O direito de criar fábulas

Lula defendeu-se ontem das críticas à sua fala abjeta sobre a Venezuela. E ficou claro que Lula, para não variar, estava, na verdade, falando de si mesmo, e não da Venezuela. Em sua defesa, Lula afirma que foi preso como consequência de mentiras embaladas em uma falsa narrativa.

O que é uma narrativa? Narrativa nada mais é do que a tentativa de encaixar os fatos em uma sequência lógica, que faça sentido. Note que, no núcleo da narrativa, é preciso que exista um fato concreto. Se não existir, a narrativa se torna fábula, uma história inventada. Por exemplo, para se defender da acusação de que ganhou um triplex reformado do empreiteiro Leo Pinheiro, Lula inventou a narrativa de que o dono da OAS fez a reforma, incluindo uma cozinha Kitchen totalmente equipada, por sua livre e espontânea vontade, só para agradar D Marisa e fisgar o comprador. Como este “fato” é mais difícil de engolir do que pequi com casca, na verdade trata-se de uma fábula.

A narrativa faz parte da luta política. Quando Lula acusa os adversários de Chavez de inventarem mentiras, na verdade está condenando a política. Toda a oposição é resumida a uma “narrativa mentirosa”, ou seja, não baseada em fatos. Fábulas. Não se enganem: Lula encara toda a oposição que recebe no Brasil da mesma forma.

Durante a campanha eleitoral do ano passado, o PT foi acusado pelos bolsonaristas sobre a intenção de fechar igrejas. Tratava-se de uma narrativa baseada em um fato: o apoio do partido e seu candidato a Daniel Ortega, que estava fechando igrejas e prendendo bispos na Nicarágua. Os petistas reagiram, dizendo que era fake news, que não havia nenhuma intenção de fazer o mesmo. Mas o fato incontornável dessa narrativa não foi contestado, qual seja, o apoio ao regime nicaraguense. Se houvesse uma mísera notinha do partido condenando Ortega, o núcleo da narrativa desapareceria. Estamos aguardando essa notinha até hoje. Aliás, o TSE proibiu a campanha de Bolsonaro de ligar Lula a Maduro e Ortega, em uma clara intervenção na legítima narrativa política.

Note que Lula não pede a Maduro que contraponha “narrativas mentirosas” com fatos. Lula fala em “combater narrativas com a sua própria narrativa”. O mundo de Lula é um mundo de “narrativas” sem base em fatos. É um mundo de fábulas. Por isso, o espanto das pessoas de bom senso, que ainda se apegam aos fatos. Lula, ao defender Maduro, está, na verdade, defendendo o seu próprio direito de criar fábulas.

A “frente ampla” é tão real quanto um unicórnio

“Frente ampla”, assim como “terceira via”, é daquelas categorias políticas que só existem no mundo do realismo fantástico brasileiro. Alckmin no primeiro turno e Tebet no segundo tiveram a missão de embrulhar a candidatura do PT com o papel de presente chamado “frente ampla”, que teria como objetivo livrar o país das garras do anti-democrata Bolsonaro.

O que se viu na eleição, depois de conhecidos os números, foi algo bem diferente. Se a intelectualidade tupiniquim caiu no conto da “frente ampla”, o mesmo não se pode dizer do eleitor médio: apenas 1,8% de votos separou os dois candidatos no 2o turno. O que nos leva a concluir que não existiu apenas uma “frente ampla”, mas duas: a frente ampla anti-bolsonarista e a frente ampla anti-petista, que perdeu para a primeira por uma fração de votos. Por algum estranho motivo, somente a “frente” anti-bolsonarista mereceu este nome.

