Jornalismo corroído pela metade

Essa matéria do G1, e que foi repercutida com estardalhaço pela Globo News, vai entrar para os anais do jornalismo brasileiro como exemplo de como os coleguinhas não têm a mínima noção do que estão fazendo.

Primeiro, a parte técnica: alguém pegou a série de renda REAL do PNAD, e tratou-a como NOMINAL. Ou seja, uma série que já é ajustada pela inflação do período (esse é o significado da palavra real) foi novamente descontada pela inflação do período. O resultado foi uma série em que a inflação entrou duas vezes, como se a inflação no Brasil tivesse o quadrado da inflação real. Ou seja, ao invés de uma inflação de 88% nesses 10 anos do estudo, a conta foi feita como se a inflação tivesse sido de 253%.

Mas, como eu sempre digo para os meus alunos, muitas vezes você não precisa saber a fórmula para acertar uma questão. Basta conhecer o conceito. Como qualquer grandeza agregada, a massa de renda deve mais ou menos acompanhar o PIB em prazos mais longos. Dizer que a renda caiu pela metade significa dizer que o PIB também teria caído mais ou menos pela metade nesse período, o que é uma rematada tolice. Uma tolice que ninguém no G1 ou na Globo News foi capaz de identificar. Não teve um, unzinho, que entendesse minimamente de economia para parar esse trem.

Por fim, e aqui falo somente de jornalismo, como e por que surge uma pauta dessas? Deixo em aberto essa pergunta, pois jornalismo não é minha praia.

Quem se importa com os dados?

A reportagem do Valor Econômico pretendia chamar a atenção para um suposto aumento da atitude crítica dos mais pobres em relação à polícia. O único problema é que os dados não conversam com a tese.

A questão é que antes (2014), pobres e ricos tinham uma percepção semelhante em relação à polícia. Agora, os pobres têm uma percepção mais crítica se comparados com os mais ricos. O ponto é que, para que a manchete estivesse correta (“população de baixa renda começa a enxergar forças policiais de forma mais crítica”), a comparação correta deveria ser contra a percepção dos mesmos pobres no período anterior. Quando fazemos essa comparação, constatamos, na verdade, uma ligeira melhora: em 2014, 46% dos pobres tinham visão negativa da polícia, contra 40% hoje.

Ocorre que essa melhora foi muito maior entre os mais ricos. Então, a manchete correta deveria ser: ”imagem da polícia melhora substancialmente entre os mais ricos, e menos entre os mais pobres”. Ou seja, houve uma melhora generalizada, mais concentrada entre os mais ricos. O ridículo da manchete escolhida é que se a imagem da polícia não tivesse melhorado, não haveria notícia.

O fato é que a imagem da polícia melhorou nos últimos 8 anos, mais entre os mais ricos, menos entre os mais pobres, mas melhorou para todos. Esses são os dados. Mas quem se importa com os dados?

A mágica dos números

Já comentei aqui algumas vezes a mágica que se pode fazer com números. Basta mudar a escala, e um número pequeno parece grande e vice-versa. Foram exemplos o número de óbitos por Covid na Índia em determinado momento (um óbito a cada 3 segundos, o que não significava nada para um país como a Índia), ou o desmatamento de centenas de campo de futebol na Amazônia, o que também não significa muita coisa.

Pois bem. Notinha do Estadão usa esse velho truque para passar a impressão de que o livro de Guilherme Boulos está bombando de vender. “Um livro a cada 2 minutos”, de fato, parece um ritmo alucinante. Nesse ritmo, seriam 260 mil livros por ano, o que faria de Boulos um dos maiores best sellers do mercado editorial brasileiro.

A pegadinha está nas palavras “na primeira hora”. Foram 30 livros na primeira hora. Dito dessa maneira, não parece lá muito impressionante. Eu mesmo devo ter vendido algo parecido na primeira hora depois de ter anunciado meu livro aqui no Facebook e nos meus grupos de WhatsApp. A primeira hora é dos amigos que têm piedade do autor e compram não somente para si, mas para presentear os parentes. Na verdade, o primeiro dia é o melhor dia de vendas para o livro de um autor desconhecido. O teste de fogo é do segundo dia em diante. É sintomático que o jornalista não tenha sequer mencionado as vendas do primeiro dia, mas somente as da primeira hora, e usando um truque manjado.

