O que pensa Simone Tebet na economia

Quem é Simone Tebet? O que pensa? Onde vive? Como se alimenta?

Cada um escolhe o seu candidato a presidente de acordo com uma escala de valores própria. No meu caso particular, o que o candidato pensa sobre assuntos econômicos tem uma grande importância. Daí a pergunta: o que Simone Tebet pensa sobre economia?

Tebet ontem declarou que é “liberal na economia, mas contra a privatização da Petrobras”.

A senadora também votou contra a privatização da Eletrobras. Fico cá imaginando o que mais vem depois desse “mas” após a auto-declaração liberal de Tebet.

O Ranking dos Políticos nos fornece uma forma sistemática de avaliação dos parlamentares. Usando critérios liberais, o ranking pontua os parlamentares de acordo com suas votações no Congresso. Temos, então, um retrato fiel dos pendores de cada deputado para além do mero discurso.

A senadora Simone Tebet situa-se na 308a posição entre 581 parlamentares avaliados. Ou seja, ligeiramente abaixo da mediana. Bem em linha com o seu “sou liberal, mas”. Para quem gostaria de ver um liberal-raiz na presidência, trata-se de uma decepção.

Mas vamos explorar um pouco mais o ranking. Aécio Neves, por exemplo, que era o preferido da Faria Lima para destronar Dilma em 2014, tem nota pior que Tebet. Claro, contra Dilma e Marina, Aécio parecia um Milton Friedman. Nesse contexto, apesar de longe do ideal, Tebet pode ser muito melhor que várias alternativas. Paulinho da Força, amigão de Alckmin, está em 567o lugar, enquanto Cid Gomes, que pode ser considerado uma proxy do seu irmão Ciro, está em 449o lugar.

Outro ponto a considerar é a sua pontuação. Como vimos, Tebet se situa abaixo da mediana, mas certamente está acima da média. Não calculei a média, mas é fácil de entender. A nota máxima desse ranking é 8,16 (do senador do Podemos, Eduardo Girão), enquanto a mínima é 1,60 (da deputada do PSOL, Vivi Reis). A mediana (o parlamentar que divide a amostra exatamente ao meio) é Fernando Coelho Filho, deputado federal do União Brasil, que está em 290o lugar, com 6,22 pontos. Portanto, metade dos parlamentares têm nota igual ou acima de 6,22 e metade têm nota igual ou abaixo de 6,22. Como a diferença entre a maior nota e a mediana é de 8,16 – 6,22 = 1,94 pontos, ao passo que a diferença entre a mediana e a menor nota é muito maior, de 6,22 – 1,60 = 4,62 pontos, podemos concluir que a nota dos deputados abaixo da mediana puxa a média muito para baixo.

Do ponto de vista de sucesso nas votações o que importa é a mediana, pois cada cabeça é um voto, e pouco importa a “intensidade” do liberalismo de cada parlamentar. Mas do ponto de vista da avaliação de cada parlamentar em particular, a média é mais significativa, justamente porque compõe a crença “média” da população brasileira. No caso, Simone Tebet está acima da média dos parlamentares brasileiros em termos de “ideias liberais”. Uma outra forma de constatar isso é verificar que faltariam apenas 0,94 pontos para que Tebet se situasse entre os 100 parlamentares mais “liberais” do Congresso, ao passo que ela teria que perder 2,69 pontos para ficar entre os 100 parlamentares menos “liberais”. Ou seja, com uma boa orientação (ao que parece, Afonso Celso Pastore pode estar em sua campanha), a senadora pode falar o que a Faria Lima quer ouvir.

Portanto, e para concluir, do ponto de vista de ideias econômicas, Tebet não é ideal para mim, mas não compromete. E, considerando que o voto da Faria Lima é irrelevante para eleger qualquer um, o fato de a senadora estar ali próxima da mediana e somente um pouco acima da média certamente a fará mais palatável para o brasileiro médio no aspecto de ideias para a economia.

