A maior ameaça à democracia

Luíz Sérgio Henriques, um dos organizadores da obra de Gramsci no Brasil, escreve o 54.897o artigo sobre a ameaça às democracias representada pela “ultradireita” (“extrema-direita”, pelo visto, já não é um termo suficiente). Dá como exemplo a reação de Trump, Netanyahu e Keiko Fujimori às suas respectivas derrotas eleitorais, colocando em dúvida a lisura do processo, o mesmo que já vem ocorrendo no Brasil.

Acho ridículo o “whataboutism”, que consiste em apontar os defeitos do contrário para tirar importância aos próprios. A frase que imortalizou o “whataboutism” no Brasil foi “e o petê?”, que serve como coringa para qualquer crítica ao governo Bolsonaro.

No entanto, correndo o risco de ser acusado de “whataboutism”, senti falta, no artigo, da menção a regimes que verdadeiramente suprimiram a democracia em seus países, como a Cuba de Miguel Diaz-Canel, a Venezuela de Nicolas Maduro e a Nicarágua de Daniel Ortega. O articulista prefere lembrar a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini, exemplos de quase um século atrás, e convenientemente esquece o que está acontecendo aqui e agora. Trump e Netanyahu podem ter tumultuado o processo, mas entregaram o poder. Diaz-Canel, Maduro e Ortega foram um pouco além do tumulto.

Henriques termina o artigo convocando “uma frente muito ampla em defesa das regras do jogo”, o que certamente inclui Lula e o PT. O mesmo Lula e o mesmo PT que apoiam abertamente regimes liberticidas como os de Cuba, Venezuela e Nicarágua. O mesmo Lula que, outro dia, em entrevista a um jornal chinês, elogiou o sistema de partido único e forte do país. São estes que vão defender a democracia brasileira?

Cada um, de acordo com sua própria escala de valores, vai avaliar qual dessas duas forças é mais deletéria para o sistema democrático e votar de acordo com sua própria consciência. O que não dá é, como faz o articulista, apontar Bolsonaro como a única ameaça às instituições democráticas do país.

Curiosamente, Henriques termina o artigo dando uma pista sobre qual é o maior perigo à democracia, ao afirmar que a tarefa de afastar a ameaça é relativamente simples, pois Bolsonaro “não disfarça e nem oculta seus truques”. Sem querer, o articulista mostra que gente como Trump e Bolsonaro são menos perigosos, por serem caricatos, golpistas de manual. Muito mais perigosa é a ameaça insidiosa, que se aproxima sem que se perceba. Um estudioso de Gramsci certamente sabe do que se trata.

FHC vs. Vargas Llosa

O trecho destacado abaixo é o início de um artigo publicado hoje no Estadão.

O autor diz que a imprensa estrangeira atribui atrocidades a Bolsonaro, além de ter Lula como o seu queridinho e, se pudesse votar, Lula já estaria eleito. Mas, por outro lado, afirma que o povo brasileiro sabe o que Lula fez no verão passado.

Quem é o autor? Será um bolsonarista de quatro costados, como Augusto Nunes ou JR Guzzo? Ou mesmo alguém mais crítico a Bolsonaro, mas que também não lambe a bota de Lula, como William Waack?

Nada disso. O autor é ninguém menos do que Mário Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura e ex-candidato a presidência da República contra Alberto Fujimori. Vargas Llosa pode ser considerado o FHC do Peru: um intelectual que enveredou pela política, com ideias modernas sobre economia.

Bem, pelo menos era isso que eu pensava. Vargas Llosa está fazendo campanha por Keiko Fujimori, filha de Alberto, contra o professor Pedro Castillo nas eleições de hoje no Peru. Para fazer um paralelo: imagine que Bolsonaro, dois anos depois de eleito, tivesse dissolvido o Congresso e o STF e tivesse governado por mais 8 anos de maneira ditatorial, até renunciar ao cargo. Vinte anos depois, seu filho Eduardo se candidata e chega ao segundo turno contra Guilherme Boulos. Nesse contexto, quem FHC iria apoiar?

Enquanto FHC assina notas conjuntas com Lula (falarei sobre essa nota conjunta em outro post), Vargas Llosa apoia Fujimori. Cada país tem o FHC que merece.