A única eleição de destaque de Boulos foi a última pela prefeitura de São Paulo, quando chegou ao segundo turno contra Bruno Covas. Perdeu por 60 a 40, mas não pela falta de apoio de jornalistas como o autor da nota, que não medem esforços para inflar a bola do novo queridinho das esquerdas. Nem que, para isso, tenha que usar truques manjados de estatística.

Correlação não é causalidade

Tem um troço em estatística que é difícil pra diabo de detectar: causalidade. Medir a correlação entre fenômenos é relativamente fácil, coisa que qualquer estudante de colegial é capaz de fazer. O problema é definir, em uma correlação, qual fenômeno causa o outro, se é que existe alguma causalidade.

Essa dificuldade não impediu, no entanto, que o bravo pesquisador cravasse, sob o olhar bovino do repórter, a causalidade entre o desmatamento e a pobreza. Com base na correlação entre um indicador de qualidade de vida, o IPS, e os municípios que mais desmataram, o pesquisador chegou à brilhante conclusão de que o desmatamento GEROU a pobreza. Gostaria de ver os testes de Granger que permitiram essa conclusão. Acho melhor esperar sentado.

Com a mesma sem cerimônia, eu poderia propor o inverso: a pobreza gera o desmatamento. Provavelmente não conseguiria provar também, mas, pelo menos, acho que minha hipótese faz mais sentido. Na verdade, cada um pode achar qualquer coisa, há estatísticas para corroborar qualquer agenda. O que importa, no final do dia, é a narrativa. A ciência que se lasque.

A importância do jornalismo profissional, apesar de tudo

“Apesar de adotar objetivos progressistas, governo democrata enfrenta número excessivo de imigrantes”.

Este é o lead da matéria sobre o imbróglio que o governo Biden está enfrentando nessa questão da imigração. Digamos, em uma realidade alternativa, que o lead fosse o seguinte:

“Por causa de seus objetivos progressistas, governo democrata enfrenta número excessivo de imigrantes”.

Este segundo hipotético lead seria interpretado como propaganda do governo Trump e só poderia ter sido publicado em algum site alt-right. Já o primeiro é, supostamente, neutro. Só que não.

O uso do “apesar” também faz uma ligação entre as “políticas progressistas” e o “número excessivo de imigrantes”: trata-se de uma relação de não causalidade. Ao usar “apesar”, o jornalista está afirmando que as políticas progressistas NÃO SÃO responsáveis pelo número excessivo de imigrantes. A causa da crise humanitária deve ser procurada em outro lugar.

Sairá de mãos abanando os que procurarem, na matéria, possíveis explicações para o aumento do número de imigrantes. Parece mais uma força incontrolável da natureza, uma catástrofe que calhou de cair sobre os ombros do presidente democrata. Um azar, dado que justamente ele adotou “políticas progressistas”.

A matéria seria neutra se deixasse essa bobagem de “políticas progressistas” de lado. Existe uma crise humanitária e o governo Biden não está conseguindo enfrentá-la, ponto. Avaliações sobre “políticas progressistas”, em clara contraposição às “políticas reacionárias” de seu antecessor, só mostram o lado do jornalista. E abrem o flanco para um leitor medianamente inteligente chegar à óbvia conclusão de que são exatamente essas “políticas progressistas” que estão causando a vaga de imigrantes.

Para terminar: em favor do jornalismo profissional, é de se notar que esse tipo de reportagem sequer teria espaço em um veículo puramente militante. O Granma não publica os problemas do sistema cubano, como o fazem o NYT ou o Washington Post em relação aos problemas do governo americano, apesar dos vieses. O fato de se publicar matérias sobre a crise dos imigrantes, apesar da tendência do jornalista, mostra a importância de termos uma imprensa profissional independente em uma democracia. Cabe a nós, leitores conscientes, separar o joio do trigo, evitando jogar o bebê junto com a água suja da banheira.

