Um remendo que já vai tarde

A lei das estatais estava errada, e agora foi corrigida. Antes tarde do que nunca.

No início de 2019, acompanhei investidores japoneses em um périplo em Brasilia. Uma das reuniões se deu no gabinete do então secretário da desestatização, Salim Mattar. O descanso de tela dos computadores trazia o artigo 173 da Constituição: “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. Em economês, a existência de uma empresa estatal somente se justifica se há uma “falha de mercado”. Ou seja, a estatal deve existir quando existem benefícios sociais para a sua existência, mas não econômicos a ponto de atrair a iniciativa privada.

Notem que a “rentabilidade” da empresa estatal não faz parte de seus objetivos. Encher o peito para dizer que as estatais “serão bem administradas e darão lucro” não faz o mínimo sentido. Se a empresa está dando lucro, é porque a iniciativa privada poderia estar explorando aquela atividade. A existência do lucro significa que o artigo 173 da Constituição não está sendo cumprido.

Tendo dito isso, nada mais natural que os políticos, detentores do mandato popular, tenham a última palavra sobre a administração dessas empresas. Se haverá ou não corrupção, este é um problema de polícia, não de política. Em princípio, empresas estatais fazem parte dos instrumentos que o Estado tem para fazer políticas públicas. E políticas públicas devem ser exercidas pelos representantes do povo.

A lei das estatais parte do pressuposto de que empresas estatais devem ser administradas como se privadas fossem. Errado, por tudo o que foi explicado acima. A lei das estatais é só um remendo para mitigar o verdadeiro problema, qual seja, a existência de estatais que exploram atividades econômicas em que não há falha relevante de mercado. Deveríamos estar discutindo a privatização dessas estatais e não chorando pela defunta lei das estatais.

A politização do crime

Nesta semana, Gilmar Mendes e Gleisi Hoffmann acusaram a Lava-Jato e a Lei das Estatais de “criminalizar a política”.

O decano do Supremo, em um convescote para comemorar 20 anos de STF, diante de todos os representantes da República (incluindo o presidente da República, os presidentes do Câmara e de Senado, vários parlamentares e ministros do Supremo), afirmou que o tribunal havia devolvido a política aos políticos, que havia sido “expropriada” por juízes.

A presidente do PT, por sua vez, acusou a Lei das Estatais de “criminalizar” a política, ao vetar a presença de políticos nos Conselhos de Administração e diretorias das estatais, além de exigir experiência no ramo para ocupar algum desses cargos. Este entendimento é seguido por caciques do Centrão.

Esta, digamos, visão de mundo, foi comprada a valor de face por Bolsonaro na campanha eleitoral de 2018. Seu discurso, em linha com o pensamento de muitos de seus seguidores, é de que a política estava podre de alto a baixo e, portanto, era necessário que um outsider imaculado inaugurasse uma nova era na política brasileira, onde o bem venceria por gravidade, com a força das ruas. Essa visão ingênua da política (na verdade, a negação da política) inundava a minha timeline em 2019 sempre que eu criticava a falta de diálogo de Bolsonaro com o Congresso. Essa postura corroborava, pelo avesso, os discursos de Gilmar Mendes e Gleisi Hoffmann, ao, de fato, identificar toda e qualquer negociação política com corrupção.

Política, cansei de escrever aqui, é divisão de poder para alcançar consensos. Indicar ministros faz parte dessa divisão de poder com a base de apoio no Congresso. Cada partido e cada político fica à frente de uma parte da máquina pública para imprimir a sua visão de mundo nas políticas públicas. Isso é política. Outra coisa, bem diferente, é o recebimento de vantagens por meio de conluio com fornecedores do poder público. Isso não é política, isso é polícia.

A distinção entre política e polícia nos permite entender onde Gilmar Mendes e Gleisi Hoffmann erram. A Lava-Jato e a Lei das Estatais têm como objetivo justamente não deixar que a política vire caso de polícia. No caso da Lava-Jato, o sistema judiciário identificou o uso da atividade política para outros fins que não fazer política. E a Lei das Estatais, nascida das conclusões da Lava-Jato, veio justamente para tornar mais difícil usar uma parte da máquina do governo para outros fins que não fazer política.

Ao atacar a Lava-Jato e a Lei das Estatais, acusando uma suposta “criminalização da política”, Gilmar Mendes e Gleisi Hoffmann, na verdade, estão politizando o crime.