A volta dos que não foram

Passeando por alguns posts antigos, redescobri esta pérola. Faltando pouco menos de um ano para as eleições de 2018, o então pré-candidato do PSDB à presidência, Geraldo Alckmin, coloca para fora todas as suas convicções sobre o capitalismo, em um evento patrocinado por uma ala do partido chamada “Esquerda Pra Valer”.

A estratégia era, segundo a reportagem, tentar herdar os votos de Lula, caso o então pré-candidato do PT e já condenado em 1a instância fosse impedido de concorrer.

Como se viu, a estratégia não deu lá muito certo. Mesmo tendo um latifúndio de tempo de TV e o apoio de 279 partidos, Alckmin mal ultrapassou 5% dos votos, a menor votação do PSDB desde a redemocratização. Enquanto isso, um candidato que prometia privatizar tudo quase papou a eleição no 1o turno. Sua estratégia não era herdar os votos de Lula. Era herdar os votos das viúvas do PSDB, abandonadas por um partido que insistia em ser o lado B do PT.

Hoje, o responsável pela tal “Esquerda Pra Valer” foi expulso do partido, enquanto Alckmin se auto expulsou. O PSDB, sob o comando de João Doria, quer ocupar um espaço mais à direita no espectro político. É o popular “muito pouco, muito tarde”. O PSDB perdeu o trem da história, e agora virou um coadjuvante no cenário da disputa presidencial.

FHC vs. Vargas Llosa

O trecho destacado abaixo é o início de um artigo publicado hoje no Estadão.

O autor diz que a imprensa estrangeira atribui atrocidades a Bolsonaro, além de ter Lula como o seu queridinho e, se pudesse votar, Lula já estaria eleito. Mas, por outro lado, afirma que o povo brasileiro sabe o que Lula fez no verão passado.

Quem é o autor? Será um bolsonarista de quatro costados, como Augusto Nunes ou JR Guzzo? Ou mesmo alguém mais crítico a Bolsonaro, mas que também não lambe a bota de Lula, como William Waack?

Nada disso. O autor é ninguém menos do que Mário Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura e ex-candidato a presidência da República contra Alberto Fujimori. Vargas Llosa pode ser considerado o FHC do Peru: um intelectual que enveredou pela política, com ideias modernas sobre economia.

Bem, pelo menos era isso que eu pensava. Vargas Llosa está fazendo campanha por Keiko Fujimori, filha de Alberto, contra o professor Pedro Castillo nas eleições de hoje no Peru. Para fazer um paralelo: imagine que Bolsonaro, dois anos depois de eleito, tivesse dissolvido o Congresso e o STF e tivesse governado por mais 8 anos de maneira ditatorial, até renunciar ao cargo. Vinte anos depois, seu filho Eduardo se candidata e chega ao segundo turno contra Guilherme Boulos. Nesse contexto, quem FHC iria apoiar?

Enquanto FHC assina notas conjuntas com Lula (falarei sobre essa nota conjunta em outro post), Vargas Llosa apoia Fujimori. Cada país tem o FHC que merece.

Aluguéis: o “empurrãozinho” para o IPCA

O cão de Pavlov liberal que vive dentro de mim começou a salivar quando viu a notícia: “Câmara vai tentar fixar IPCA como teto de reajuste de aluguéis para evitar IGP-M”. Taí o governo se metendo novamente no livre mercado!

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Recentemente, negociei dois contratos de aluguel, pedindo para trocar o IGP-M pelo IPCA. Em um deles houve resistência. Não por qualquer motivo financeiro, mas pelo costume. “Sempre foi assim, não sei se será possível mudar”. No final, consegui.

Richard Thaler ganhou o Nobel de Economia em 2017 por suas pesquisas em finanças comportamentais. Ele escreveu um livro muito interessante, Nudge (que pode ser traduzido por “empurrãozinho”), no qual elenca várias situações em que, a depender de como as alternativas são apresentadas, as decisões dos seres humanos são diferentes. Por exemplo, em uma campanha de doações, está provado que se arrecada mais se as opções forem R$ 100, R$ 200 e R$ 500, do que se forem R$ 20, R$ 50 e R$ 100, mesmo havendo um campo para preencher com um valor qualquer de doação.

