Concurso de coragem

Coragem. Palavra que dominou, explícita ou implicitamente, o bate-boca institucional entre representantes de duas das instâncias máximas do nosso Estado Democrático de Direito. (Pronuncie essas últimas palavras enchendo a boca, brasileiro).

Mas o que é coragem? Coragem é uma virtude. São Tomás de Aquino definia a virtude como o justo meio entre dois vícios. No caso, a coragem se situa entre a covardia e a temeridade. Coragem é aceitar ou assumir riscos calculados para atingir um fim bom. Não assumir risco algum é covardia, assumir riscos em excesso é temeridade.

Tendo esse pano de fundo em mente, pergunto: que coragem demonstram os ministros do STF ao tomarem as suas decisões? Que risco estão correndo? A resposta é: nenhum. Nenhum ministro será demitido, processado e muito menos morto por suas decisões. O máximo que pode acontecer é um bate-boca em algum aeroporto da vida. E, como estamos acompanhando no caso do ministro Moraes, a coragem (ou temeridade) foi do cidadão que supostamente atacou o ministro, pois agora está enfrentando a mão pesada do Estado brasileiro contra si., que entorta as regras em seu próprio benefício.

A “coragem moral” a que se refere o ministro Barroso é simplesmente o dia a dia de qualquer juiz, que, por definição, não contará com a simpatia de uma das partes de qualquer processo. Se não quer ficar mal com uma das partes, melhor escolher outra carreira. Estufar o peito para afirmar uma “coragem moral” é só uma bravata juvenil.

Se eu tivesse a caneta de Gilmar Mendes também não seria “covarde”, no sentido visto acima. Na verdade, o ministro está exercitando a covardia de uma forma diferente do conceito acima: covardia, além de não assumir riscos, é aproveitar-se de seu poder para intimidar. É o valentão da escola que bate nos menores. Isso, obviamente, não é a definição de coragem, mas de covardia. Nesse sentido, os senadores, estes sim, exerceram as suas funções, no caso, com coragem. Tudo no Brasil acaba no STF, e certamente é corajoso, se não temerário, confrontá-lo.

Por fim, é de se destacar que esse desfile de macheza institucional, esse concurso de mister coragem democrático só tem lugar em uma república de bananas. É o que somos, como demonstrado mais uma vez.

Tudo está em seu lugar, graças a Deus

Mais um tijolinho será recolocado em seu lugar na reconstrução do Brasil com que estávamos acostumados, e que havia sido substituído por um país mais produtivo e eficiente. Enfim, um país irreconhecível.

Depois do marco do saneamento, da reforma do ensino médio, da Lei de Responsabilidade Fiscal, agora é a vez de o imposto sindical voltar ao que era. E o governo nem precisará meter a mão nesse vespeiro. O ministro Gilmar Mendes, que não precisa se preocupar em ganhar a próxima eleição, fez o trabalho. Assim como já havia mudado de ideia sobre a prisão em 2a instância, agora mudou de ideia sobre a constitucionalidade do imposto sindical. Mudar de ideia é direito do ministro, cabe destacar.

Como diz o sábio Benito di Paula, “🎶tudo está em seu lugar, graças a Deus, graças a Deus”. E continua: “🎶Não devemos esquecer de dizer, graças a Deus, graças a Deus”.

Perdeu, mané

O ministro Luis Roberto Barroso afirmou que a empresa que não provisionou impostos a serem pagos no futuro porque o STF poderia derrubar decisão transitada em julgado, “fez um aposta”.

Sim, essa empresa definitivamente fez uma aposta.

Apostou que cobrança de impostos não poderia ser retroativa à lei (ou ao julgamento) que a determina.

Apostou que havia alguma segurança jurídica no País.

Apostou, enfim, que o Brasil era um país sério.

Perdeu, mané.

Empurrando a história

Barroso suspendeu liminarmente, em uma decisão monocrática, uma lei aprovada pelas duas casas do Congresso e sancionada pelo presidente da República. E, aparentemente, sua justificativa não se baseia em qualquer dispositivo constitucional, mas na possibilidade de “fechamento de vagas de enfermeiros”.

Obviamente não sou fã dessa lei. Creio que é o mercado que melhor decide sobre quanto um enfermeiro, ou qualquer profissional, deve ganhar. No caso, trata-se de um mercado competitivo, fragmentado, em que nenhum player empresarial domina a ponto de ter poder de barganha sobre os salários. Qualquer intervenção externa tende a afetar esse equilíbrio, levando, no caso, a demissões e/ou aumento de custos para os usuários.

