Tic-tac

O Estadão estampa como sua manchete principal um fenômeno que vem chamando a atenção: o crescente número de jovens vivendo na casa dos pais, ou mesmo dos avós.

Há muitas explicações, mas todas se resumem a uma só: renda disponível.

Coincidentemente, o economista Luís Eduardo Assis escreve artigo sobre a necessidade de uma nova reforma da Previdência.

Em 2022, o déficit da Previdência foi de R$ 375 bilhões, sendo 28% do setor público e o restante do setor privado. Detalhe: apenas 8% dos beneficiários trabalharam no setor público. Coincidentemente, a manchete da Folha hoje chama a atenção para o valor da aposentadoria dos militares.

Estes R$ 375 bilhões são cobertos com impostos e dívida pública, e referem-se apenas ao rombo na esfera federal. Para termos uma ideia de ordem de grandeza, o Fundeb, que reúne o montante destinado a custear o ensino básico, reunirá estimados R$ 264 bilhões este ano, sendo R$ 226 bilhões de Estados e municípios e o restante do governo federal. Ou seja, o rombo da Previdência na esfera federal é maior do que todo o dinheiro gasto no ensino básico brasileiro.

Segundo estudo da Cepal, mencionado por Assis, o Estado brasileiro gasta 6,1 vezes mais com nossos idosos do que com os nossos jovens, contra média global de 2,4 vezes. Trata-se, como diz o economista, de escolha política legítima e, como qualquer escolha política, traz as suas consequências. Uma delas é a tendência de os jovens cada vez mais permanecerem morando com os mais velhos por falta de renda.

Sim, precisaremos de uma nova reforma da Previdência. A anterior foi tímida, e a conta simplesmente continua não fechando. Tic-tac-tic-tac.

Alguém errou. E não foi o mercado

O economista Luís Eduardo Assis coloca o problema da dívida pública como uma simetria de duas visões falsas: de um lado estaria o governo, que acreditaria que mais gastos geram mais crescimento e, portanto, a dívida seria autossustentável; de outro, o mercado, que pensaria no governo como uma empresa, podendo, portanto, ficar insolvente. Lamento informar, mas o economista está errado com relação ao mercado. Vejamos.

Quando analisamos uma empresa, uma métrica sempre utilizada é a dívida líquida dividida pelo EBITDA (lucro operacional antes de juros e impostos). Seria mais ou menos uma medida de quantos anos a empresa levaria para pagar suas dívidas, se usasse todo a sua geração de caixa para isso. Não existe um número mágico que signifique que a empresa vai quebrar, depende muito do setor e da dinâmica da economia, mas índices acima de 3 já começam a chamar a atenção dos financiadores, principalmente com juros altos.

No caso do Brasil, a dívida líquida (dívida total menos reservas internacionais) é de aproximadamente R$ 4,3 trilhões (estou considerando o total das reservas, mas sabemos que, em uma crise de dívida, as reservas evaporam rapidamente).

E com ralação ao EBITDA do Brasil? Quando medimos o EBITDA de uma empresa, estamos interessados em saber quanto sobra de caixa depois de a empresa pagar funcionários e matérias-primas. Ou seja, o lucro que a operação da empresa está gerando depois de pagar todas as suas obrigações não financeiras. No caso de um país, isso seria equivalente ao superávit primário. Que, no Brasil, hoje, é um déficit primário estrutural, apesar do superávit conjuntural do ano passado. Ou seja, no estado atual, não teria como o Brasil pagar a sua dívida, se fosse uma empresa.

Mas digamos que o mercado tenha boas expectativas, e esteja projetando um superávit primário de 2% do PIB em algum momento no futuro (o que hoje parece um sonho em uma noite de verão). Isso significaria algo como R$ 150 bilhões. Com esse superávit, a relação dívida líquida/EBITDA seria de aproximadamente 40 vezes. Não, você não leu errado: com 2% de superávit primário, o Brasil levaria cerca de 40 anos para pagar sua dívida.