Lula não perde ocasião de rir na cara de quem acreditou nessa esparrela. O editorial do Estadão lamenta a fala do presidente a respeito de Maduro, afirmando que aquilo implodiria de vez a tal “frente ampla”. Só é possível implodir um edifício que existe, e Lula sabe, mais do que ninguém, que essa história de “frente ampla” é conversa para boi dormir. Ele sabe que pode sair pelado na Praça dos 3 Poderes e estuprar a primeira velhinha que encontrar pelo caminho, que os que votaram nele ainda dirão “pelo menos, é melhor do que Bolsonaro”. O mesmo vale para as barbaridades de Bolsonaro, com o sinal invertido. Não, não temos uma “frente ampla”, temos uma “polarização” entre duas frentes amplas.

Por isso, estranharia muito que Bolsonaro fosse impedido de disputar eleições. O PT perderia seu espantalho, aquele que carreia votos para a sua própria “frente ampla”. Enquanto existir Bolsonaro e bolsonaristas, Lula pode falar e fazer as barbaridades que for, seus votos estarão garantidos.

Matemática financeira

Você vai a um banco e toma um empréstimo. Para tanto, assina um contrato onde estão definidos o montante emprestado, a taxa de juros cobrada e o prazo para a devolução. A partir daí, é só matemática financeira básica: PMT, dados PV, i e n. Atrasou? Não pagou? Não tem problema matemático, basta calcular os juros sobre as parcelas vencidas, além de eventuais multas previstas no contrato.

Mas na Venezuela não é assim. No maravilhoso mundo do socialismo moreno, a matemática financeira tem outras leis, ditada por uma Comissão da Verdade, que estabelecerá o real montante devido. Note que não estamos falando de simples negociações de desconto de dívida, uma espécie de Desenrola para Maduro. Não. Trata-se de estabelecer a “verdade” sobre a dívida, uma espécie de “auditoria cidadã”. O objetivo é que, no fim do processo, quando e se a Venezuela pagar, que pareça que não houve calote algum. Afinal, o montante pago era exatamente o devido.

Mas o ponto mais divertido desse imbróglio todo é o ar de festa de quatrocentões decadentes, como se os personagens ainda contassem com a riqueza de outrora. Em sua primeira passagem pelo Planalto, Lula podia se dar ao luxo de fazer política chinesa para conquistar e manter aliados, financiando obras de infraestrutura em países amigos. A Venezuela, por sua vez, surfava nos preços altos do petróleo, um período em que tudo parecia possível. 15 anos depois, Maduro depende do escambo com Cuba, enquanto Lula cata moedinhas onde pode para fechar as contas. Alberto Fernández que o diga.

O encontro de Lula com Maduro e a ressurreição da Unasul fazem parte de um teatro ideológico que arranca suspiros dos intelectuais da Vila Madalena, mas tem pouco efeito prático. A região ainda vive a ressaca da esbórnia dos loucos anos 2000, e não tem dinheiro nem para as necessidades básicas, quanto mais para grandes projetos megalomaníacos. Lamento apenas a perda de tempo com tudo isso.

A segunda alma mais honesta do mundo

Agora é que não estou entendendo mais nada.

Eu já estava convencido de que a Venezuela não tinha dado calote. Pelo menos, foi isso que disse o ministro da Secon, Paulo Pimenta, que explicou direitinho que o BNDES não financia países, financia as empresas brasileiras. E, se o país não paga a dívida com a empresa, “o seguro cobre”, tudo certo.

Agora, vem o Maduro e diz que vai pagar a dívida! Que é isso, Maduro, não se preocupa não amigo, o “seguro já cobriu”, a dívida já foi quitada, você não deve mais nada não, fica tranquilo, pode se dedicar a criar as suas narrativas em paz, sem stress.

E o Maduro ainda vai criar uma “comissão” pra determinar o tamanho da dívida. É muito boa vontade, olha, se todo mundo fosse igual ao Maduro, assim, honesto, o mundo seria muito melhor. Bem fez o Lula de trazê-lo aqui para o Brasil, é de exemplos assim que precisamos.

Está aí, escrito, preto no branco, para que ninguém possa alegar ignorância depois.

