Post Scriptum

Escrevi um Post Scriptum ao meu post anterior, sobre o artigo de Joel Pinheiro. Mas como se trata de um assunto delicado, que envolve a reputação de alguém, resolvi publicá-lo também em um post separado.


Escrevo este Post Scriptum depois de ouvir que este texto seria irônico. Se assim o for, peço publicamente desculpas a Joel Pinheiro e parabenizo-o por expor, de maneira brilhante, o absurdo a que pode levar a cultura do politicamente correto.

Qualquer texto irônico deve pressupor que o leitor conheça as convicções do autor, de modo que o texto seja reconhecido como o oposto de suas convicções. E, para que funcione, o texto precisa ser, ele todo, irônico. Não faz sentido colocar premissas em que o autor acredita e depois desmoraliza-las com as suas consequências. Obviamente, o tal “comitê de notáveis” é uma ideia de tal modo absurda, que deveria soar o alarme da ironia, assim como a forma como o autor se refere à Folha. Ocorre que esse texto veio logo em seguida a um manifesto de jornalistas que pedem justamente isso, que a Folha funcionasse como uma espécie de “comitê de notáveis”, barrando artigos não alinhados. E o manifesto dos jornalistas não foi irônico. Assim, para alguém que não acompanha de perto a produção de Joel Pinheiro, a hipérbole do “comitê de notáveis” se perdeu no raciocínio construído de maneira bastante alinhada com a agenda hoje dominante.

Quando um texto irônico precisa ser acompanhado de um “just kidding”, é porque o autor, por algum motivo, deu margem a que se fizesse outra interpretação. Claro que, ao escrever, o autor confia na inteligência do leitor. Mas o leitor precisa estar municiado de informações para interpretar corretamente o texto. E, neste caso, se o texto for realmente irônico, eu não estava.

Por fim, mesmo na hipótese do texto irônico, nada do que escrevi no post se perde, a não ser as críticas ao autor. Pelo contrário: se o texto for irônico, o autor se junta às críticas colocadas no post.

Até as últimas consequências

O economista Joel Pinheiro da Fonseca escreveu ontem, na Folha de São Paulo, artigo, para dizer o mínimo, polêmico. O seu inteiro teor vai a seguir. Volto a seguir.

Vou começar concordando com o articulista: a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Como todo direito, está limitado pelo direito alheio. Assim, não é permitido usar a liberdade de expressão para caluniar ou difamar alguém, por exemplo. Faço algumas considerações sobre os limites da liberdade de expressão no artigo Redes Sociais e Poder Político.

Se Joel Pinheiro está correto em sua premissa inicial, o restante de seu artigo escorrega a toda velocidade em direção ao abismo. Vejamos.

Em sociedades democráticas, o problema do respeito pelo direito alheio já foi resolvido há tempos: há um sistema judicial que serve para julgar o balanço entre os direitos dos indivíduos, segundo uma regra escrita, chamada lei. Assim, por exemplo, se alguém se sente atingido por algo que alguém falou ou publicou, tem à disposição a justiça para resolver o assunto.

Mas não é a este tipo de crime a que Joel Pinheiro se refere. O articulista aponta crimes contra a saúde pública, de racismo, contra a comunidade LGBT, de machismo, de fanatismo religioso e de desigualdade social.

Bem, alguns desses crimes apontados são tipificados pelo código penal brasileiro. Por exemplo, racismo. Ou preconceito contra pessoas de orientação homossexual, recentemente equiparado ao racismo pelo STF. Há crimes contra a saúde pública também, como quando, por exemplo, um médico atua sem as devidas licenças. Crimes de machismo, fanatismo religioso ou de desigualdade social ainda não foram tipificados, para desespero daqueles que querem um mundo melhor.

Mas o problema não é exatamente a questão da tipificação penal. Fosse assim, o articulista gastaria o seu verbo pedindo modificação no código penal. Mas não é disso que se trata. A justiça de um regime democrático não é suficiente para fazer justiça. É preciso ir além.

Neste ponto, reproduzo o parágrafo que é chave para entender a ideia do articulista: “É uma visão ingênua —embora nada inocente— acreditar num debate público idealizado, em que o que importa são argumentos. Na realidade, opiniões refletem os conflitos de poder da sociedade, mal disfarçados por construtos teóricos”.

Fica claro que Joel Pinheiro quer criminalizar a opinião, nada menos. A opinião seria apenas um instrumento de poder, e o debate de ideias apenas uma forma de disfarçar o exercício do poder por parte de grupos dominantes. Não haveria um legítimo debate de ideias entre iguais, mas somente manipulação, visando à manutenção do status quo.

