por aqui. Preço de carne, como o de qualquer commodity, é determinado pelo mercado global, os frigoríficos são meio que reféns. Aliás, empresas pequenas são, via de regra, menos eficientes, o que tornaria o preço da carne, no longo prazo, mais alto.
A cereja do bolo dessa história é o fato de o campeão da preservação do meio ambiente, Joe Biden, estar brigando para diminuir o preço da carne, quando deveria estar fazendo justamente o oposto para desestimular o consumo pois, como sabemos, a pecuária é uma das principais fontes do aquecimento global. Bastou que a inflação da carne batesse em sua popularidade, Biden não hesitou em escolher o lado. O que demonstra, mais uma vez, a dificuldade de implementação da agenda de combate às mudanças climáticas.
“Em telefonema de 50 minutos…” e a reportagem é ilustrada com a imagem de Biden segurando um telefone, como se, naquele momento, os destinos da humanidade estivessem sendo decididos.
Falando sério, se eu segurasse o telefone desse jeito por 50 minutos, provavelmente teria uma cãibra que duraria até a próxima hecatombe nuclear. Aliás, alguém se lembra da última vez que falou ao telefone desse jeito? Fones de ouvido e viva-voz são invenções do século passado. E em um mundo trabalhando remoto, tenho certeza que a Casa Branca e o Kremlin podem fazer uma sessão pelo Zoom.
Então, porque raios o editor decidiu ilustrar a matéria com uma foto claramente fake, afirmando que Biden estava conversando, naquele momento, com Putin? Para agregar credibilidade à noticia. Afinal, Biden ao telefone mostra que o presidente realmente está falando com alguém. E esse alguém deve ser Putin, porque a Casa Branca assim informou.
O problema é que o tiro saiu pela culatra. Todos sabem que o telefone que liga a Casa Branca ao Kremlin é vermelho, não esse cinza sem graça. Fica, assim, desmascarada a tentativa de criar mais uma fake news. Nice try, Joe.
Continue seguindo essa página para mais facts checking.
Biden fez a pergunta correta: quantas gerações de soldados americanos deveriam ser enviadas para lutar por um governo em que as próprias tropas não estão dispostas a lutar?
Quando ouvimos uma mulher apanhando do marido e gritando por socorro na vizinhança, chamamos a polícia, que tem o dever legal de intervir para proteger a vítima. Os EUA estão sendo vistos, no momento, como a polícia do mundo, que não está cumprindo o seu dever de proteger os cidadãos, e principalmente as mulheres, afegãos.
Muitos se condoem da situação das mulheres afegãs. É uma situação lastimosa, sem dúvida. Mas os EUA não são a polícia do mundo. Bush ordenou a invasão do Afeganistão para caçar terroristas, não para proteger as mulheres afegãs. Os direitos das mulheres foi apenas uma consequência do processo, não o seu objetivo. Irã e Arábia Saudita também vivem sob a sharia. Os EUA vão invadir os dois países para libertar suas mulheres? De forma mais ampla, os EUA vão invadir a China para proteger os uigures? Em todo país onde houver problemas com direitos humanos, os EUA serão chamados a intervir?
Em tese, a ONU é a polícia do mundo. É no âmbito da ONU que problemas de direitos humanos devem ser tratados. O Taliban está longe de ser o único regime que não respeita direitos humanos. O que faz a ONU? Os EUA deveriam substituir a ONU como guardião global dos direitos humanos? Caiu no colo de Biden o fiasco acumulado de todos os presidentes que o antecederam, ao terem a ilusão de que conseguiriam implementar um estado democrático ocidental no Afeganistão. Coube a Biden, como dizemos no mercado financeiro, zerar a posição, estancando as perdas.
As imagens de Cabul são chocantes e, sem dúvida, a situação das mulheres no Afeganistão é uma lástima. Cabe ao povo afegão tratar de seus próprios problemas. Não existe uma polícia global, feliz ou infelizmente.
A imagem do palácio presidencial de Cabul tomado pelos homens do Taleban certamente não passaria pelo critério de diversidade de nossas redes sociais. Mas a imprensa ocidental não perdeu tempo com lacrações desse tipo. O foco das análises foi como o Taleban conseguiu conquistar o poder no país de maneira tão rápida. A última bituca de cigarro do último soldado americano ainda estava fumegando no cinzeiro, e os barbudos já estavam sentados na mesa do fugitivo ex-presidente. Biden, em sua residência de verão, acompanhava o fiasco atentamente.
