Só pode ser isso

– Tá difícil.

– Mas por que, Maia?

– Por que ninguém no Congresso quer e o povo tá se lixando pro assunto.

– Mas a prisão em 2a instância é uma pauta popular, todo mundo quer.

– Quer nada! Você não viu que esse assunto saiu da mídia? Todo mundo voltou pra sua vida normal, nem do Moro lembram mais.

Marco Aurélio dá então um sorriso maroto que mal consegue disfarçar.

– Tive uma ideia. Vou tomar uma decisão que vai tornar a aprovação da prisão em 2a instância uma daquelas pautas que não dá mais pra ignorar.

– Ah sim? Qual?

Mas Marco Aurélio não esperou a pergunta de Maia, já se dirigindo ao edifício do lado na Praça dos 3 Poderes.


Não, esse diálogo não aconteceu. Mas não consigo pensar em outro motivo para a decisão de soltar um chefão do PCC. Só pode ser isso.

Ainda a prescrição de pena

Escrevi exatamente isso aqui ontem. O ministro Marco Aurelio toca no nervo do problema: a prescrição é só a cereja do bolo, a questão verdadeira são as décadas que processos levam para serem julgados em Brasília. Queremos a punição após a 2a instância como uma gambiarra constitucional para um problema de celeridade da justiça.

Óbvio que o STF não vai mover uma palha para diminuir a possibilidade de embargos dos embargos dos embargos, nem mudará uma vírgula seus supremos procedimentos. Então, a prisão após condenação em 2a instância é o que resta no país dos puxadinhos.

Coerência

Ao proibir o trabalho insalubre de gestantes, o STF reconhece o status legal dos nascituros. Sim, porque a única diferença entre uma mulher grávida e uma não grávida é o nascituro. Se a primeira não pode trabalhar em condições insalubres e a segunda pode, então só pode ser por causa da existência do nascituro.

O ministro Marco Aurélio Mello foi o único a divergir, defendendo a “liberdade da mulher no sentido maior”. Nenhuma referência ao nascituro. Marco Aurélio Mello passa a ser o único ministro do STF que pode defender o aborto sem cair em contradição.

Duvída seríssima

A manchete diz: “Marco Aurelio tem dúvida seríssima sobre a existência dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro”.

Aí você vai ler, e a dúvida se refere somente à lavagem. Não há dúvida sobre corrupção. É “somente corrupção” ou “corrupção mais lavagem”.

Tenho dúvida seríssima sobre a capacidade de interpretação de texto do jornalista.

Privatização envergonhada

Ontem, a liminar do fim do mundo captou corações e mentes dos brasileiros, e passou despercebida outra decisão do ministro Marco Aurelio: a suspensão de um decreto de Temer que permitia à Petrobras vender ativos sem licitação.

O ministro acatou pedido do PT, que via no decreto uma forma do governo continuar a “devastação” da empresa.

Querem saber? Tanto o PT quanto o ministro Marco Aurélio estão absolutamente certos neste caso.

O governo Temer vem tentando recuperar a maior estatal brasileira do desastre lulopetista. Para tanto, nomeou uma gerência profissional e deu início a um programa de saneamento, o que incluiu a prática de preços de mercado para os combustíveis e a venda de ativos para a desalavancagem do balanço da empresa.

O que o decreto de Temer pretendia era, na prática, equiparar a Petrobras a uma empresa privada, no que concerne à compra de equipamentos e venda de ativos. Trata-se, obviamente, de uma gambiarra.

Na falta da vontade/capacidade política de privatizar a empresa, procura-se torná-la, para todos os efeitos práticos, uma empresa privada, mas permanecendo estatal.

Ora, ou a empresa é estatal ou é privada. Não dá pra ser as duas coisas ao mesmo tempo. Pra que serve uma empresa estatal, senão para cumprir políticas de governo? Que sentido tem o Estado poder tirar petróleo do subsolo se não for para usá-lo como subsídio para suas políticas?

