Imagine um articulista qualquer identificado com a direita escrevendo o seguinte:
“Com a coxa bem torneada e a sua voz rouca, Lula é o falo que sua eleitora gostaria de ter”
E continuaria:
“A eletricidade sexual entre o ex-presidente e suas admiradoras reafirma o empoderamento das intelectuais de esquerda”.
Não, nenhum articulista identificado com a direita ousaria escrever uma bobagem agressiva nesse nível. Seria cancelado antes que pudesse articular a palavra “falo”.
Mas Marcelo Coelho se achou no direito de ofender milhões de mulheres que, por um motivo ou por outro, preferem votar em Bolsonaro do que em Lula. Não fosse suficiente a psicanálise de botequim, Coelho ainda usa pejorativamente o termo ”donas de casa”, quase que como um sinônimo de parvas que precisam de um consolo que os seus maridos já não são capazes de dar.
Não, não haverá protestos de feministas.
Não, ele não será acusado de misoginia ou de machismo.
Não, não haverá abaixo-assinados de jornalistas da Folha contra a publicação de artigos que ofendam as mulheres.
Não, as “donas de casa de extrema-direita” não merecem respeito. Podem ser cuspidas e estupradas metaforicamente por um “articulista do bem”.
A jornalista Natuza Nery coloca-se como exemplo de como a maternidade pode tornar as mulheres mais produtivas (pelo que entendi, porque ficam gratas pelo acolhimento da empresa em que trabalham e procuram compensar trabalhando ainda mais).
Natuza Nery é uma das principais jornalistas da principal empresa de comunicação do Brasil. Seu passe deve ser bem caro e seu salário deve lhe permitir contratar mais de uma babá. Poucas mulheres no Brasil realmente podem se comparar profissionalmente com Natuza Nery. Esse fato simples e facilmente verificável não a impede, no entanto, de se colocar como exemplo para todas as mulheres do Brasil, e de comparar a Globo com todas as empresas do Brasil.
Essa declaração de Natuza foi feita a respeito de uma frase do novo ministro das Minas e Energia, Adolfo Sachsida, que ousou afirmar que as mulheres ganham menos provavelmente porque engravidam, o que, obviamente, foi classificada como uma fala machista.
Tive oportunidade de escrever um post a respeito desse assunto, em que recupero alguns artigos acadêmicos que levantam a possibilidade de que mulheres ganhem menos do que homens com mesma idade porque a maternidade lhes exige dupla jornada, o que, na média, poderia atrasar ou até mesmo interromper suas carreiras. Podemos gastar rios de tinta e horas de TV falando sobre a injustiça dessa situação, mas essa é a situação, e há muito pouco o que a maioria das empresas pequenas e médias possa fazer a respeito.
Lacrar sendo uma jornalista superstar da Rede Globo, ainda mais quando quer passar a mensagem de que esse presidente não passa de um misógino, é fácil. Difícil mesmo é tratar um assunto desses com objetividade.
Acabei ontem de assistir à primeira temporada da boa série Marte, no Netflix. Trata-se de um “docudrama”, em que duas histórias paralelas convivem ao longo de toda a trama: em 2016, um documentário sobre a Space X, a empresa de Elon Musk que pretende colonizar Marte; e em 2036, quando a primeira missão a Marte é lançada. O melhor da série é justamente esse entrelaçamento entre os desafios de uma missão desse tipo levantados durante o documentário, e esses mesmos desafios sendo vencidos (ou não) durante a teórica missão.
Mas não é sobre ficção científica que quero falar aqui. Meu assunto é outra ficção: o papel protagonista das mulheres nesta série, assim como em Away, outra série da Netflix sobre uma missão a Marte.
Aliás, o paralelo entre as duas séries é interessante: em ambas, uma mulher assume o comando da missão que, originalmente, seria de um homem. Em Away, é a esposa do astronauta (ela também uma astronauta) que não pode assumir a missão por conta de uma doença. Em Marte, é a vice-líder da missão, que assume após a morte do líder. Nos dois casos, a mulher chegou lá, digamos, por acidente. Mas o fato é que a ambas cabe o protagonismo.