Mas não é este o ponto aqui. Barroso atua, novamente, com base em suas “boas intenções”, ao invés de se ater ao texto da Lei Maior. Com base nesse entendimento, o salário mínimo deveria também ser revogado. O salário mínimo é um dos principais, senão o principal, motivo para o alto desemprego estrutural brasileiro e o grande grau de informalidade do mercado de trabalho. Assim como qualquer piso salarial artificial, o salário mínimo impede a contratação de uma mão de obra que não tem qualificação suficiente para produzir o tanto que custa. Não há lei que mude essa realidade, infelizmente.

Os políticos brasileiros são demagogos e não entendem as leis da economia. Por isso, produzem leis que, ao fim e ao cabo, prejudicam a população brasileira no longo prazo. Mas um STF voluntarioso não é a solução para este problema. Porque se hoje o ministro Barroso está “empurrando a história” para o lado com o qual eu concordo, amanhã poderá ser o contrário, como no caso do aborto, por exemplo. O ponto é que o Judiciário não pode substituir o Legislativo, seja a que título for.

PS.: podemos estar somente presenciando um jogo de cena, em que Legislativo e Executivo jogam para a torcida e o Judiciário assume o ônus de ser o “bad cop” da história, uma vez que não precisa de votos. Seria menos mal, mas não deixaria de ser um traço de brasilidade de nossas instituições.

O papel do STF no Estado Democrático de Direito

Vem a público a discussão de uma PEC com o objetivo de instituir o Legislativo como casa revisora do Judiciário.

A justificativa é de que o Supremo tem extrapolado o seu quadrado, invadindo a área de competência do poder legislativo ao, digamos, “expandir” os limites da Constituição, interpretando dispositivos constitucionais de modo a aprovar atos que não estão previstos na Carta Maior. O caso da criminalização da homofobia foi o exemplo citado na matéria.

Luis Roberto Barroso é o mais vocal ministro a defender esse papel expandido do Supremo. Em artigo na Folha de São Paulo de fevereiro de 2018, Barroso defende que a mais alta corte do país deve acolher “inequívocas reivindicações da sociedade, não acolhidas [pelo legislativo] em razão de um déficit de representatividade”. Nesse sentido, seria papel do Supremo “empurrar a história”, em momentos em que “a razão humanista deve impor-se sobre o senso comum majoritário”. Pensar o contrário seria submeter-se à “tirania da maioria” e ao “paternalismo moralista”.

Bem, não vou gastar pixels escrevendo como é perigosa para o Estado de Direito uma “tirania da minoria” de 11 iluminados que se auto-concedem o direito de exercer um “paternalismo moralista” sobre a nação. Parece óbvio. Meu ponto é outro: por que agora?

Esses embates entre Supremo e Legislativo no campo dos costumes têm ocorrido de tempos em tempos, mas já faz algum tempo que o último ocorreu. Portanto, não se trata de uma reação imediata a um evento recente. O que nos leva novamente à questão: por que agora?

O único embate à flor da pele neste momento está ocorrendo entre o presidente e o STF. O Legislativo está envolvido porque um dos seus, o deputado Daniel Silveira, teve a sua cassação determinada pelo Supremo, uma clara invasão de competência. Não está na reportagem, mas esta seria, talvez, uma gota d’água que justificaria o timing da apresentação dessa PEC.

É óbvio que essa PEC não tem como prosperar. Seria instituir a anarquia como forma de governo, dado que o Supremo certamente consideraria a nova norma inconstitucional, o que provocaria um impasse institucional insolúvel, restando a dúvida de quem tem a última palavra a respeito das leis do país.

Independentemente da sua aprovação ou não, essa PEC é apenas uma reação ao ativismo judicial do Supremo, que se arvora como a “consciência moral da nação”. Trata-se de um aviso, e agora caberia aos 11 ministros uma reflexão a respeito de seu papel no Estado Democrático de Direito.

Segurando água com as mãos

Certamente você já tentou segurar água com as mãos em formato de concha. É questão de (pouco) tempo para a água desaparecer entre os dedos.

Essa tentativa do TSE de controlar os aplicativos de mensagem se assemelha a esse fenômeno. As mensagens chegarão ao seu destino, o que quer que o TSE faça ou deixe de fazer. Sempre foi assim ao longo da história.

Apenas para ficar nos casos mais famosos, Hitler não precisou de um aplicativo de mensagens para ganhar corações e mentes da maioria do povo alemão, assim como Stálin não precisou do WhatsApp ou do Telegram para manter toda uma sociedade sob o regime do medo durante vários anos. Claro que se essas ferramentas estivessem disponíveis eles as usariam. Mas a história mostra que não são essenciais. O que importam são as ideias, e essas se espalham como a água, por mais que se tente segurá-las.

