Duas ironias e uma tragédia

Essa história contém duas ironias e uma tragédia.

Ironia 1: o cara virou uber porque o partido que defende o direito dos ubers deu calote.

Ironia 2: o presidente do diretório de SC, que foi o que deu calote, é também presidente do SEBRAE, aquela entidade governamental de apoio às pequenas empresas, como a produtora que fechou por causa do calote do seu diretório.

A tragédia: 13 anos depois do evento, a Justiça ainda não encerrou o caso. Há um ano tenta “encontrar” o presidente do SEBRAE para intimá-lo, sem sucesso. Este é o ambiente de negócios no Brasil. Não tem risco de dar certo.

A falsa dicotomia entre garantismo e punitivismo

Meu amigo Nicolau Cavalcanti escreve hoje sobre uma epifania que lhe acometeu: a tendência punitivista da justiça seria um sintoma importante do déficit democrático que culminou nos atos de 8 de janeiro. O direito de defesa, segundo Cavalcanti, seria um dos pilares do Estado Democrático de Direito, e o ataque orquestrado contra esse direito pelos punitivistas seria um dos principais fronts no ataque à democracia.

Essa discussão entre “punitivistas” e “garantistas” me faz lembrar o debate entre “liberais” e “desenvolvimentistas” na seara econômica, no sentido de que cada um dos lados procura jogar o outro para o extremo, de modo que sua própria posição pareça muito razoável. De certa forma, isso é até fácil de fazer, porque qualquer posição pode ser extrapolada. Por exemplo, ser contra o Estado como empresário seria o primeiro passo para a eliminação do Estado, em uma espécie de anarquismo. Ou, ser a favor do Estado como empresário seria o primeiro passo para transformar o país em uma ditadura comunista, em que cada aspecto da vida dos cidadãos seria ditada pelo Estado. Esse tipo de extrapolação pode servir para “ganhar debates” em suas respectivas bolhas, mas é inútil para chegar a consensos mínimos. A imensa maioria das pessoas não acha que o Estado é completamente inútil ou, até mesmo, perigoso, assim como a imensa maioria das pessoas não pensa que um Estado onipresente seja a solução de nossos problemas. Trata-se aqui de uma sintonia mais fina do que estão dispostos a admitir ambos os lados do debate.

Da mesma forma, a oposição entre “garantistas” e “punitivistas”. Os garantistas, como o meu amigo, acusam os punitivistas de quererem acabar com o direito de defesa, ao passo que os punitivistas acusam o outro lado de quererem proteger criminosos. Esse tipo de extrapolação só serve para acirrar os ânimos e cavar trincheiras. O debate deveria se dar a respeito da velocidade da justiça em aplicar a lei, e não sobre um teórico “direito de defesa” a que ninguém, em sã consciência, é contra.

Por fim, permita-me o meu amigo concordar com sua tese central, mas discordar sobre a ordem dos fatores. Sim, um suposto ataque ao direito de defesa seria sintoma de deterioração da democracia em um país, mas não no sentido de fazer parte de um grande pacote de sentimentos anti-democráticos que vicejariam em um suposto submundo fascista em que alguns brasileiros vivem. Na verdade, sentimentos anti-democráticos surgem em cidadãos normais quando um pilar importantíssimo da democracia, a justiça igual para todos, parece disfuncional. Quando o Estado não cumpre o seu dever, cidadãos tendem a tomar a tarefa em suas próprias mãos de maneira desordenada. Nesse sentido, o garantismo extremo seria, ele próprio, a semente de sentimentos anti-democráticos.

Novamente: ninguém, em sã consciência, é contra o direito de defesa. Países com sólida tradição democrática garantem o direito de defesa e, nem por isso, deixam de punir o crime de maneira célere e independentemente de quem seja o réu. Por exemplo, cite um só país democrático em que existam quatro instâncias da justiça para que alguém seja preso (agora cinco, com o juiz de garantias). Portanto, meu convite é que deixemos de lado os rótulos, e trabalhemos para fortalecer a democracia através de uma reforma do judiciário que permita termos a mesma segurança jurídica das grandes democracias.

Da inutilidade da punição

O advogado Antônio Cláudio Maríz de Oliveira, sócio de umas das mais prósperas bancas de direito criminal do Brasil, antes de prestigiar o jantar lambe-bolas do ex-presidiário, cometeu um artigo assaz instigante, em que propõe o fim da punição pelos crimes de corrupção. Vamos entender a proposta.

Segundo o ilustre criminalista, qualquer ação penal DEPOIS do crime cometido é inútil, por não prevenir o crime. Afinal, de que adianta punir se o crime já foi cometido? É ou não é brilhante?

Confesso que nunca havia pensado a coisa deste ponto de vista. A coisa é revolucionária e mereceria, se existisse, um prêmio Nobel de direito. A punição, defende o nobre causídico, não impede que o criminoso cometa o crime (pelo óbvio motivo de que o crime já foi cometido) e não o inibe de cometer novos crimes. Portanto, a punição deveria ser extinta, e todo o investimento deveria se dar na prevenção dos crimes, com aulas de ética para os cidadãos. O foco deveria ser nas causas da corrupção, para evitar que aconteça.

O artigo foca na corrupção, mas não haveria motivo para a punição de quaisquer outros crimes. Afinal, a punição, se é inútil para os crimes de corrupção, também o seria para quaisquer outros crimes, como roubos e assassinatos.

O Dr. Mariz não chega a dizer isso, mas a extinção da punição permitiria que vivêssemos em uma sociedade menos hipócrita, mais sincera, em que não perderíamos tempo e energia fazendo de conta que existe justiça. Seria libertador.

Por fim, talvez o brilhante defensor de inocentes corruptos não tenha notado, mas o passo seguinte à extinção da punição seria a extinção da própria profissão de advogado criminalista. Afinal, se não há punição, para que mesmo os criminosos gastariam rios de dinheiro procurando explorar as chicanas do sistema jurídico nacional? Seria todo um aparato de justiça que poderia ser dispensado, liberando dinheiro para outras necessidades prementes da nação. Como, por exemplo, encher malas.

O suprassumo do Estado Democrático de Direito

1996.

FHC estava em seu 2o ano de mandato, Covas era o governador de São Paulo e Maluf era o prefeito da cidade.

Os primeiros telefones celulares, do tamanho de um tijolo, começavam a circular por aqui, enquanto a Internet era ainda coisa de universidade.

Assistíamos filmes em fitas VHS. Não lembro se havia CDs de música, mas certamente não havia MP4 e muito menos streaming.

Rede Social era aquela que ficava na varanda de casa e onde todo mundo podia tirar um cochilo.1996. Ano em que os proprietários do Fiat Tipo (sim, havia um carro com esse nome) entraram com um processo contra a Fiat.23 anos depois, a Justiça Brasileira chegou ao fim do processo. 23 anos.

E ainda querem nos convencer que chicana jurídica é o supra-sumo do Estado Democrático de Direito.