O presidente e o vice-presidente da República fizeram publicar um artigo no Estadão de hoje. Trata-se de importante peça, que deve ser lida com atenção. Muito se reclamou que Lula não explicitara seu programa econômico antes da eleição. Pouco menos de 5 meses após a posse, aí está. Neste artigo, Lula descreve o que de mais importante pretende fazer na seara econômica durante o seu governo. Essa é a boa notícia. A má, é que, depois de ler, não me ocorre outro ditado do que “a ignorância é uma benção”.

Optei por comentar trecho por trecho, pois trata-se de artigo em que o presidente e o vice-presidente desfilam, parágrafo após parágrafo, todas as suas várias ideias equivocadas sobre como funciona a economia.

O primeiro parágrafo já começa com uma imprecisão e uma mistificação. A imprecisão está no uso da palavra “anos” para caracterizar o período de encolhimento da indústria no PIB. A palavra correta seria “décadas”. O pico da participação da indústria no PIB foi na década de 80. A partir de então, só fez diminuir, inclusive durante os “anos de ouro” do governo PT, em que abundaram “políticas de incentivo à indústria”, as mesmas que estão sendo apresentadas agora como grande novidade. A mistificação é o termo “emprego de qualidade”. Aqui vou fazer uma pequena digressão.

Quando se defende a indústria por criar “empregos de qualidade”, ou se demoniza os aplicativos por “precarizar os empregos”, o foco está na DEMANDA por mão de obra. O raciocínio é sempre esse: precisamos criar demanda por “empregados de qualidade” e suprimir a demanda por “empregados precários”. O problema, no entanto, está na OFERTA de mão de obra. O Brasil simplesmente não cria suficiente mão de obra de qualidade. Pergunte a qualquer empresário a dificuldade de se encontrar mão de obra com a qualificação necessária, principalmente em áreas de exatas. Formamos psicólogos, advogados e sociólogos a rodo, enquanto faltam engenheiros e técnicos. Quando, por outro lado, empresas como o Uber oferecem uma opção de fonte de renda para essas pessoas sem qualificação, são demonizadas, como se fossem elas as culpadas pela vergonhosa falta de qualificação da nossa mão de obra. Nunca se discute produtividade da mão de obra, mas somente os seus “direitos sociais”, que serão pagos por alguém, independentemente da geração de valor do trabalho.

Continuemos. A seguir, os autores afirmam, corretamente, que o Brasil está perdendo a corrida da sofisticação tecnológica, e citam o exemplo da China, que fez o caminho inverso. Seria interessante que explorassem um pouco mais esse exemplo. Lula/Alckmin afirmam que a China foi capaz de levantar centenas de milhões de trabalhadores da pobreza. O que eles não contam é que o trabalhador chinês está longe, muito longe, do tal “emprego de qualidade” que eles sonham para o brasileiro. Eles têm uma fração dos “direitos sociais” com que os trabalhadores daqui contam, além de enfrentarem jornadas de trabalho que fariam um entregador do iFood parecer um bon vivant. Não tem dúvida de que o trabalhador chinês hoje está muito melhor do que há 3 ou 4 décadas. Mas isso aconteceu também no Brasil, entre as décadas de 30 e 70 do século passado, quando houve uma urbanização intensa do país. O próximo passo é que é o complicado, que é a formação dessa mão de obra. Nisso a China se saiu muito melhor, basta ver os exames internacionais de proficiência. Mas, certamente, Lula olha para a “política industrial” da China, não para a sua “política social” ou mesmo sua “política educacional”. Como se uma coisa prescindisse das outras.

A seguir, nossa dupla dinâmica entra na seara que mais lhes interessa, que é montar o seu país no Sim City. Então, devemos ser “criteriosos” em estimular que setores em que já tenhamos know how caminhem para produzir mais “valor adicionado”. Acho graça quando ouço esse termo, como se fosse algo mágico, uma espécie de varinha de condão, e não o resultado de muito capital de risco e mão de obra especializada. Claro, e não poderia deixar de haver a menção ao “conteúdo nacional”, como “até” os países desenvolvidos estão fazendo. Ou seja, continuaremos a ser um país fechado, reinventando a roda com nossos parcos recursos.