Thaler dá um nome a políticas públicas que têm como objetivo levar as pessoas a escolher “o melhor”: “paternalismo libertário”. Ele foi muito criticado por isso, mas muitas campanhas governamentais, principalmente nos EUA, levam em consideração os princípios desenhados por Thaler para levar a mudanças de comportamento das pessoas.

No gráfico abaixo, podemos ver as variações anuais do IGP-M e do IPCA ao longo do tempo, mostrando que o IGP-M é bem mais volátil que o IPCA.

O IPCA, por ser muito mais estável ao longo do tempo, reduz sobremaneira os potenciais atritos entre as partes do contrato. Além disso, o IGP-M é um índice que não tem relação com a inflação das pessoas e da maioria das empresas, por ser muito influenciado pelos preços das matérias-primas.

O IPCA, portanto, é claramente um índice superior ao IGP-M para locadores e locatários. Por que, então, o IPCA não é usado em lugar do IGP-M? Costume. É o padrão dos contratos. Ninguém pensa muito no assunto.

Neste contexto, um “empurrãozinho” do governo pode levar a sociedade para um equilíbrio melhor. Estabelecer um índice é a melhor alternativa? Talvez não. Mas deixar do que jeito que está pode ser uma alternativa ainda pior, em um mundo onde a “livre negociação” é exercida por pessoas que muitas vezes nem sabem a diferença entre o IGP-M e o IPCA.

Achei fracas as objeções elencadas na reportagem. Vejamos:

1. “A imposição de um índice “engessaria” o mercado”.

Bem, hoje temos um mercado “engessado” no IGP-M. Apenas trocaríamos o tipo de gesso. A livre negociação entre as partes esbarra, como dissemos acima, na ignorância sobre os índices disponíveis no mercado.

2. “Insegurança jurídica”.

Não vejo como essa lei poderia afetar a segurança jurídica dos contratos, a não ser que fosse retroativa, o que não é o caso.

3. “Expectativa frustrada de retornos em IGP-M por parte de investidores em fundos imobiliários”.

Bem, nesse caso há uma confissão implícita de que o IGP-M é um índice que roda mais alto do que o IPCA. Só que esta é uma não questão: se os reajustes forem mais altos do que a capacidade de pagamento dos locatários, os imóveis ficarão vazios. E é melhor um aluguel reajustado pelo IPCA do que um imóvel vazio. O que temos visto é que essa “expectativa de retorno” dos fundos imobiliários se frustrou mesmo tendo o IGP-M como indexador. No final, o que acaba mandando é o mercado, independentemente do indexador dos contratos. Além disso, a volatilidade não é amiga do investidor: o IPCA permite ter uma previsibilidade maior sobre o fluxo de caixa, o que sempre é desejável.

4. “Risco de desabastecimento e preços elevados”.

Você acha mesmo que um locador vai deixar de alugar o seu imóvel porque o indexador agora é o IPCA e não o IGP-M? Não vejo risco de “desabastecimento”. Ainda mais porque os contratos têm prazo determinado, normalmente 30 meses. Depois disso, vale novamente o mercado. Se o aluguel estiver muito defasado, o locatário pode renegociar e, no limite, pedir o imóvel de volta. Aliás, como sempre foi, não será a mudança do indexador que mudará isto.

Enfim, sempre torço o nariz para intervenções do governo no funcionamento dos mercados. Mas, neste caso específico, acho que vale um “empurrãozinho” para que o mercado assuma um equilíbrio melhor para todos. Talvez Richard Thaler tivesse uma ideia melhor para desenhar essa política. Mas, na ausência do Prêmio Nobel, é o que temos para o momento.

Mr. Spoc no comando

Costumo apreciar as análises do Cláudio Adilson. Mas dessa vez serei obrigado a abrir divergência.

Neste artigo, o articulista condena as premissas do liberalismo, de A a Z. Afirma que há evidências empíricas abundantes de que os mercados, deixados livres, não levam ao “bem-estar”, o que quer que isso signifique.

A solução? Governos que investem com taxas de retorno satisfatórias. É um pouco como dizer que há evidências de que a democracia não resolveu nossos problemas, então seria melhor uma ditadura que tomasse as decisões corretas. É o velho sonho dos tecnocratas: governos dirigidos por clones de Mr. Spoc, tomando as decisões mais racionais no lugar desses seres humanos irracionais.