Joel Pinheiro exemplifica o que quer dizer sem dar nome aos bois (o que não deixa de ser um sinal de covardia), ao fazer referência ao artigo de Antônio Risério sobre o racismo de negros contra outras raças. Segundo o articulista, “Quando um branco questiona consensos estabelecidos da pauta antirracista, isso não é liberdade de expressão, é racismo”, pois “Alguns buscam a igualdade e o bem comum; outros, manter seus interesses e privilégios”. Assim, fica o mundo dividido entre “bons” e “maus”, e não há como haver debate de ideias legítimo entre esses dois grupos.

Já escrevi sobre esse artigo de Antônio Risério por ocasião do manifesto dos jornalistas da Folha, que também tinha como objetivo interditar a livre circulação de ideias. Comentei, na ocasião, que a tese do racismo estrutural é uma interpretação possível da história, longe de ser uma verdade esculpida nas tábuas dos 10 mandamentos. Trata-se de um “consenso estabelecido da pauta antirracista” apenas entre aqueles que concordam com a tese. Mas Joel Pinheiro explícita aquilo que está somente sugerido no manifesto dos jornalistas: quem não concorda com a tese está interessado apenas em “manter seus interesses e privilégios”.

Neste ponto, devemos ser gratos a Joel Pinheiro. Confesso que é o primeiro artigo absolutamente claro sobre a natureza do movimento politicamente correto. Por trás da capa da virtude de recorte vitoriano, que aponta o seu dedo imaculado para todos os podres do mundo, existe uma vocação autoritária, explicitada na interdição ao debate de ideias. Consensos são fabricados deixando de fora aqueles que não concordam. Assim fica fácil.

Todos os regimes autoritários, sem exceção, buscam “o Bem”. Para isso, calam a voz dos dissidentes, que sabotam a marcha para “um mundo melhor possível”. O bravo articulista, sem receio de seguir na estrada que abriu, chega às últimas consequências do seu raciocínio: seria preciso escolher um “comitê de notáveis”, para “julgar previamente artigos, podcasts ou vídeos que possam ter conteúdo problemático”. Há que se reconhecer a coragem de Joel Pinheiro em levar às últimas consequências a sua tese. Desconfio que seus pares, apesar de poderem concordar totalmente com ele, lamentarão tamanho grau de transparência, que desnuda, como nunca antes, a verdadeira natureza dos monopolistas do bem.

Como nota cômica, fico imaginando esse “comitê de notáveis” (pagos pelo Estado, por suposto, ainda que o articulista não tenha entrado nesse nível de detalhe) tendo que avaliar milhares de artigos escritos diariamente. Haja leitura dinâmica!

Confesso que a ideia do “comitê de notáveis” me seduz, principalmente quando leio artigos como este. Estivesse eu em um comitê deste tipo, daria bola preta para Joel Pinheiro.


Escrevo este Post Scriptum depois de ouvir que este texto seria irônico. Se assim o for, peço publicamente desculpas a Joel Pinheiro e parabenizo-o por expor, de maneira brilhante, o absurdo a que pode levar a cultura do politicamente correto.

Qualquer texto irônico deve pressupor que o leitor conheça as convicções do autor, de modo que o texto seja reconhecido como o oposto de suas convicções. E, para que funcione, o texto precisa ser, ele todo, irônico. Não faz sentido colocar premissas em que o autor acredita e depois desmoraliza-las com as suas consequências. Obviamente, o tal “comitê de notáveis” é uma ideia de tal modo absurda, que deveria soar o alarme da ironia, assim como a forma como o autor se refere à Folha. Ocorre que esse texto veio logo em seguida a um manifesto de jornalistas que pedem justamente isso, que a Folha funcionasse como uma espécie de “comitê de notáveis”, barrando artigos não alinhados. E o manifesto dos jornalistas não foi irônico. Assim, para alguém que não acompanha de perto a produção de Joel Pinheiro, a hipérbole do “comitê de notáveis” se perdeu no raciocínio construído de maneira bastante alinhada com a agenda hoje dominante.

Quando um texto irônico precisa ser acompanhado de um “just kidding”, é porque o autor, por algum motivo, deu margem a que se fizesse outra interpretação. Claro que, ao escrever, o autor confia na inteligência do leitor. Mas o leitor precisa estar municiado de informações para interpretar corretamente o texto. E, neste caso, se o texto for realmente irônico, eu não estava.

Por fim, mesmo na hipótese do texto irônico, nada do que escrevi no post se perde, a não ser as críticas ao autor. Pelo contrário: se o texto for irônico, o autor se junta às críticas colocadas no post.