Na série Marte, uma segunda missão chega ao planeta vermelho, também liderada por uma mulher. Neste caso, a comandante é acompanhada por seu marido, um botânico com um perfil bem delicado e dependente. Uma inversão dos papeis estereotipados a que estamos acostumados.
Mas o que verdadeiramente me chamou a atenção é a cena final do 6o e último episódio da 1a temporada de Marte: são essas duas líderes, a que se junta uma terceira mulher, cientista, que fazem a descoberta que muda o rumo da missão. Além disso, uma quarta mulher é a líder do comitê de países que supervisiona a missão. O episódio termina com 4 mulheres protagonistas. Nenhum homem.
Chamamos de ficção científica uma projeção do futuro com base em tecnologias ainda inexistentes. Contamos histórias do porvir, que um dia existirão. Ou não. Júlio Verne foi o mestre da ficção científica, antecipando muitos dos artefatos que hoje fazem parte do nosso dia a dia. Marte e Away são ficção científica, mas poderão vir, um dia, a se tornar realidade.
Mas Marte e Away são também ficção em outro sentido. Ao dar protagonismo às mulheres, essas duas séries fazem o que vou chamar aqui de “ficção sociológica”. Por que o protagonismo das mulheres é uma ficção sociológica? Simplesmente porque não existe hoje, mas pode existir no futuro. Ou não.
Nesta semana, foram anunciados os Prêmios Nobel de Física, Química e Medicina, os chamados prêmios científicos. Na história desses prêmios desde 1901, um total de 624 cientistas foram laureados. Destes, apenas 23 foram mulheres, ou 3,7% do total. Mas podemos ver algum avanço ao longo do tempo. Se separarmos por décadas, temos a estatística mostrada no gráfico abaixo.
Podemos observar que as últimas duas décadas foram pródigas na indicação de mulheres por parte do comitê do Nobel. Mas esse é o copo meio cheio. O copo meio vazio é que, mesmo assim, temos menos de 10% do total. Há alguns dias, escrevi sobre a pouca presença de mulheres nas Olimpíadas de Matemática. Curiosamente, o percentual de participação também vem aumentando, mas ainda é inferior a 10%.
Hoje, o protagonismo feminino em ciência é apenas uma ficção sociológica, assim como missões a Marte são apenas uma ficção científica. Ficções científicas se tornam realidade ao longo do tempo com base em pesquisa científica e investimento tecnológico, além de escolhas políticas. Como uma ficção sociológica se torna realidade ao longo do tempo?
Como comentei em meu post sobre a fraca presença feminina na Olimpíada de Matemática, há duas hipóteses sobre esta questão: uma biológica e outra sociológica. Minha opinião (e é só uma opinião de leigo) é que se trata de uma mistura das duas coisas. A indústria de entretenimento americana está buscando, de todas as formas, testar a hipótese sociológica: ao dar o protagonismo às mulheres (e essas séries não são as únicas nesse sentido) espera-se inspirar as jovens a seguir o caminho científico, derrubando barreiras sociais que as estariam impedindo. Terão sucesso? Assim como a missão a Marte, só saberemos daqui a 20 anos.
Matéria do Financial Times (traduzida no Valor Econômico) aborda o fantástico fato de que praticamente 100% dos medalhistas de olimpíadas de matemática serem meninos.
Segundo os estudiosos do tema, cérebros de meninos e meninas são iguais. Portanto, a única explicação é que essa diferença seria resultado de uma “construção social”: o machismo estaria afastando as meninas da matemática.
Não fica claro porque os homens teriam monopolizado a matemática e não, por exemplo, línguas ou biologia. Talvez os estudiosos ainda não tenham chegado neste ponto em seus estudos.