Até acredito que em países como Noruega ou Japão, onde há um sentido de bem-estar coletivo mais desenvolvido, a coisa possa ter alguma chance de funcionar. Mas, por algum misterioso motivo, Cláudio Adilson acredita que esse tipo de governo pode existir em países como o Brasil. Tivemos “políticas pró-crescimento” à vontade durante os governos lulopetistas e colhemos uma década perdida.

A verdade é que nunca experimentamos mercados verdadeiramente livres no Brasil. Temos um crony capitalism em que os amigos do rei se beneficiam das “políticas pró-crescimento” em detrimento do bem-estar geral da sociedade. Além disso, pagamos o custo de um estado de bem-estar social sem termos antes ficado ricos para custea-lo.

Gastamos 9 pontos percentuais do PIB no ano passado injetando dinheiro na veia da economia. Conseguimos, com isso, aumentar o PIB em uns 4%, considerando a diferença da queda do PIB brasileiro (-4,1%) em relação ao PIB de seus pares, que recuaram, em média, cerca de 8%. Cabe a questão: esse crescimento é permanente? Consegue ser sustentado no tempo? Desconfio da resposta, mas vamos conferir daqui a 5 anos.

Cláudio Adilson diria que esses 9 pontos do PIB não foram investidos em projetos com “retorno satisfatório”. Bem, talvez Mr. Spoc seja convidado a fazer parte do governo no lugar do Guedes.

O verniz do liberalismo

My Fair Lady foi um fenômeno em seu tempo: levou 8 estatuetas em 1965, incluindo a de Melhor Filme. Conta a história de um professor de linguística que aposta com um amigo que conseguiria disfarçar a origem de qualquer pessoa através de treino de fala. Para tanto, pegam uma vendedora de flores que trabalha nas ruas de Londres, uma mulher do povo, para fazer a experiência. Se, em 6 meses, ela pudesse frequentar uma festa da alta sociedade londrina sem ser desmascarada, o professor ganharia a aposta.

Guedes fez a mesma coisa com Bolsonaro. Ou melhor, neste caso, foi Bolsonaro que contratou Guedes para lhe dar um banho de loja, não de domínio formal da língua, mas de liberalismo. O desafio era fazer Bolsonaro desfilar pelo cenário brasileiro sem acusar sua origem corporativista e estatista.

Em um Roda Viva em julho de 2018, o então candidato Bolsonaro foi questionado com a típica pergunta sobre o legado que gostaria de deixar com o seu governo (o vídeo está disponível no YouTube, a pergunta é logo a primeira). Bolsonaro viaja na resposta, aborda todos os pontos de seu programa, o que leva o jornalista a repetir a pergunta: “mas e se tivesse que escolher um único legado, qual seria”. Bolsonaro responde sem titubear: “que a nossa economia passasse a ser liberal, esse é o nosso sonho”.

Estava feita a transformação, o professor Higgins tupiniquim aparentemente havia ganho a aposta.

Mas descobriu-se, com o tempo, que Bolsonaro havia passado apenas no teste do primeiro baile, o do discurso. Nos bailes seguintes, que exigiam ações concretas, o discípulo falhou miseravelmente.

O tempo encarregou-se de mostrar que a linguagem não muda a pessoa. Assim como o professor Higgins mudou a forma de falar de sua discípula mas não a pessoa que ela era, Guedes conseguiu envernizar Bolsonaro, mas não mudar profundamente as suas convicções.

Liberalismo engana-trouxa

“Ou como disse o presidente da Petrobras, há questão de poucos dias, ‘eu não tenho nada a ver com caminhoneiros, eu aumento preço aqui e não tenho nada a ver com caminhoneiro’. Foi o que ele falou, isso vai ter uma consequência, obviamente”.

Não foi o aumento dos combustíveis que detonou a demissão de Castello Branco. O motivo da demissão foi a frase reproduzida acima por Bolsonaro em sua live. O presidente já tinha avisado que não interviria nos preços. Tanto que anunciou um corte de impostos, com Guedes agora tentando resolver a quadratura do círculo para implementar a brilhante ideia presidencial.