Se os financiadores estivessem fazendo um paralelo com uma empresa, já teriam deixado de financiar o País há muito tempo. Mas os financiadores, ao contrário do que diz Assis, sabem que um país não quebra. Por isso, apesar desses números horrorosos, continuam a financiar a dívida pública com as taxas mais baixas do mercado brasileiro. O que os financiadores sabem é que o “calote” vem em forma de inflação. Por isso, a taxa de juros para prazos longos carrega uma incerteza grande quanto ao nível da inflação no futuro.

Assis cai no mesmo erro de sua fonte, André Lara Resende, a respeito das motivações do mercado. Lara Resende defende a tese de que os juros são altos porque os financiadores da dívida têm a visão errada de que o governo pode quebrar, e pedem um prêmio pela insolvência. Não. O prêmio pedido é para a inflação crescente no futuro, que virá com certeza se “ideias” como as de Lara Resende prosperarem.

O direito de errar

O Nobel Richard Taler, especialista em economia comportamental, condensou em seu livro Nudge (que poderia ser traduzido por “empurrãozinho”) as suas ideias de como levar os seres humanos a tomarem melhores decisões de investimento. E não só. Na verdade, ele aborda vários aspectos da vida, e demonstra como pequenos truques podem levar a melhores decisões.

Um dos seus primeiros exemplos é o da alimentação nas escolas. Ele sugere que os alimentos menos saudáveis estejam longe do alcance visual das crianças. De fato, o consumo desses alimentos diminuiu onde o esquema foi testado. Outro exemplo: em um país da África com alto índice de acidentes de ônibus intermunicipais, colou-se um adesivo com os dizeres “grite com o motorista se ele estiver dirigindo muito rápido”. nas costas dos bancos. Ônibus com esses adesivos tiveram menos acidentes.

A isso Taler chama de “arquitetura da escolha”. Certos truques são projetados para que as pessoas evitem os seus instintos ou inércia e tomem a melhor decisão para si. Os críticos desse tipo de “empurrãozinho” dizem que se trata de algo autoritário, pois alguém teria o poder de induzir as decisões que outros tomam, como se soubessem o que é melhor para você. Mas poucos defenderão que crianças comendo porcarias ou ônibus sendo guiados em alta velocidade sejam decisões sábias.

Todo esse preâmbulo vem a respeito de uma frase usada por Luís Eduardo Assis em seu artigo de hoje, sobre o embate entre Lula e o Banco Central. Assis afirma, no melhor estilo libertário, que é legítimo o direito de Lula de errar, e que tal erro seria punido nas eleições de 2026. O que dizer?

A autonomia do BC é uma “arquitetura da escolha”. Com esse desenho, o BC é levado a tomar decisões de acordo com sua missão, que é a de defender a estabilidade da moeda. No entanto, ao contrário dos exemplos de Taler, essa arquitetura não foi definida por terceiros. O próprio Estado brasileiro, através de seus representantes, o fez. Aqui, a coisa se parece mais com os marinheiros do barco de Ulisses, que enchem seus ouvidos de cera para que não escutem o canto das sereias. Trata-se de medida auto-infligida, pois a experiência mostra que, de outra forma, o resultado é desastroso.

Lula, amarrado ao poste do navio pelas cordas da autonomia do BC contra a sua vontade, grita e se esgoela para que seus marinheiros tirem a cera dos ouvidos, pois o canto da sereia do crescimento econômico é belo, e um pouco mais de inflação não faz mal a ninguém. No entanto, ao contrário de decisões que afetam somente a própria vida, Lula quer levar o País inteiro para o desastre. Ciclos eleitorais já se mostraram insuficientes para levar o navio da economia a bom porto. Pelo contrário, ciclos eleitorais avivam a chama do populismo. Por isso, o Estado brasileiro optou pela arquitetura da autonomia do BC.