Jornalismo militante

Por ocasião do discurso de Bolsonaro na ONU, várias agências de fact checking saíram a campo para checar as afirmações do presidente. Algumas foram classificadas como “verdadeiras, mas falta contextualizar”. Por exemplo, a afirmação “o Brasil vai crescer 5% neste ano” é verdadeira, mas faltaria dizer que as previsões para 2022 estão ficando cada vez mais pessimistas. Alguém consegue imaginar Bolsonaro dizendo “estamos muito bem esse ano, mas ano que vem iremos muito mal”?

Bem, se a moda da “contextualização” pegar, uma boa parte das notícias (supostamente algo a que devemos prestar atenção) virarão uma “não notícia”. É o caso dessa manchete: “Prevent está entre as operadoras com mais processos na ANS”.

Segundo a matéria, a operadora está em 39o lugar entre as mais reclamadas pelos usuários e em 7o lugar em número de processos. A reportagem não explora o porquê dessa diferença entre número de reclamações e de processos, o que seria o mínimo para contextualizar o dado. Mas, sigamos.

Fui pesquisar um dado básico para interpretar esses números: as maiores operadoras do país. A tabela abaixo mostra que a Prevent é a 8a maior, o que torna o seu 7o lugar em número de processos absolutamente compatível com o seu tamanho. Incompatível era a sua posição anterior, que mostrava uma satisfação dos clientes bem acima da média.

O aumento das reclamações poderia ser alvo de uma reportagem, mas não o número em si. Aliás, 150 reclamações por mês resulta em 1.800 por ano, o que representa 0,3% da base de clientes da operadora. Este número não me parece especialmente alto, mas caberia aqui uma pesquisa sobre satisfação de clientes de outras operadoras, o que, obviamente, o jornalista não fez, pois, se fizesse, provavelmente se depararia com uma “não notícia”.

É interessante como a imprensa exige de políticos uma narrativa absolutamente fidedigna da realidade, como se políticos não fossem agentes que, por natureza, criam narrativas edulcoradas para ganhar votos. Cabe aos formadores de opinião e às pessoas em geral separar o joio do trigo no discurso dos políticos. Ou alguém imagina políticos dando tiros no próprio pé em nome da “verdade dos fatos”?

Por outro lado, espera-se da imprensa a correta contextualização das notícias. Aqui não cabe edulcorar ou carregar nas tintas, mas, simplesmente, informar da forma mais imparcial possível. Essa reportagem sobre a Prevent mostra, em sua falta de contextualização, uma “notícia” que entra no campo da narrativa política. Aí já não é mais jornalismo, é militância.

Denúncia!

Descobri recentemente um dos melhores quadros de humor do YouTube brasileiro, o programa Falha de Cobertura, em que os “comentaristas” Craque Daniel e Cerginho da Pereira Nunes expõem, de forma escrachada, o ridículo desses programas de debate esportivo. Em um dos seus muitos quadros, o comentarista semi-analfabeto Cerginho grita de repente DENÚNCIA!, para, em seguida, expor, com um ar sério afetado, alguma obviedade. Por exemplo: “a bola é redonda e isso está sabotando o bom futebol dos nossos craques!!!”

Lembrei-me desse quadro ao ler a reportagem de hoje sobre “queima de árvores nobres”, que mereceu destaque na capa do Estadão. A matéria tem ar de denúncia, como se algo de muito grave estivesse em curso.

Daí você vai ler a matéria e descobre que:

– não se trata de árvores, mas de toras. Aliás, a foto é de toras, desmentindo o título da reportagem

– as árvores foram derrubadas com a permissão do Ibama para a construção do reservatório de Belo Monte

– foi tentada a doação, mas o custo do frete inviabiliza o transporte para muitos potenciais beneficiários

– a tabela fornecida pela empresa, e reproduzida na reportagem, indica pouco mais de mil metros cúbicos de madeira nobre ou protegida por lei destinada a ser transformada em carvão. No entanto, a matéria coloca como “vítima” da sanha carvológica da empresa o número total de 3,5 mil metros cúbicos. Aliás, a tabela recebe como título a sugestiva palavra QUEIMADA. O que tem a ver a prática da queimada com o uso de madeira em fornos, fica a cargo do jornalista explicar.