O futuro ex-presidente da Petrobras resolveu, de uma hora para a outra, fechar de uma vez todo o gap dos preços do diesel, 15%. E, além disso, deu de ombros acintosamente para os caminhoneiros. Não consigo imaginar outro motivo para esses atos do que o popular “saco na lua”, que normalmente dá origem ao ato de “chutar o pau da barraca”. Há alguns dias, veio à tona uma mal explicada “nova política de reajuste de preços” com periodicidade anual, e que não era de conhecimento do mercado. Enfim, dá a impressão de que da missa não conhecemos a metade.

Salim Mattar e Paulo Uebel, ex-responsáveis respectivamente por privatizações e reforma administrativa dentro do ministério da Economia, pediram o chapéu de maneira discreta e amigável quando constataram que suas pastas não faziam sentido nesse governo. Castello Branco, por sua vez, decidiu forçar a sua demissão, e Bolsonaro não seria Bolsonaro se não o demitisse.

As três demissões representam rigorosamente a mesma coisa: a falta de compromisso deste governo com a pauta liberal. Castello Branco resolveu escancarar o ponto para quem ainda estava iludido.

O maior estelionato eleitoral da história

Hoje temos, no Valor, um pouco dos bastidores da promessa de Bolsonaro de não privatizar a Ceagesp. Além de fustigar infantilmente um de seus 145.897 adversários políticos, o governador João Doria, às custas do erário público e do sofrimento dos paulistanos, Bolsonaro também está consciente de que a Ceagesp, “tem condições de se sustentar, de dar lucro”. É o que afirma seu atual presidente, Ricardo Mello Araújo, nomeado por Bolsonaro no último mês de outubro.

A coisa toda está errada de várias formas diferentes e combinadas.

Em primeiro lugar, a conta estritamente financeira. Mello Araújo promete 8 milhões de lucro no ano que vem. Seria um portento, dado que a Ceagesp vem dando prejuízos há 4 anos. Mas vamos assumir que sejam mesmo 8 milhões. Qual o custo do capital empatado nesse elefante branco? Pelo menos 5% ao ano, que é o atual custo implícito da dívida pública. Ou seja, 8 milhões significaria um patrimônio de, no máximo, 160 milhões. Qualquer valor acima disso, a rentabilidade do capital seria menor do que o necessário para pagar o custo do capital. Em outras palavras, o país estaria se endividando para sustentar um negócio com retorno menor do que os juros pagos. Alguém estaria sendo subsidiado. E não seríamos nem eu e nem você, caro leitor pagador de impostos. Não sei por quanto a Ceagesp seria privatizada, mas desconfio que o valor seria bem maior do que esses 160 milhões.

O segundo ponto é o, digamos, estilo de gestão estatal. A Ceagesp tem silos ociosos. O que faria uma empresa privada? Provavelmente, acionaria sua área comercial para buscar clientes. O que faz o gestor da estatal? Busca deputados do interior do Estado que “conhecem” empresários. Que tipo de relação que podemos esperar de negócios gerados por deputados? Pois é.

Por fim, tem a questão ideológica. O presidente da Ceagesp (nomeado por Bolsonaro agora em outubro, não custa lembrar) levanta a questão “estratégica” do entreposto comercial. “Não podemos ficar reféns dos empresários”.

Caraca! Não consigo pensar em nada mais PSOL do que isso! Nessa linha, talvez devêssemos estatizar todo o agronegócio brasileiro. Afinal, não podemos ficar reféns dos empresários em algo tão estratégico quanto a alimentação que chega na mesa do povo. E o que dizer da água, eletricidade, etc? No limite, tudo é estratégico.

Lembro do entusiasmo de um colega farialimer quando Bolsonaro ganhou a eleição. Seria, segundo ele, o primeiro governo verdadeiramente liberal em 500 anos de história brasileira. Dizia que FHC tinha privatizado contra suas convicções, porque era necessário, não por gosto. Bolsonaro não. Bolsonaro iria privatizar tudo por convicção. Este era o humor do mercado financeiro, na época. Hoje, dois anos depois, tendo Salim Mattar abandonado o barco e Bolsonaro tendo nomeado esse dinossauro para a presidência da Ceagesp, não consigo segurar a gargalhada. Como o farialimer é ingênuo e crédulo.