Lorotas críveis

Luis Eduardo Assis descreve com rara precisão a dinâmica do mercado financeiro. Já escrevi muito aqui sobre a natureza do mercado e seus atores, mas não sobre como os seus operadores tomam decisões. Assis compara o mercado com uma ”sala de espelhos”, em que cada operador procura antecipar a decisão de seus pares. Trata-se, eu acrescento, de uma competição, em que os operadores tentam vencer seus adversários, atraindo, assim, mais recursos do dono do jogo, o investidor. É este, em última instância, o responsável pelos incentivos que comandam os movimentos do mercado.

Assis afirma, cinicamente, que o mercado está disposto a acreditar em qualquer “lorota crível”, o que é a mais pura verdade. Para entender o que ele quis dizer, será útil recordar a dinâmica da crise do subprime, em 2008, brilhantemente retratado por Michael Lewis no livro The Big Short, e que se transformou no filme A Grande Aposta.

Lewis conta como um punhado de operadores do mercado notou que havia algo de podre no mercado imobiliário norte-americano, e começou a apostar contra. Especificamente Michael Burry, gestor de um hedge fund chamado Scion Capital, começou a fazê-lo já em 2005! Ele estava correto em seu diagnóstico, mas as suas apostas só começaram a dar frutos quase 3 anos depois. Resultado: ele quase quebrou antes de poder mostrar que estava correto. Os donos do jogo (os investidores) não entendiam aquela aposta e pressionavam o gestor para ter o seu dinheiro de volta. O final da história foi feliz (para ele), mas, na maior parte das vezes, não é assim.

De modo geral, os investidores não têm paciência ou estômago para ir contra a tendência geral do mercado, e é esse incentivo que é dado para os operadores. São poucos os operadores que têm o poder que tinha Michael Burry, de fechar o seu fundo para resgates. Assim, o operador pode até estar correto em sua visão, mas de nada adianta se não tiver mais patrimônio para gerir, porque foi tudo resgatado.

Um jornalista da Globo News chamou o mercado de bolsonarista. Ele certamente esqueceu que a bolsa subiu durante 5 anos seguidos, entre 2003 e 2007, quando Lula era bom em contar “lorotas críveis”. E, mesmo quando os sinais de que a vaca da economia já apontava para o brejo que seria o governo Dilma, Lula emplacou a maior capitalização da história até então. O mercado, mesmerizado pelo pré-sal, entrou de cabeça na capitalização da Petrobras, fechando os olhos para os truques contábeis e o uso declarado da Petrobras para fazer a política industrial do governo petista. Quem apostasse contra estava arriscado a ficar “de fora da festa”, em mais uma demonstração da sala de espelhos mencionada por Assis.

Ocorre que a realidade, no final, sempre se impõe. Quando começa a ficar claro que o desastre se avizinha, um a um dos operadores vão tirando seu time de campo, cautelosamente no início, atabalhoadamente no fim, gerando o efeito manada. Todos sempre balanceando o risco de ficar fora da festa com o risco de ser o último a ficar para pagar a banda e apagar as luzes. Os investidores, claro, não gostam de nenhuma das duas hipóteses.

“Lorotas críveis” fazem o papel do DJ que anima a festa. No final, a realidade é incontornável, mas, até que chegue, investidores e operadores dançam conforme a música. Não, o mercado não é bolsonarista. O mercado só gosta de uma história bem contada.

O moto-perpétuo da economia

Luis Eduardo Assis, ex-diretor do BC, nos brindou com um artigo no Estadão de 26/10/2020, em que defende que não há problema em um governo se endividar na própria moeda, pois não haveria risco de calote. Em outras palavras, comprar títulos de um governo na moeda local não teria risco.

A lógica é a seguinte: “um aumento de gastos públicos equivale à criação de depósitos bancários, que elevarão as reservas dos bancos, que serão utilizadas para a compra de títulos da dívida pública, que financiarão o gasto inicial”. O trecho segue abaixo.