Mas é a seguir que Lula/Alckmin revelam o plano em todo o seu esplendor. Um tal de Conselho Nacional de Desenvolvimento Nacional vai dar “missões” para a indústria brasileira! Uau! Não consegui deixar de lembrar do agente 86, recebendo uma missão do Controle. Como pode, depois de décadas de “políticas industriais” que alguém ainda defenda que o governo pode dirigir investimentos produtivos de maneira eficiente. E já sabemos que há um programa novo de incentivos na praça, o Padis, para estimular a produção de semicondutores, hoje uma commodity. Quando vejo uma nova sigla, já sei que, daqui a alguns anos, será a plaquinha na porta de um armário onde estará guardado um esqueleto em decomposição. Não falha.

Ah, e tem a política comercial também. Porque, sabiamente, Lula&Alckmin nos informam que, além de produzir, precisa vender. Vender para quem? Para quem tem dinheiro? Naaaao! Para os pés rapados dos nossos vizinhos e da África. Essa é a “nova política comercial”. Que, claro, deverá envolver “linhas de financiamento” do BNDES. Afinal, como você vende para alguém que não tem dinheiro? Outro dia, comentei aqui que a China está passando por problemas de calote, principalmente na África. Queremos tomar o lugar dos companheiros chineses nessa missão.

Em seguida, vem o mambo jambo dos “investimentos verdes”. O Brasil estaria posicionado para receber investimentos porque tem “energia limpa”. É a versão moderna do “aqui, em se plantando tudo dá”, de Pero Vaz de Caminha. Todo dirigente brasileiro, e uma parcela relevante do povo brasileiro, acredita piamente que as nossas “riquezas naturais” (e nossa matriz de energia é limpa porque fomos abençoados com uma quantidade imensa de rios, sol abundante e ventos) são suficientes para nos fazer ricos. Segundo Lula&Alckmin, ter “energia limpa” seria condição suficiente para atrair investimentos, quando, na verdade, é condição apenas necessária, e talvez nem isso.

Para o agronegócio, haverá um Plano Nacional de Fertilizantes (PNF, outra sigla). Não custa lembrar que as maiores minas de produção de potássio estão no Amazonas, perto de terras indígenas. Mais um embate titânico no governo à vista?

Quase no final, como quem havia esquecido o assunto e foi lembrado, a dupla Lula&Alckmin faz menção a “medidas horizontais”, citando a reforma tributária como o elixir mágico que curará a sua unha encravada e todos os males da economia brasileira. É nesse parágrafo que os autores mencionam, pela única vez em todo o artigo, o “custo Brasil”. Um único parágrafo para endereçar o que realmente é o problema brasileiro e deveria ser o foco e o guia para todo o resto. É sintomático.

Claro, não poderia deixar de haver menção à “redução do custo do capital”, deixando claro que o governo já fez a sua parte com a aprovação do novo arcabouço fiscal. Só pode ser piada, não é possível que acreditem que esse arremedo de teto de gastos seja suficiente para reduzir o alto custo de capital no Brasil, que tem várias origens, sendo a insegurança jurídica a não menor delas. Óbvio que Lula&Alckmin querem jogar a bomba no colo do BC, nesse caso.

Ah sim, e tem o “investimento nas pessoas”. Afinal, como dissemos acima, sem mão de obra qualificada, nada feito. E quais são esses investimentos? Bolsa Família e aumento do salário mínimo! Não sei se choro de rir ou choro de chorar mesmo.

O último parágrafo encerra com a tese inicial, para que ninguém tenha dúvida do que estão falando: a indústria será o condutor da política econômica. O Brasil retomará a linha de produção de esqueletos e zumbis que ainda hoje assombram as contas públicas sem terem movido um milímetro sequer o ponteiro da industrialização brasileira. Está aí, escrito, preto no branco, para que ninguém possa alegar ignorância depois.