Nesse sentido, Dilma estava absolutamente correta ao usar a Petrobras para controlar a inflação, congelando os preços dos combustíveis. Se a Petrobras não serve para isso, vai servir para o que mais? Também o PT/PMDB/PP estavam absolutamente corretos em usar a Petrobras para obter “fundos partidários” a partir de contratos fraudados. Afinal, se uma estatal não serve pra isso, pra que ela existe mesmo?

O PT acusa o governo Temer de “devastar” a empresa ao equipara-la a uma empresa privada. Certíssimo! Uma estatal que não serve aos interesses do governo de plantão perde a sua razão de existir.

Existem pessoas que genuinamente creem que uma empresa estatal pode ser tão bem gerida quanto qualquer empresa privada. O que o PT e o ministro Marco Aurélio vieram nos recordar é que isso não é possível. Uma estatal deve estar amarrada por uma série de regras que a deixam muito mais ineficiente, mas que, ao mesmo tempo, não impedem a rapinagem, como exaustivamente provado pelo Petrolão.

Temer quis dar um “jeitinho” de privatizar a Petrobras mantendo-a estatal. O PT e o ministro Marco Aurélio corretamente disseram não.

A privatização sem subterfúgios, pra valer, da Petrobras é a única solução definitiva que tirará essa estrovenga das costas dos brasileiros.

Ação e reação

O ponto alto desse julgamento sem dúvida foi a reação do Marco Aurélio Mello e do Lewandowski ao voto da Rosa Weber, e a reação da ministra aos dois. Para os anais da história do tribunal, merece um meme.

Evento institucional grave

O documento assinado pela mesa do Senado invoca a independência dos poderes para justificar a desobediência à liminar do ministro Marco Aurélio Melo, que decidiu monocraticamente afastar da presidência do Senado o senador Renan Calheiros. Entendo que há ao menos duas incongruências combinadas aqui:

1) Ao dizer que não acataria a decisão do Supremo por esta ter sido monocrática, o Senado concorda implicitamente que o colegiado do Supremo tem o poder de afastar o seu presidente. Ora, se o colegiado tem este poder, também o tem um ministro que toma uma decisão monocrática, ainda que incorreta. Se assim não fosse, as decisões monocráticas deveriam ser abandonadas de todo, pois nada valeriam.

Mas o segundo ponto é o mais importante.

2) A decisão de Marco Aurélio Melo afrontou a independência entre os Poderes? Ora, quando o Supremo afastou Eduardo Cunha da presidência da Câmara, discutiu-se este ponto, e aparentemente não houve dúvida de que o Supremo poderia ter tomado aquela decisão. Naquele caso, entendeu-se que o Supremo não invadiu as atribuições da Câmara, pois entre estas não está a de julgar os seus pares por crime, sendo esta uma atribuição exclusiva do Supremo. A diferença entre um caso e outro não pode ser decisão monocrática versus decisão colegiada pois, como vimos no ponto acima, as duas têm o mesmo enforcement. Portanto, a decisão, por mais estapafúrdia que seja, deveria ter sido cumprida. Ao não ser que, e este é o ponto crucial no meu entender, O SENADO TENHA INVADIDO A COMPETÊNCIA DO SUPREMO. Se houve desrespeito à separação de poderes, foi do Senado em relação ao Supremo, e não vice-versa.

Como este imbroglio poderia ter sido resolvido pelo Senado? Simples: Renan acataria a decisão, o Senado faria pressão para que o Supremo julgasse rapidamente a liminar, que poderia ser derrubada, desmoralizando (mais uma vez) Marco Aurélio Melo, dado que a decisão foi mesmo estapafúrdia.

Como este imbroglio será resolvido agora, em que o Senado liderou uma desobediência civil? Sinceramente, não sei. O Supremo será obrigado a confirmar a liminar de Marco Aurélio, que de outra forma poderia ser rejeitada, mas ir adiante com qualquer outra penalização é institucionalmente inviável.

Este é um evento grave. De agora em diante, o Congresso decide quais decisões do Supremo sobre seus membros vai ou não acatar, e em que condições.