Se perdeu? Eu explico: os gastos públicos vão, de uma maneira ou de outra, parar no sistema bancário (as empresas ou pessoas destinatárias dos gastos públicos acabam depositando esse dinheiro nos bancos). Os bancos não tem outra alternativa a não ser comprar títulos públicos com esse dinheiro, o que financiará os gastos do públicos. Fecha-se o círculo. Qual o problema com esse raciocínio?

O problema é que, se fosse assim, estaria inventado o moto-perpétuo. Como sabemos, o moto-perpétuo é aquele aparelho imaginário que funciona com a própria energia que gera. Por exemplo, um motor que gera energia elétrica e usa essa energia para o seu próprio funcionamento, não necessitando de fonte externa. Já imaginou? Seria o fim de qualquer crise de energia. Mas não, infelizmente o moto-perpétuo não existe.

Se os governos pudessem emitir dívida em sua própria moeda sem que houvesse o risco de calote, não haveria país pobre no mundo. Seria o “moto-perpétuo econômico”: o governo emite dívida, faz os gastos públicos, e esse mesmo dinheiro volta para os cofres do governo, que inicia novamente o processo. Onde está o furo?

O furo está em que os gastos do governo normalmente destroem valor. E é a criação de valor que gera crescimento econômico, não o dinheiro criado do nada pelo governo através da emissão de dívida pública. O lucro, no final, é que é a medida do valor criado.

Se os negócios obtêm menos dinheiro do que investiram para produzir o que quer que seja, se inviabilizam e morrem. O único ente que “não morre” é o governo. Os países não morrem porque podem emitir dinheiro e dívida e podem forçar o recolhimento de impostos. De modo que o prejuízo do governo é coberto pelo aumento do dinheiro em circulação (inflação), pelo aumento da dívida e pelo aumento dos impostos. Mas, toda vez que faz isso, na verdade o governo está distribuindo o seu prejuízo pela sociedade que o financia.

Poderíamos pensar no exemplo mais extremo de contratar operários para cavar buracos e depois tapá-los, mas vamos usar um exemplo mais real e indiscutível de gasto do governo: investimentos em educação. É óbvio que o investimento em educação é essencial. Mas é preciso que seja bem feito, de modo que o valor criado pela mão de obra formada seja maior do que o investimento realizado. Caso contrário, o governo terá prejuízo, da mesma forma que teria se tivesse remunerado pessoas para cavar buracos e depois tapá-los. E esse prejuízo será distribuído pela sociedade que financia o governo. Afinal, como sabemos, governos “não morrem”.

Voltando ao artigo, o autor se pergunta o que podem fazer os financiadores da dívida pública a não ser continuar financiando a dívida pública. Ao lembrar que os donos do capital podem simplesmente ir embora com o dinheiro, Assis considera que o câmbio flutuante seria um antídoto mais do que suficiente para evitar esta fuga. O câmbio desvalorizado funcionaria como um pedágio absurdamente caro para quem quisesse transitar por essa estrada que leva o dinheiro para o exterior. Afinal, quem iria retirar o seu dinheiro do país se tivesse que comprar dólar, por exemplo, a R$ 10,98? (Veja o trecho abaixo – aliás, este número está incorreto, pois não considerou a inflação nos EUA. O correto é corrigir pelo diferencial da inflação entre Brasil e EUA, o que daria algo próximo a R$ 7,60. Mas, segue o jogo.)

Esta é outra falácia. Se esta mesma pergunta fosse feita há um ano, usando R$5,00 como valor do dólar, certamente a resposta seria “haveria menos interesse” em enviar dinheiro para fora. No entanto, o capital continua saindo não com o dólar a R$ 5,00, mas a R$ 5,80. Ocorre que os investidores não querem saber o nível atual do dólar, mas se este nível vai ficar por aí ou vai subir ainda mais.