A pobreza como destino

Mario Vargas Llosa, em artigo publicado hoje no Estadão, pede votos para Keiko Fujimori no 2o turno das eleições peruanas, a serem disputadas em junho.

Imagine um 2o turno entre Guilherme Boulos e Eduardo Bolsonaro, este concorrendo após seu pai ter governado o país por 10 anos e ter tentado dar um golpe para se perpetuar no poder. Agora imagine Fernando Henrique pedindo votos para Bolsonaro. Isso é mais ou menos o que está acontecendo no Peru neste momento. Como chegamos neste ponto?

Estou muito longe de ser um especialista em política peruana. Faço aqui apenas uma análise à distância, tentando traçar paralelos com a política brasileira, um exercício sempre precário.

Quem acompanha Vargas Llosa não pode deixar de ficar espantado com esse posicionamento. O prêmio Nobel de literatura foi um crítico áspero de Alberto Fujimori, de quem foi adversário nas eleições de 1990, tendo perdido no 2o turno.

A partir do governo de Alberto Fujimori, o Peru, assim como o Brasil, entrou em uma fase de reformas estruturais que lhe permitiu alcançar estabilidade econômica rara por essas bandas latinas. Cabe ressaltar que Vargas Llosa também era a favor dessas reformas, o que nos leva a crer que a história do Peru estava escrita em 1990.

No gráfico abaixo, podemos observar a relação entre a renda/capita do Brasil e a do Peru.

No início dos anos 90, a renda do Brasil era o dobro da peruana. Nos últimos 30 anos, o Peru praticamente nos alcançou, com a renda brasileira ficando apenas 15% acima da peruana (o ano de 2020 está contaminado pela epidemia).

O rating soberano do Peru foi elevado para Grau de Investimento em abril de 2008, um mês antes do Brasil. A diferença é que eles ainda são Grau de Investimento, com rating BBB+, enquanto nós perdemos o Grau de Investimento no final de 2015, sendo hoje BB-. Ou seja, precisaríamos de 5 upgrades para atingir o nível do Peru. Hoje, um título do governo do Peru de 10 anos está pagando 5% ao ano, enquanto o nosso, para atrair investidores, precisa pagar 9% ao ano.

O interessante é que a disciplina que permitiu diminuir as taxas de juros e aumentar a renda atravessou governos de esquerda (como o de Humala) assim como de direita (como o de Alejandro Toledo), ou mesmo simplesmente populistas, como o de Fujimori.

No entanto, algo aconteceu. Mais do que a Lava-Jato, que devastou a classe política peruana, um descontentamento generalizado parece estar dando as cartas, assim como aconteceu no Chile. Chegamos, então, ao artigo de Mario Vargas Llosa.

Vargas Llosa, em seu artigo, prevê o fim das eleições livres, a lá Chavez/Maduro, caso o Guilherme Boulos deles, Pedro Castillo, seja eleito e implemente a sua agenda de estatização generalizada. Vê em Keiko Fujimori o “mal menor”, caso ela se comprometa a “respeitar a liberdade de expressão, não expulsar os juízes do Poder Judiciário e a convocar eleições ao término de seu mandato”. Ou seja, desde que a filha de Fujimori seja a democrata que seu pai não foi. Entre a ameaça à democracia pela esquerda e pela direita, Llosa opta por esta última. Se optou, é porque viu um “mal menor”.

O que mais me chama a atenção nisso tudo é o fato de o Peru ter, aparentemente, seguido à risca o receituário da Faria Lima para ser feliz: disciplina fiscal e reformas. O que nos leva à conclusão de que, se essas são condições necessárias para o progresso, estão longe de serem suficientes. O Peru está, igualzinho ao Brasil, entre a cruz e a caldeirinha, mesmo sendo um aluno exemplar.

A conclusão a que eu chego é que, por mais que façamos, somos reféns do nosso DNA, que determina a fraqueza de nossas instituições, eternamente capturadas por elites predatórias, e sempre ficaremos sujeitos a qualquer populista com discurso apelativo que aparece. A nossa pobreza é um destino.