Já tentaram de tudo, mas nada parece funcionar. A única mulher que ganhou a medalha Fields na história (o Nobel da matemática) veio do Irã, um país onde uma mulher ateou fogo em si mesma na semana passada por ter sido condenada ao entrar escondida em um estádio de futebol. Talvez os estudiosos pudessem estudar o Irã e suas práticas de “gender equality”. Quem sabe funcione.
Em outro ponto, a matéria lembra que a recordista feminina de medalhas em olimpíadas de matemática tem família de origem na antiga Alemanha oriental. A explicação, segundo os estudiosos, é que, na parte comunista do planeta, a mulher era valorizada como cientista. De onde concluo que perdemos uma chance de ouro de acabar com o machismo na matemática quando os EUA venceram a Guerra Fria. Uma pena.
Eu assisti ao mesmo trecho do debate que Vera Magalhães descreve acima, e tive uma impressão completamente diferente.
Bolsonaro estava respondendo a uma questão sobre as mulheres feita por Marina. Em determinado momento, Marina tenta interromper a fala de Bolsonaro, o que não estava previsto nas regras do debate. Foi o único incidente desse tipo na noite. Bolsonaro interrompeu sua resposta para chamar a atenção de Marina sobre o cumprimento das regras.
Qual foi minha percepção? A de que Marina não aguenta pressão e pode espanar na primeira crise de governo. Já Bolsonaro, descontando-se sua chucrice, se mostrou senhor da situação. Já Vera Magalhães viu “pressão” sobre Bolsonaro, assim como de resto o próprio Estadão, que estampou esse embate na capa.
Bem, “pressão” sofreram todos os candidatos que contam, e não acho que Bolsonaro tenha se saído pior ou melhor ao lidar com isso. Como eu disse ontem, não acho que ele tenha ganhado ou perdido votos depois do debate.
Mas essa é a minha percepção, e Vera Magalhães pode ter outra, sem problemas. O que não pode é espalhar fake news, como destacado no texto acima.
Fui ver o tal programa com a Luciana Giménez. É fácil de achar, está no YouTube. A pergunta era essa: “você disse que mulheres devem ganhar menos que homens porque engravidam. Confirma?”
Bolsonaro então se justificou dizendo que o que ele havia dito para o repórter do jornal é que empregadores haviam dito isso para ele, e que o repórter havia colocado isso na conta dele.”
Ok,Bolsonaro pode estar inventando isso. Ainda que, do jeito que ele defende suas ideias, por mais polêmicas que sejam, parece-me que ele não teria dificuldade em confirmar se fosse verdade. Mas sigamos, o problema vem em seguida.
Não satisfeita, como boa jornalista, Luciana pressiona Bolsonaro, perguntando se ele próprio achava aquilo certo ou errado. Depois de enrolar um pouco, Bolsonaro diz: “Eu pagaria o mesmo sem problemas, tem muita mulher que é competente”. A primeira parte sai mascada porque ele fala rápido e, principalmente, porque a última parte da resposta, “tem muita mulher competente” é repetida alto por Luciana, como se fosse uma confissão de machismo. Ela repete com ênfase: “Tem muita mulher competente! Olha o que você acabou de dizer Bolsonaro! Você é um ogro!” Ora, se ele tivesse dito que pagaria menos, isto é que seria o foco da atenção, e não a frase “tem muita mulher competente”. Luciana pega essa frase porque não há mais nada de concreto.
Podemos até discutir se o que Bolsonaro disse transpira machismo ou não. Mas ele não disse, como afirma Vera Magalhães, que acha certo que mulheres recebam menos que homens, “apesar de” existirem mulheres competentes. Isso é militância sobrepujando-se ao jornalismo, é fake news com pedigree.
A democracia nos garante a escolha do candidato que melhor (ou menos pior) se adeque às nossas convicções e desejos. Mas deixa de funcionar se é baseada na mentira.
PS.: Bolsonaro não é meu candidato. Mas a imprensa, desse jeito, está fazendo um esforço danado para que eu considere essa possibilidade, talkey?