Estive na Argentina há quase 7 anos, quando o dólar estava sendo negociado a 10 pesos. Era o dólar Maradona. Hoje, o câmbio oficial está em 75 pesos e o paralelo está o dobro disso. Se os investidores avaliarem que R$ 10 é um nível daí para cima, vão continuar saindo do mesmo jeito. E, convenhamos, contar com o dólar a R$ 10 para evitar a saída de capitais é o mesmo que quebrar as pernas de um menino para que ele pare de correr. Se chegar nesse nível, é que muita coisa deu errado antes. E se continuar errado, não há motivo para achar que o dólar pare em R$ 10. Assim como não há motivo para achar que o dólar vai parar em R$ 5,80 se não fizermos a lição de casa.

Economistas como Luis Eduardo Assis põem a ênfase no crescimento econômico, e chamam de “fundamentalistas” os que estressam a questão fiscal. De fato, somos “fundamentalistas”, no sentido de que colocamos a ênfase nos fundamentos. Quando vamos construir uma casa, colocamos primeiro os alicerces. O equilíbrio fiscal é o alicerce da casa. A casa é o crescimento econômico. Assim como não há casa sem alicerce, não existe crescimento sem equilíbrio fiscal. Ninguém é maluco de achar que colocar os alicerces é o suficiente para ter uma casa. Nem ninguém são tentará construir uma casa sem alicerces. Uma coisa depende da outra. Essa dicotomia entre equilíbrio fiscal e crescimento econômico é simplesmente falsa.

O porquê do teto de gastos

O Teto de Gastos virou o novo vilão dos defensores dos fracos e oprimidos. Há alguns anos era o superávit primário. Como este não passa hoje de uma miragem, o Teto de Gastos passou a ser o inimigo a ser combatido.

Neste artigo, Luís Eduardo Assis, ex-diretor do BC e ex-executivo do mercado financeiro, coloca-se no lado escuro da força, e une-se às vozes, entre as quais a mais estridente é a de Mônica de Bolle, que defendem o fim do Teto de Gastos como política fiscal.

Os defensores do fim do Teto de Gastos se dividem basicamente em dois grupos: o primeiro afirma que não é preciso colocar nada no lugar, enquanto o segundo admite que alguma coisa precisa substituir o Teto.

O primeiro grupo acredita que não há limite para o endividamento de um país que emite a sua própria moeda. Afinal, os agentes pagam seus impostos nesta moeda, retornando para o governo aquilo que foi emitido.

Para o segundo grupo, há algum limite para o endividamento e, portanto, o Teto de Gastos precisa ser substituído por alguma outra regra ou dinâmica que limite esse endividamento.

Assis não se decidiu bem em que grupo está. Primeiro fala que o orçamento de um país não é comparável ao orçamento de uma família, pois o país emite a sua própria moeda. Está implícita nessa afirmação a não limitação para o endividamento. Mas depois, o autor do artigo diz que há um limite. Fiquei confuso.

De qualquer maneira, não vou perder tempo discutindo com o primeiro grupo. Se não há limite, a própria Economia, que é o estudo da aplicação de recursos escassos, perde o seu sentido. Afinal, basta imprimir dinheiro suficiente para que todos fiquem felizes neste mundo sem restrição orçamentária.

Vamos para o mundo real, em que existem limites. Para tanto, vamos fazer uma pequena digressão.

O Plano Real foi o único plano bem-sucedido de estabilização monetária da história do Brasil. O seu sucesso veio não tanto do truque da URV, que superindexou a economia para depois transformar o próprio indexador em moeda, mas principalmente da disciplina fiscal que se seguiu. Inúmeros esqueletos fiscais, principalmente nos Estados, foram tirados dos armários, e a carga tributária foi aumentada de maneira significativa para bancar os gastos do Estado. Ou seja, houve uma formalização da carga tributária, que estava escondida sob a forma de inflação.