Fiquei procurando na matéria o que foi feito de errado ou o que poderia ser feito de diferente agora, mas saí de mãos abanando.

A cereja no bolo da “denúncia” é a frase final da matéria, que nos informa que a usina foi construída em uma região onde há desmate ilegal. No que o leitor minimamente alfabetizado se pergunta: o que tem a ver o c com as calças?

Cerginho da Pereira Nunes faz o papel de um “jornalista” com claros limites cognitivos. Seus quadros de denúncia são escritos, com sucesso, para nos fazer rir. Ele é engraçado por não se levar a sério. A reportagem de denúncia do Estadão, por outro lado, nos faz chorar, pois o jornalista e o veículo se levam a sério ao fazer uma denúncia que cairia melhor em um programa como o Falha de Cobertura.

Armas e homicídios: em busca de uma correlação

Com mais armas, homicídios voltam a subir no Brasil.

Esta é a correlação defendida pela manchete da reportagem do Estadão, com base nos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. Na matéria, ficamos sabendo que foram registrados 186 mil novas armas no Brasil em 2020, 97% a mais do que em 2019. Então, mais armas, mais homicídios, correto?

Seria assim se fosse assim.

Primeiro, porque não se faz análise de série temporal com 2 pontos.

Segundo, porque o número de armas registradas já havia aumentado de maneira significativa em 2019. De acordo com outra reportagem, da BBC News, em 2019 o número de armas registradas havia aumentado 84% em relação aos registros de 2018. E, no ano de 2019, o número de homicídios havia diminuído. Além disso, se esta correlação fosse verdadeira, deveria valer no nível de cada unidade da federação. Plotei um gráfico simples, com base nos dados do Anuário, relacionando variação de homicídios com variação do número de armas, por unidade da federação. O resultado pode ser observado no gráfico abaixo.

A correlação é virtualmente zero. Há estados, como o Ceará, onde o número de homicídios aumentou de maneira significativa sem aumento significativo do número de armas, ao mesmo tempo em que observamos estados como Minas Gerais, onde o número de armas aumentou de maneira significativa sem aumento do número de homicídios.

Claro que há outros fatores que explicam o aumento do número de homicídios. A desestruturação da Polícia Militar no Ceará deve explicar boa parte do aumento de homicídios naquele estado, o que, por sua vez, explica 78% do aumento de homicídios no país em 2020 (aliás, esta deveria ter sido a manchete).

Por outro lado, se o número de armas fosse outro fator relevante, deveria aparecer em uma análise cross-sectional simples como a do gráfico acima. Aliás, mesmo que aparecesse alguma correlação, esta poderia ser espúria, devida a outros fatores não considerados. Mas o oposto não ocorre: haver correlação e não aparecer em uma regressão como a que foi feita acima.

Resumindo: o aumento do número de homicídios pode até ter alguma correlação com o aumento do número de armas em posse dos cidadãos. Mas não são as estatísticas do Anuário da Segurança Pública 2020 que provam a tese.

Escutar os dados

“Prefeituras poderiam ser escutadas, não só ouvidas”.

Escutar os dados é uma arte que poucos dominam. Somos, todos, reféns do viés de confirmação: damos ouvidos apenas aos dados que confirmam a nossa tese de estimação.

Pedro Fernando Nery, neste artigo, toma como exemplo a notícia da Folha sobre as tais “vacinas vencidas”, que se provou falsa como uma nota de R$3 depois que ficou claro tratar-se de atraso de registro. Neste meio tempo, claro, o medo tomou conta de uma parcela da população, em um assunto já tão sensível quanto a campanha de vacinação. Enfim, um desserviço.

A boa notícia é que essas falsas notícias normalmente não têm vida longa: os dados objetivos acabam se impondo, e a verdade é reestabelecida. Foi o que aconteceu neste caso.

Quer dizer, estou sendo um pouco ingênuo. Essas falsas notícias acabam sendo desmentidas somente para aqueles que escutam os dados. Para aqueles que têm tese de estimação, nada neste mundo é capaz de derrubar uma boa fake news. Sempre haverá “alguma coisa por trás”, tornando a tese verossímil. Aí, não tem jeito.