Todo e qualquer sacrifício de quem, cara pálida?

Tentei recortar um ou outro trecho da matéria acima, mas logo notei que se trata de uma peça única de rara beleza, desde o seu título, passando pela linha fina e pela legenda da foto, até o conteúdo todo.

Vamos começar por um detalhe pitoresco: Lula se reuniu durante 1-2-3-4 (quatro) horas com sua contraparte argentina. Quatro horas! Quando tenho reunião no trabalho, passou de uma hora a reunião começa a ficar terrivelmente improdutiva. Fico imaginando quatro horas de reunião. E, claro, Lula está com a agenda doméstica sussa, tem quatro horas do filé mignon do seu dia para gastar com o companheiro.

E foram quatro horas porque a visita foi só “de cortesia”, não foi oficial. Foi como se o vizinho aparecesse no meio da noite para pedir uma xícara de açúcar pra completar a receita do bolo. Quatro horas pra encontrar onde a empregada guarda esse diacho do açúcar. E não encontrou. Lula afirmou que Fernandez sai sem o açúcar, quer dizer, o dinheiro, mas “com muita disposição política”.

“Disposição política” deve ser o pito que Lula prometeu dar no FMI. “Tire a faca do pescoço do meu amigo!”, Lula dirá, assim que encontrar alguém do FMI. O FMI emprestou US$ 42 bilhões para os argentinos em condições elogiadas até por Joseph Stiglitz, um verdadeiro negócio de pai para filho. Hoje, esse dinheiro já sumiu, e os argentinos não estão pagando nada. A faca, na verdade, está com Fernández.

Não satisfeito de ter gasto 4 horas de seu dia para prometer “disposição política”, Lula enviará Haddad para Buenos Aires na semana que vem. Outro que também está sem nada para fazer aqui no Brasil, Haddad vai gastar o seu tempo pra tentar resolver o problema dos argentinos. Claro, como sabemos, trata-se de “linhas para exportação como a China faz”, então a coisa será travestida de ajuda aos exportadores. Mas, lembre-se sempre de perguntar: se os argentinos não arrumarem dólares para pagar, quem ficará com o mico?

No final, um sopro de esperança: Dilma pode dar uma mãozinha com linhas do banco dos BRICs. Dessa forma, repartiríamos o prejuízo em 4, com nossos companheiros dessa barca furada. Ao contrário do FMI, o banco dos BRICs não colocaria a faca no pescoço dos hermanos.

Enfim, de tudo isso, parece ficar cada vez mais claro que está difícil de achar o açúcar. O roto não consegue ajudar o esfarrapado, a não ser com um ombro companheiro, o que Lula chama de “disposição política”. Ele promete “todo e qualquer sacrifício”. Só não disse de quem.

“Paz”, palavra fácil

“Paz”, assim como “democracia” e “amor”, é uma palavra fácil. Todos queremos paz, democracia, amor. Quem seria contra?

Lula acha que não. Lula acredita (e fala) que somente ele quer a paz no mundo. E como todos os problemas brasileiros já foram resolvidos, Lula gasta seu tempo e energia para alcançar justamente isso, a paz no mundo.

O problema, meus amigos, é que, assim como democracia e amor, paz não é um termo unívoco. Lula age como se paz significasse apenas e tão somente “ausência de bombardeios”. Trata-se, obviamente, de uma simplificação tosca de quem alçou papo de botequim ao nível de diplomacia internacional. Ou, rebaixou diplomacia internacional a papo de botequim, como queiram.

Mas se fosse somente isso, seria apenas folclórico. O problema é que Lula, de fato, aprova o modus operandi de Putin, e o adota internamente. O governo Lula, por exemplo, quer a “paz no campo”, mas passa a mão na cabeça do MST, inclusive levando Stédile a tiracolo para a China. Até reconhece que as invasões a propriedades não deveriam acontecer, mas “o erro aconteceu, não adianta ficar falando quem está certo e quem está errado”. E negocia com MST e proprietários de terras como se fossem duas forças simétricas. No fundo, Lula pensa que o MST e a Rússia têm a razão ao seu lado, e faz contorcionismo retórico para parecer neutro.

