Sobra boa vontade, falta matemática

Há muito venho falando que os jornalistas precisariam de uma formação melhor em matemática, até para que possam defender seus pontos com mais propriedade e credibilidade. A falha dessa formação acaba por desmoralizar a própria agenda defendida, às vezes até injustamente.

O caso de hoje é a campanha na imprensa pela volta da obrigatoriedade do uso de máscaras, principalmente nas escolas.

Não vou aqui entrar no mérito da questão, mesmo porque não sou infectologista. Meu ponto é somente relativo ao exemplo usado pelo jornalista para ilustrar a preocupação da presidente da APEOESP, a deputada estadual petista professora Bebel.

Segundo o site do sindicato dos professores da rede estadual de ensino de SP, 182 casos de Covid foram registrados em 16 dias.

Considerando que a rede estadual de SP conta com 3,5 milhões de alunos, fora professores e funcionários, temos uma média de 3 casos/milhão/dia. Perto dos 125 casos/milhão/dia registrados no estado de SP nos últimos 7 dias, segundo dados do ministério da Saúde, essa incidência nas escolas estaduais paulistas é um zero estatístico.

Claro, sempre se poderá dizer que o site da APEOESP não registra todos os dados da doença. Ok, digamos que seja verdade. Então por que raios esses dados foram citados na reportagem??? Eu digo porque: as pessoas, em grande parte, incluindo o jornalista, não fazem essa conta. Elas olham o número absoluto, 187 casos em 11 dias somente nas escolas, e realmente acreditam que se trata de algo assustador. Um jornalista minimamente formado em matemática descartaria usar esse número na reportagem, por depor contra a tese da matéria.

Com reportagens dessa qualidade, o uso obrigatório de máscaras continuará sendo um desejo distante.

A última palavra é a minha

Entrevista com especialista que condena o fim da obrigatoriedade do uso de máscaras. Muito cedo ainda, diz a especialista, sem dar uma pista de quando exatamente seria o momento para isso.

O que me chamou a atenção foi a citação da Coreia do Sul como contra-exemplo. Apesar de distribuírem máscaras de boa qualidade para a população, a baixa taxa de vacinação teria posto tudo a perder.

Bem, está tudo errado. Em primeiro lugar, achei estranha a afirmação de que a Coreia estaria atrasada na vacinação a essa altura do campeonato. Fui checar. Na verdade, o país é um dos mais adiantados, conforme podemos ver no gráfico abaixo. Além disso, é matematicamente impossível, em um país com uma grande população de idosos como a Coreia, vacinar 87% da população sem vacinar os idosos.

Se houve vacinação, decorre que a distribuição de máscaras em si aparentemente não foi suficiente para evitar um grande surto na Coreia. Então temos três falhas no raciocínio da especialista, uma factual e duas de lógica:

1) a factual é a informação sobre a vacinação;

2) a primeira falha lógica se refere à baixa vacinação na Coreia como causa do surto. Ora, se a vacinação lá estivesse baixa, o problema não estaria na falta de máscaras, mas na falta de vacinação. Um país como o Brasil, com alta taxa de vacinação, poderia, em determinado momento, abrir mão das máscaras. A referência à baixa vacinação da Coreia, na verdade, reforça o case pelo abandono das máscaras em países com alta taxa de vacinação;

3) a segunda falha lógica é afirmar que a Coreia distribui máscaras de excelente qualidade para toda a população. Se isso for verdade e, mesmo assim, o país enfrenta um surto, isso depõe contra as máscaras, não a favor.

Mas essas falhas de argumentação não são nem o ponto mais contraditório da matéria. A grande questão é que uma decisão tomada com base no parecer de um comitê científico está sendo contestada por especialistas. Fica parecendo que a ciência tem a última palavra, desde que eu concorde com ela.

Comemorando a vitória

Ontem fui a um bar, desses com mesinhas na rua, para o happy hour semanal com minha esposa. Foi a primeira vez, desde março de 2020, que saímos na rua e entramos no bar sem precisar usar máscaras.

O bar e a rua estavam fervilhando de gente. Grupos de amigos e casais em sua vida normal, curtindo o início do fim de semana. Mas havia uma energia diferente. Lembrei da foto que ilustra este post.

Trata-se, talvez, da foto mais icônica da história da fotografia. O regozijo transborda da foto e o beijo apaixonado do marinheiro na enfermeira marca a alegria de ter deixado uma guerra terrível para trás.

Tive a mesma sensação ontem. Deixar de usar máscaras marca o fim de uma guerra, em que ficamos enfurnados em casa, longe da família e dos amigos, com as ruas vazias e o comércio e escolas fechados. Uma guerra triste, em que muitos entes queridos foram levados pela doença. Mas uma guerra que ficou para trás, graças ao engenho humano, que conseguiu desenvolver vacinas em tempo recorde. As pessoas na rua, sem máscaras, estavam como que extravasando essa alegria.

Os realistas de plantão dirão que a guerra ainda está longe de acabar. Casos aumentam na Europa e na Ásia, e é questão de tempo para que aumentem aqui também. Sim, isso é verdade. Agora, imagine que um realista desse tipo batesse no ombro do marinheiro e interrompesse o beijo apaixonado, para falar que a guerra, na verdade, ainda não tinha terminado. Veríamos ainda um muro sendo erguido em Berlim, a crise dos mísseis de Cuba, as guerras da Coreia, do Vietnam, do Afeganistão, do Iraque, da Ucrânia, as torres gêmeas…

O realista está correto. A guerra nunca acaba de verdade. Mas há momentos em que é preciso comemorar. As máscaras são um símbolo da guerra contra a Covid, e a sua dispensa é um sinal de vitória. A mensagem é que deixamos o pior para trás, e vamos conviver com a doença como convivemos com muitas outras, na base da vacina e do tratamento. Definitivamente, não voltaremos ao quadro que vivemos em 2020 e parte de 2021. Poderemos lutar em outras guerras. Mas essa está vencida.

PS.: aqui não vai absolutamente nenhuma crítica a quem deseja e acha importante continuar usando máscara. Cada um faz a sua avaliação particular de risco e benefício, e toma a decisão que melhor se adequa a essa avaliação. O que inclui também respeitar quem toma a decisão de não usar máscara, porque fez a mesma avaliação e chegou a uma conclusão diferente.