Destaquei abaixo alguns trechos dos jornais de hoje, além de uma reportagem da Economist.
O cálculo do governo americano era de que o presidente afegão tinha à disposição um exército muito superior, com homens treinados e armas. Poderia, portanto, resistir ao Taleban durante meses antes de, eventualmente, cair. Foi vencido em alguns poucos dias.
A Economist atribui a vitória do Taleban à sua inteligência, determinação e perspicácia política. Outro analista ouvido disse que o exército afegão era de mentira, pois os recrutas eram analfabetos e pouco motivados.
Não sou especialista, mas tenho outra tese. O Taleban venceu porque tem o apoio popular do povo afegão. Nenhuma ditadura toma o poder ou nele se mantém se não conta com o apoio de amplas parcelas da população. Quando deixa de ter esse apoio, é questão de tempo para ruir. Foi assim com a União Soviética, foi assim com a ditadura brasileira. As ditaduras castrista e chavista se mantêm no poder porque ainda contam com apoio popular. Há dissidentes, claro, sempre os há, mas são minoria.
Não é que o exército afegão era mal preparado, ainda que treinado e armado com bilhões de dólares do governo americano. É que, provavelmente, uma boa parte desse exército não estava realmente a fim de lutar contra o Taleban. Em uma guerra, é preciso que ambos os lados tenham convicção de que estão lutando pelo bem. Caso contrário, não há guerra. Por que mesmo os oficiais e recrutas do exército afegão estavam lutando? Pelos ditos “valores ocidentais”? Pelos ianques que ocuparam o país durante 20 anos? Por um governo marcado pela corrupção? Não havia pelo que lutarem. E, como vimos, não houve guerra.
Vinte anos depois, o Afeganistão volta ao ano de 2001, como se a intervenção americana não tivesse existido. Os pagadores de impostos americanos têm razão em questionar o porquê disso tudo.
O que faz ser histórica uma reunião entre chefes de Estado? Algo que mude os rumos da História, por suposto. Talvez a reunião histórica paradigmática seja a que ocorreu em Yalta, na Crimeia, onde o mapa da Europa pós-guerra foi desenhado por Churchill, Roosevelt e Stálin. Entre URSS e EUA, a reunião entre Nixon e Brejnev que determinou a redução de arsenais nucleares pode ser considerada histórica.
Por que a reunião entre Biden e Putin será histórica? Segundo o jornal, porque Biden será “durão” e apresentará uma série de exigências a Putin: fim dos ciberataques, retiradas das tropas da Ucrânia e advertência sobre a interferência russa nas eleições americanas.
Já fico imaginando Biden e Putin frente a frente na mesa de negociações. Biden entrega a lista de exigências. Putin lê com atenção, arregalando o olho a cada linha. Pensa consigo: “putz, agora que meu amigo Trump deu lugar a esse Chuck Norris das relações internacionais, acho melhor começar a colaborar”.
Este é o sonho do jornalista engajado. Na realidade, vai acontecer mais ou menos o seguinte: Biden e Putin em lados opostos da mesa de negociações. Biden entrega a lista de exigências. Putin dá uma olhada de alto a baixo em mais ou menos 5 centésimos de segundos, entregando a folha a um assessor, que a coloca dentro de uma pasta preta. Com o poker face que Deus lhe deu, Putin pergunta em seguida: “anything else, Mr. President?”
Trump era malvado, como sabemos. Era muito ruim mesmo, um crápula.
Entre muitas de suas maldades, Trump enchia aviões com brasileiros ilegais e os deportava de volta para casa.
Biden é um anjo bom, como sabemos. Um sujeito virtuoso, muito bom mesmo.
Entre muitas de suas bondades, Biden tem a intenção de acabar com esses voos de deportados. Mas, sabe como é, são tantas bondades a serem feitas antes para neutralizar as maldades de Trump, que os brasileiros ficaram para o fim da fila. Assim, nosso compatriotas vieram algemados e com correntes nos pés durante todo o voo, além de serem maltratados na migração.
Trata-se claramente de uma herança maldita de Trump, para a qual Biden vai dar um jeito quando tiver um tempo. Da mesma forma que, por exemplo, Obama deu cabo da prisão de Guantánamo, herança maldita de outro malvado de carteirinha, George Bush. Ah não, putz, não deu tempo, eram também muitas bondades a serem feitas, essa ficou para depois.
Moral da história: quando se é muito bom, as maldades são só um acidente de percurso.