Lula, em sua megalomania insuflada por um ego nunca visto na história desse país (para usar expressão consagrada em suas falas), tem a pretensão de ser visto como um Mahatma Ghandi do século XXI, o mensageiro da paz. Como falta-lhe a grandeza do indiano e sobra-lhe a malandragem de Macunaíma, o máximo que consegue é ser visto como um anão diplomático, que serve de pet para Xi Jiping. Poderíamos ser poupados dessa vergonha.

O Múcio do Planalto

Jô Soares era um humorista genial, criador de inúmeros personagens que ficaram na memória. Um deles era o Múcio, um sujeito com ideias muito firmes, até ser confrontado com uma opinião contrária. Nesse momento, Múcio metamorfoseava sua própria opinião, de forma a concordar com a opinião contrária.

Lula deu uma de Múcio nessa questão da Ucrânia. Após afirmar que ambos, Ucrânia e Rússia, eram responsáveis pela guerra, agora, diante do presidente da Romênia e depois das duras críticas de EUA e UE às suas falas, Lula condenou a violação à integridade do território da Ucrânia. Faltou um “pela Rússia”, mas ok, está implícito.

Não poderia ser diferente, dado o discurso lido, que não deixou margem à improvisação, e à presença do presidente da Romênia, país vizinho ao conflito. Aliás, vale ler o trecho do discurso do romeno. A Romênia, assim como a Ucrânia e os outros países do leste europeu, livrou-se de décadas de jugo russo, e não pretende repetir a experiência. Eles sabem que a luta na Ucrânia é de vida e morte não somente para os ucranianos, mas para todos os países da antiga órbita soviética. Diante dessa perspectiva, esse papinho de “clube da paz” soa como um ultraje.

Aliás, ontem foi o dia do Múcio. Lula também mudou de opinião sobre os “contrabandistas” da Shein. Agora, tá liberado. Aprendemos: basta apertar um pouco, que Lula muda de opinião rapidamente. Afinal, Múcio é um homem de ideias firmes, até ser confrontado.

Explicando o mundo

Tal qual uma criança que começa a descobrir o mundo ao seu redor, nosso presidente tem muitas perguntas. Por que a taxa de juros precisa ser tão alta? Por que o preço da gasolina não pode seguir os custos de produção local? Por que não podemos ter um banco de desenvolvimento que empreste sem condicionalidades?

A última pergunta que tem atormentado o presidente, a ponto de deitar-se com ela toda noite, trata da dominância do dólar no comércio global. Afinal, por que o comércio entre os países precisa passar pelo dólar?

A função do adulto é introduzir a criança no mundo a que ela foi convidada sem pedir. No mundo da criança, tudo é possível. Trata-se de um mundo mágico, em que as coisas acontecem “como deveriam ser”. O adulto, ao responder às questões da criança, descreve o mundo “como ele é”. O problema de Lula é que os que o cercam, incluindo os economistas, costumam ter o mesmo pensamento mágico.

No caso, o adulto explicaria que o dólar é emitido pelo maior país do planeta, com um banco central independente, e em que o sistema político, com seus pesos e contrapesos, evita a dominância de um homem ou de um partido. A China é grande sim, a segunda maior economia do planeta. Mas o fluxo de capitais e o câmbio são estritamente controlados por uma autoridade monetária (o Banco Popular da China) completamente subordinada a um ditador. Você compraria um carro usado de Xi Jinping?