Já na década dos 2000, a política de superávits primários foi mantida graças não mais ao aumento da carga tributária, mas pelo aumento das receitas proporcionado pelo grande ciclo das commodities, que surfamos durante vários anos. As despesas aumentaram no mesmo passo, mas como era a época das vacas gordas, a conta fechava.

Veio o início dos anos 2010, e o grande ciclo das commodities perdeu a sua força. Continuamos a pedalar a bike por um algum tempo, primeiro queimando a gordura e, depois, como sabemos, fazendo fraude contábil, que acabou sendo o detalhe técnico para o impeachment. A partir de 2015, começamos a fazer déficits primários, o que significa que gastamos mais do arrecadamos antes mesmo de pagar os juros da dívida. O resultado é o aumento da dívida pública.

Alguma coisa precisava ser feita para dar a sinalização para os credores (aqueles seres que insistem em ter alguma garantia de que terão o seu dinheiro de volta em algum momento no futuro) de que a dívida estava sob controle. Daí nasce o Teto de Gastos.

Abre parênteses: vou falar aqui com aqueles que concordam que há restrições orçamentárias tanto para famílias quanto para países, ok? Aliás, quanto mais pobre for um país, quanto mais a sua história for de calotes e volatilidade, mais essas restrições se aplicam. Os EUA, o Japão, a Alemanha têm menos restrição orçamentária que países como o Brasil, pois são mais estáveis e confiáveis. Aliás, isso vale também para famílias, não é mesmo? Fecha parênteses.

Existem quatro maneiras de um país estabilizar a sua dívida. Duas são virtuosas, duas são viciosas.

As virtuosas são aumentando receitas e/ou diminuindo despesas. As viciosas são inflação e calote. Nós estamos discutindo as formas virtuosas porque não queremos chegar nas formas viciosas. A Argentina, por exemplo, tem uma inflação de 50% ao ano mesmo com uma recessão tão profunda quanto a nossa, e está, neste momento, “renegociando” a dívida com seus credores. Ou seja, dando calote.

Nas décadas de 90 e 2000 nós aumentamos receitas, seja através do aumento de impostos, seja através de crescimento econômico. Na década de 2010, as receitas pararam de aumentar, pois não havia mais espaço para o aumento da carga tributária e crescimento econômico é apenas uma miragem. Resta apenas o controle dos gastos. Essa é a lógica do Teto de Gastos.

Assis, assim como De Bolle e outros que defendem o fim do Teto, quando confrontados com a pergunta sobre a alternativa, apenas balbuciam platitudes que servem para qualquer ocasião. É o que vemos no último parágrafo do artigo, onde o colunista diz que o país deveria acabar com o corporativismo e ser mais justo na distribuição dos impostos. Sim, e eu sugiro também a paz e a harmonia entre os povos. Também sugere aumento da carga tributária, uma das maiores do mundo e a maior dentre os emergentes, mas isso não vou nem comentar.

Que há problemas de corporativismo e de distribuição dos benefícios sociais não há dúvida. Mas o Teto de Gastos não se propõe a resolver isso. Seu objetivo é simplesmente controlar a trajetória da dívida pública. Dizer que existem outros problemas que o Teto não resolve e, por isso, deveria ser eliminado, não é uma solução, é só um sofisma.

O Brasil é um alcoólatra, e o álcool são os gastos públicos. Tirar o Teto de Gastos significa deixar a garrafa ao alcance. Se não houver outro mecanismo de controle, precisaríamos confiar na palavra do governo e do Congresso de que não tocariam mais na garrafa. Acredite se quiser.

Anabolizante

Luis Eduardo Assis, ex-diretor do BC e egresso do mercado financeiro, vem defendendo, não é de hoje, o investimento público como o motor para destravar a economia. Em artigo de hoje, chama de “fundamentalismo liberal” o esforço de diminuição do papel do BNDES na economia. Segundo o economista ortodoxo com ideias heterodoxas, o governo Bolsonaro seria tão fundamentalista como o da Dilma, só que com sinais trocados.