Para não dizer que usei apenas exemplos extremos, grandes movimentos cívicos brasileiros, que tinham como objetivo a derrubada de regimes, como a marcha da família com Deus pela liberdade ou os comícios das Diretas Já, não precisaram de aplicativos de mensagens para atraírem apoio.

Claro que os aplicativos de mensagens potencializam o “problema” do compartilhamento de ideias, pois permitem um alcance maior e mais rápido. É um pouco como comparar carroças com carros, ambos servem para chegar do ponto A até o ponto B, mas o carro chega mais rápido. Mas isso não muda a natureza da coisa, como a história demonstra. Mesmo porque, as mesmas ferramentas estão disponíveis para todos. Então, o que vale, o que continua valendo, sempre, são as ideias.

E este é o ponto fundamental: grande parte das pessoas forma sua opinião e apenas DEPOIS busca informações (verdadeiras ou falsas) que confirmem o seu ponto de vista. Posso dizer que sou veterano de redes sociais. Nunca vi, em todos esses anos, uma única pessoa mudar de opinião em discussões no Facebook ou em grupos no WhatsApp. Pelo contrário, parece que as opiniões iniciais se cristalizam ainda mais depois dessas discussões. Assim, as pessoas filtram as informações que querem receber, não são a página em branco idealizada pelos ministros do TSE. Por isso, controlar os aplicativos de mensagem, além de ser uma tarefa de Sísifo, é inútil.

Por fim, não deixa de ser curioso o presidente do TSE, que é também ministro do STF, levantar o problema da falta de representante do Telegram no país apenas em relação às eleições.

O Telegram pode ser (e certamente é) usado por contraventores para planejar os seus crimes. Esse tipo de uso, no entanto, não chama a atenção do STF, que nunca levantou o problema da falta de representante do aplicativo no Brasil. O que não pode é servir de canal para feique nius durante as eleições. Pensando bem, para um STF que julga com base em mensagens hackeadas ilegalmente do próprio Telegram, está tudo muito coerente.

Quem é o maluco?

Notinha no Estadão nos conta que o ministro Luís Roberto Barroso, em tom jocoso, teria flertado com a ideia de uma “Casa Verde”, que servisse como lugar de internação para os malucos do país, em uma referência ao conto O Alienista, de Machado de Assis.

Não sei se a notinha é fidedigna. Mas se for, denota um ato falho do ministro do STF. Basta conhecer a trama para sacar que a imagem da “Casa Verde” se volta contra o próprio ministro. Aliás, como toda obra-prima atemporal, O Alienista parece descrever a realidade atual.

A obra nos apresenta a história do Dr. Simão Bacamarte, médico bem-sucedido que volta para a sua cidade natal. Lá, põe em prática seus conhecimentos de psicanálise, e começa a internar todas as pessoas que não se enquadram em seu padrão de perfeição. No início tem o apoio dos cidadãos, mas a coisa começa a sair do controle, com cada vez mais pessoas internadas na “Casa Verde”.

Em determinado momento, o barbeiro Porfírio lidera a “Revolta dos Canjicas”, para acabar com aquela situação. As forças armadas se juntam à revolta, e Porfírio toma o poder da cidade, fechando a Câmara dos Vereadores. Mas, surpreendentemente, Porfírio faz um acordo com Bacamarte, que continua internando as pessoas normalmente.

É então que João Pina, outro barbeiro, se revolta com aquela situação, e lidera outra revolução, que derruba Porfirio do poder. Mas João Pina também se alia a Bacamarte e as internações continuam.

Interrompo aqui a sinopse para traçar o evidente paralelo político entre O Alienista e a situação dos dias que correm. Os barbeiros lideram o povo contra os desmandos do médico. Mas, quando tomam o poder, compõem com o doutor, pois este lhes é útil para o exercício do poder. A luta contra o status quo é apenas uma desculpa para o exercício do poder. E o povo vai atrás, iludido. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

Mas, avancemos. Bacamarte continua em sua missão, até que uma parte relevante da população se acha internada. Neste ponto, o médico começa a desconfiar de que sua teoria está errada. Na verdade, se comportamentos fora do padrão constituem a norma (dado que boa parte da população encontrava-se internada), então o “padrão” deveria estar invertido. Desvios de comportamento eram o normal e louco era quem não apresentasse nenhum desvio. A partir dessa conclusão, Bacamarte libera todos os internados da cidade e interna-se a si próprio, pois era, em sua avaliação, o único cidadão que não apresentava qualquer desvio de caráter.