Faça um teste. Peça a um amigo seu que esteja na China que lhe traga alguns renminbis na mala. Faça o mesmo com um amigo que esteja nos EUA, e lhe peça para trazer alguns dólares. Tente comprar alguma coisa aqui no Brasil com os renminbis e com os dólares. Qual será a tarefa mais fácil? Pois é. As pessoas guardam dólares em casa, não renminbis, sem que ninguém as obrigue a isso.

O Banco Central do Brasil investe as reservas internacionais em várias moedas. Cerca de 80% está em dólares e apenas 5% em renminbis, apesar de a China ser, de longe, nosso maior parceiro comercial. Vendemos US$ 90 bilhões anualmente para a China, mas somente US$ 15 bilhões das reservas estão na moeda chinesa. O BC raciocina com o mesmo cuidado que as pessoas que guardam o dinheiro em dólar, não em renminbi. Se Lula souber disso, arrumará mais um motivo para encrencar com o Roberto Campos, além da taxa Selic.

Há alguns anos, estive na China a trabalho. Nas várias reuniões de que participei, não falávamos em português ou mandarim. A língua usada era o inglês. Nem todos podem contar com um tradutor oficial, como Lula e Xi Jinping têm à disposição. Então, lançamos mão da língua franca global para nos comunicar. Talvez Lula pudesse pensar nisso também antes de dormir.

A vantagem de estar morto

Hoje, mais uma reportagem sobre as péssimas condições de vida na Venezuela.

No entanto, ontem, uma pequena nota nos trouxe a informação de que Chávez ainda tem 56% de aprovação pelo povo venezuelano, muito mais do que qualquer outro líder atual. Como se explica? Fácil: Chávez está morto.

Poucos se lembram, mas no último dia 5 de março completaram-se 10 anos da morte do comandante. Chávez saiu prematuramente do mundo da luta política para o plano dos mitos. Sua morte foi anterior à debacle dos preços do petróleo, que acabou com a fonte do bem-estar para todos os venezuelanos. Sobrou uma carcaça oca de economia, que os abutres do regime disputam sofregamente.

Na mesma pesquisa, Maduro aparece com apenas 22% de aprovação. Poderíamos questionar como Maduro consegue se reeleger com tão reduzida taxa de aprovação. A resposta, além da conhecida falta de lisura nas eleições, pode ser encontrada em uma pesquisa de um ano atrás, feita pelo mesmo instituto. Naquela pesquisa, Maduro também aparecia com uma avaliação péssima, mas não significativamente pior do que a de outros políticos venezuelanos de oposição. Ou seja, a situação é tão ruim, que basta estar vivo para ser mal avaliado. Chávez leva uma grande vantagem sobre seus concorrentes: está morto.

A cerca de 3 meses de sua morte, já em estado terminal, o ditador venezuelano disse: “Chávez não é um ser humano somente. Chávez é um grande coletivo. Chávez é o coração do povo, e o povo está no coração de Chávez”. Quem não se lembra das palavras de Lula em seu discurso no dia de sua prisão, em São Bernardo, também em terceira pessoa? “Eu não sou mais um ser humano. Eu sou uma ideia, misturada com as ideias de vocês”. Lula proferiu essas palavras às vésperas de sua morte política.

A vantagem de Chávez, como dissemos, é estar morto. Lula, por outro lado, ressuscitou, como afirmou a um mesmerizado Reinaldo Azevedo. Portanto, voltou ao mundo dos vivos, e isso faz toda a diferença. Chávez, assim como Lula, navegou o grande ciclo das commodities da primeira década do século, e morreu antes de ver o seu castelo de cartas ruir. Lula saiu da presidência como uma quase unanimidade. Se tivesse acompanhado seu companheiro venezuelano em sua viagem ao além, teríamos hoje um mito lulista imbatível. Mas Lula voltou do mundo dos mortos, e terá que lidar com a realidade dos recursos escassos e da falta de margem de manobra. Aquela mesma realidade que faz com que todos os políticos sejam mal avaliados. Nesse mundo, é bem mais difícil a construção de mitos. A longevidade de Lula, afinal, talvez seja uma benção para o país.