Fui dar uma olhada no gráfico do investimento em relação ao PIB (abaixo).

Entre altos e baixos, o investimento vinha caindo desde a década de 70, quando chegou a atingir 10% do PIB. Naquela época, o papel do BNDES era marginal, o dinheiro saia do Tesouro diretamente. Pelo menos era um processo mais transparente de gastos públicos. De qualquer forma, deu no que deu: crise da dívida e década perdida.

Quando ocorreu a crise financeira de 2008, o governo Lula teve uma grande ideia: endividar-se para turbinar o BNDES, que saiu de praticamente zero para quase 10% da dívida em relação ao PIB. De fato, o investimento público saiu de algo como 2,5% do PIB para 4,5%, estabilizando-se em 4% do PIB até 2014. Qual foi o efeito desse aumento no crescimento do PIB, meu caro Assis?

Tal qual um anabolizante aplicado em um doente terminal, o efeito imediato foi uma hiperatividade: crescimento de 7,5% do PIB em 2010, o suficiente para eleger a sucessora de Lula. Depois disso, no entanto, os fatores estruturais predominaram e, apesar de manter os investimentos em 4% do PIB, o crescimento veio declinando, declinando, até chegar nos pífios 0,5% de 2014. A partir de 2015 o castelo de cartas desmoronou, demonstrando cabalmente que manter artificialmente investimentos públicos em uma economia pouco produtiva só cria dívidas impagáveis. Causa-me espécie que haja ainda economistas que defendam esse tipo de coisa.

A Alemanha aprende com o Brasil

Luis Eduardo Assis, ex-diretor do BC, escreve artigo com um assunto sobre o qual já havia lido em outros lugares: o estímulo estatal a indústria local anunciado pelo ministro das finanças da Alemanha.

Segundo Assis, deveríamos aprender com a Alemanha. Afinal, eles têm um sucesso incontestável na indústria e, se eles estão planejando suporte estatal, então deve estar certo!

Seria assim se fosse assim.

O próprio artigo aponta que, de 1991 para cá, a representatividade da indústria no PIB da Alemanha caiu levemente, de 24,9% para 21,1%, enquanto no Brasil despencou de 22,1% para 10,5%. O que deveríamos estar investigando, então, é o que a Alemanha fez de diferente do Brasil nesse período, não aquilo que foi anunciado pelo ministro, cujos resultados conheceremos apenas nos próximos anos.

Confesso que não sei o que a Alemanha fez, mas nós sabemos o que fizemos para destruir a nossa indústria nos últimos 30 anos. O próprio autor do artigo descreve: “juros subsidiados, incentivos fiscais e reservas de mercado”, em grande parte aproveitados por “lobbies poderosos que capturaram o Estado”. Perfeito. E o que temos a aprender com o neo-intervencionismo alemão? Na verdade, parece que eles têm mais a aprender conosco nesse quesito.

O Valor traz uma reportagem sobre como a indústria 4.0 tem tido uma implementação muito lenta no Brasil.

O diagnóstico é a falta de mão de obra qualificada. Talvez a intervenção estatal seja por aí, na formação da mão de obra, e não um fundo para evitar a desnacionalização de empresas, que é o que a Alemanha acabou de fazer. Fora resolver o pesadelo tributário, a infraestrutura precária e todos os outros obstáculos que fazem do industrial brasileiro um herói da sobrevivência.

Há muito o que fazer para chegarmos ao patamar onde hoje se encontra a Alemanha, para daí pensarmos em estímulos diretos à indústria. Os quais, como vimos no caso brasileiro, não servem de nada. O autor do artigo diz que os alemães nos ensinaram a jogar futebol. Não custa lembrar que a seleção alemã foi humilhada na última Copa, sendo eliminada na primeira fase. Arrisco a dizer que, adotando a receita brasileira, a Alemanha arrisca a sua indústria ao mesmo destino.