O mito Maradona

Maradona não se explica somente pelo futebol. Um dos gênios da bola de todos os tempos, difícil classificá-lo como melhor do que, sei lá, Zito, Beckenbauer, Rivelino, Zico, Ronaldo, Messi, Zidane e uma longa lista de etceteras. Do ponto de vista estritamente técnico, vamos ficar um século discutindo as virtudes e defeitos de cada um deles para tentar classificá-los em ordem de habilidade. Um exercício tolo.

Um craque se faz pelos feitos, mais do que pela habilidade. Certamente há artistas de circo que podem fazer com uma bola mais do que Maradona fazia. Não se trata disso. Trata-se de feitos.

Vou aqui arriscar uma explicação para a comoção que tomou conta da Argentina e do mundo com a morte de Dieguito. A pista está nas imagens repetidas ad nauseam nas reportagens sobre o assunto: os dois gols contra a Inglaterra na Copa de 86. Maradona tem inúmeros gols e lances de gênio. Mas são esses dois gols os que dominam as reportagens. Por que? Aqui entra a minha sociologia de botequim.

A Argentina tinha sido vencida pela Inglaterra na guerra das Malvinas quatro anos antes. Mais do que vencida, humilhada. O futebol era o único campo em que a Argentina tinha alguma chance de devolver a humilhação sofrida por toda uma nação. E quem foi o artificie dessa redenção?

Não foram dois gols comuns. Um deles foi um dos mais bonitos de todas as Copas e o outro aconteceu através de uma malandragem bem latino-americana, ludibriando regras e juízes em um mundo onde o mais forte nem sempre sai vencedor. Um jogador de 1,65 vencer pelo alto um goleiro pelo menos 20 cm mais alto desafia qualquer regra de física elementar. Mas não para o juiz e todos os espectadores (inclusive eu, que estava assistindo ao jogo na TV), convencidos que estávamos de que Maradona era sim capaz de fazer aquilo. Ainda bem que não existia o VAR para estragar aquele momento mítico.

Indo um pouco além. Maradona foi autor de outro gol fantástico na mesma Copa, contra a Bélgica, semelhante ao gol contra a Inglaterra. Ele dribla praticamente a defesa inteira do adversário e marca. Por que esse gol não é sequer mostrado nas reportagens? Ora, porque esse é apenas mais um gol fantástico do craque, mas não um gol mitológico.

E por que mitológico? Por que aquele gol, juntamente com o gol da mão de Deus, redimem o povo argentino. Humilham zagueiros, juízes e regras. É o desabafo de um povo cansado, humilhado, que explode em um grito de gol que transcende o futebol.

A Copa do Mundo é o palco da guerra pacífica entre as nações. Clubes podem comprar o futebol de craques, montar estruturas milionárias que faturam campeonatos. Seleções nacionais não. Seleções nacionais representam o que de melhor cada país pode produzir. O dinheiro não compra uma boa seleção nacional. Caso comprasse, os Estados Unidos teriam um track record bem melhor. Não. Seleções nacionais são a expressão do futebol como paixão de um povo. Não é à toa que, em dias de jogos de Copa do Mundo, o país para. E não é só o Brasil.

Maradona é mito porque o futebol é um esporte mitológico, que transcende as quatro linhas. É só por isso que Maradona tornou-se uma lenda. Jogou com maestria e conquistou feitos em um esporte que não é simplesmente um esporte.

A injustiça do VAR

Sou do tempo em que Maradona fez o gol de mão contra a Inglaterra. La mano de Dios. Um erro claro da arbitragem. Mas claro no replay. Na hora, o gênio fez com que todos acreditassem que um jogador de 1,65m ganhou de cabeça de um goleiro muito mais alto que saiu com as mãos. Se houvesse o VAR, teríamos sido privados de um momento histórico, épico, comentado até hoje, mais de 30 anos depois.

Quando lançaram o VAR, critiquei aqui. Hoje foi apenas mais um dia em que aprofundei na convicção de que o VAR não tem nada a ver com futebol.

Futebol é a vida, com seus erros e acertos, com a sua não linearidade, poucos momentos apoteóticos cercado de mesmice por todos os lados. Futebol só é o esporte mais popular do mundo porque é assim. O VAR torna o esporte mais parecido com outras coisas em que a tecnologia tem um papel fundamental na decisão de quem é o vencedor. Natação ou atletismo, por exemplo.

Ninguém gosta de ser vítima de um erro do árbitro, claro. O VAR veio acabar com essas supostas injustiças. Mas o que se viu hoje na Vila Belmiro foi justamente o oposto: o VAR cometeu injustiça, mesmo cumprindo a letra fria da regra.

Nos dois lances, o impedimento era impossível de ser visto a olho nu. Foi um centímetro, se muito. É muito difícil defender que este “adiantamento” tenha sido decisivo para que o gol tivesse sido marcado. Se o jogador estivesse um centímetro para trás, provavelmente o desfecho teria sido o mesmo.

O que eu quero dizer é que lances impossíveis de serem detectados pelo juiz em campo (com a possível exceção a atitudes anti-desportivas) deveriam fazer parte daquilo que chamamos, na vida, de “erro normal”. Nos tempos em que não existia o VAR, esses dois lances seriam revisados pelos comentaristas, haveria muita discussão sobre se havia ou não impedimento, mas a conclusão seria unânime: impossível o bandeirinha perceber.

Antes de dizerem que o choro é livre, estaria escrevendo a mesma coisa se o erro do VAR fosse a favor do meu time. Sim, erro do VAR. Não se anula um gol quando são necessários 5 minutos para se concluir que havia impedimento. Se a máquina demora essa eternidade, então é porque tem algo muito errado nisso tudo.

Enfim, acho a tecnologia interessante quando avisa o juiz quando a bola ultrapassou a linha, ou que houve uma atitude anti-desportiva. Mas o que se viu hoje foi a letra vencer o espírito, a regra vencer a alma do jogo. Não, me desculpem, isso é tudo, menos futebol.