“Bolsonaro liberal” é um dos maiores estelionatos eleitorais da história.

Vencendo um debate sem ter razão

Schopenhauer foi um filósofo cético alemão do século XIX. Uma de suas obras traduzidas no Brasil é um livrinho chamado “Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão”. Ali, o filósofo descreve 38 estratagemas para vencer qualquer debate de maneira fraudulenta.

Lembrei-me de Schopenhauer ao ler duas chamadas de primeira página do Valor de hoje. Na primeira, o CEO da Magazine Luiza diz que “a iniciativa privada não é a solução de todos os problemas”.

Na segunda, um “especialista em desigualdade” afirma ter medo que as políticas neoliberais do governo aumentem a dita-cuja.

Vários estratagemas de Schopenhauer estão presentes. O primeiro e mais óbvio é a “ampliação indevida”, que consiste colocar na boca do adversário uma generalização que ele não fez, para daí refutar toda a tese. Não vi nenhum liberal dizendo, por exemplo, que cada um deve cuidar de sua segurança, como afirma Trajano. Pelo contrário, o Estado deveria sair de atividades empresariais para dedicar-se justamente a campos onde deve ter o monopólio, como a segurança pública. Ao ampliar o escopo falsamente, Trajano frauda a discussão.

Outro estratagema é o “salto indutivo”. A partir de uma premissa particular aceita, assume-se o geral como verdade. Trajano também usa esse estratagema, ao dizer que privatizar a educação é ruim porque ele “não quer ter universidade corporativa”. A premissa é verdadeira, não cabe a uma empresa de um ramo qualquer substituir o papel das universidades, mas daí a deduzir que somente o Estado pode fornecer ensino de qualidade constitui um salto indutivo. Seria como o dono de uma universidade ou escola particular dizer que não quer vender eletrodomésticos em seu estabelecimento, deduzindo daí que só o Estado tem essa capacidade.

Já o nosso “especialista em desigualdade” lança mão da “manipulação semântica” e do “rótulo odioso” como estratagemas. Neste caso, atribui-se ao termo um conjunto de significados que nada tem a ver com o conceito original, mas que prova a tese do argumentador. Assim, o próprio uso do termo serve para ganhar o debate. Isso funciona ainda melhor se o termo for “odioso”. É o caso da palavra “neoliberal”, demonizada por três décadas de doutrinação petista. O neoliberalismo é justamente a mitigação do liberalismo laissez faire, em que se admite que o Estado tem um papel importante na redução da desigualdade das condições iniciais dos agentes econômicos. Assim, as transferências de renda e a educação têm um papel central no neoliberalismo, o justo oposto do que o “especialista em desigualdade” quis dizer ao usar o termo.

Por fim, resta fazer um comentário sobre o fato de um jornal como o Valor Econômico, o maior jornal de finanças do país, estampar em sua capa duas chamadas contra o “liberalismo”. Como se a agenda liberal não estivesse sendo implementada (e mesmo assim muito mal e mal) por absoluta falta de outra alternativa, diante de um Estado que perdeu toda a sua capacidade de exercer minimamente suas funções depois de 30 anos de “políticas distributivas”. O Valor, assim como todos os “especialistas” que execram o liberalismo deste governo, usam o estratagema “uso de premissa falsa” para vencer o debate: a falsa premissa é assumir que a escolha pelo liberalismo é ideológica, e não por necessidade. Sendo ideológica, a coisa fica no “debate das ideias”, enquanto aquilo que não deu certo no passado continua não dando certo no presente e, pelo andar da carruagem, continuará não dando certo no futuro. Como já disse Paulo Guedes mais de uma vez, tentamos políticas social-democratas por 30 anos e não saímos muito do lugar em termos de enriquecimento e distribuição de renda; será que não podemos dar uma pequena chance para o liberalismo?