Barroso, ao evocar a Casa Verde, coloca-se como o Bacamarte que julga os desvios morais das pessoas com base na “ciência”. A ciência é uma grande conquista da humanidade, sem dúvida, mas quando é usada para fins políticos, desvirtua-se. Como cansamos de ver durante essa pandemia, a ciência já deu sua “palavra final” muitas vezes, para depois ter que se desdizer, como Bacamarte o fez. Na verdade, a ciência nunca dá uma “palavra final”, sempre está aberta a ser desafiada. O uso político das conclusões científicas é que pretende dar essa aura de infalibilidade para a ciência, muito útil para os fins políticos.

Na verdade, todos somos um pouco Simão Bacamarte. Julgamos as pessoas de acordo com a nossa régua. Somos os únicos perfeitos no mundo, e os outros deveriam ser internados. O que significa, no final, que deveríamos nos alienar em nosso mundo perfeito. Essa é, na minha visão, a mensagem de Machado de Assis: tenha cuidado com o desejo de um mundo perfeito. Normalmente, traz a semente de um mundo totalitário.

Cuidado com os seus desejos

Bolsonaro, ontem, acusou Barroso de fazer “politicalha” e desafiou-o a ordenar também a abertura de processo de impeachment contra membros do próprio STF.

Li argumentos nessa linha ao meu post de ontem. Fui investigar.

O impeachment de ministros do Supremo está previsto na Constituição (art. 52, inciso II – qualquer cidadão pode pedir o impeachment de um ministro do Supremo) e é regrado pela Lei 1079, de 1950. Os artigos 41 a 73 são os que regem o processo de impeachment dos ministros do Supremo.

O artigo 44 diz o seguinte: “Recebida a denúncia pela Mesa do Senado, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada a uma comissão especial, eleita para opinar sobre a mesma”.

Parece claro, não? Uma vez recebida a denúncia, a mesma será lida na sessão seguinte e despachada para uma comissão especial. Aparentemente, não há discricionariedade possível por parte do presidente do Senado ou da mesa diretora. Deveria ser um procedimento automático: recebe a denúncia, lê e instaura comissão para análise. É isso, por exemplo, que defende Roberto Jefferson, em trecho de sua denúncia contra Edson Fachin, que destaco abaixo.

Portanto, qualquer cidadão poderia entrar com recurso junto ao STF para exigir a instauração de um processo de impeachment no Senado contra membros do Supremo, com o mesmo argumento (prevaricação) que valeu para a instauração da CPI da pandemia.

Mas…

Mas nem sempre as coisas são como parecem.

A mesma Lei 1079 rege o impeachment do presidente da República. O seu artigo 19 reza o seguinte: “Recebida a denúncia, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada a uma comissão especial eleita, da qual participem, observada a respectiva proporção, representantes de todos os partidos para opinar sobre a mesma.

”Observe a quase exatamente mesma redação que vimos no artigo 44. Não caberia, aqui também, a discricionariedade do presidente da Câmara ou da mesa diretora. Recebeu a denúncia, leu no expediente seguinte, encaminhou para uma comissão especial. Procedimento automático.

Como é de saber comum que o encaminhamento de um pedido de impeachment contra o presidente depende da boa vontade do presidente da Câmara, cabe analisar melhor a redação dos artigos 19 e 44 da Lei 1079.

“Receber”, neste caso, creio que tenha o sentido de “acatar”. Não se trata, no contexto, de um verbo passivo, no sentido de receber uma correspondência, mas ativo, no sentido de reconhecer que aquilo é uma denúncia válida. Portanto, cabe discricionariedade. É o mesmo sentido que os noivos dão ao verbo receber quando dizem na cerimônia do casamento: “recebe esta aliança como sinal do meu amor e da minha fidelidade”. Os noivos recebem a aliança podendo recusá-la, se não estão dispostos, por algum motivo, a assumir o compromisso que ela representa.

Se assim não fosse, todos os 61 pedidos de impeachment contra o presidente que estão engavetados teriam que ser automaticamente colocados para caminhar dentro da Câmara.

Quando Bolsonaro desafia Barroso a fazer caminhar os pedidos de impeachment contra ministros do Supremo, do mesmo modo qualquer ministro do STF poderia obrigar o início dos procedimentos para os pedidos de impeachment contra o presidente.

Cuidado com os seus desejos.