Entre mentiras sinceras e mentiras escancaradas

Em março, quando Fernando Haddad anunciou o “novo arcabouço fiscal”, todo mundo olhou para aquelas metas de resultado primário e disse: sério? Era claro que a meta de déficit zero em 2024 era inalcançável, a menos que houvesse um aumento brutal da carga tributária, algo próximo de 1,5% do PIB. Desde então, o que vimos foi o ministro da Fazenda correndo atrás de receitas, com resultados pífios.

No entanto, desde março, enquanto o mercado financeiro externo permitiu, o nosso mercado melhorou muito: as taxas de juros longas caíram, o real se valorizou e a bolsa subiu. Além disso, o presidente do BC, Roberto Campos, tem mencionado a questão fiscal nos comunicados do Copom de maneira muito mais suave. No primeiro Copom do ano, Campos coloca a questão fiscal entre os fatores de risco para a inflação: “a ainda elevada incerteza sobre o futuro do arcabouço fiscal do país”. Já no último Copom, a questão fiscal não aparece mais entre os fatores de risco, e a menção se dá em relação às metas fiscais: “Tendo em conta a importância da execução das metas fiscais já estabelecidas para a ancoragem das expectativas de inflação e, consequentemente, para a condução da política monetária, o Comitê reforça a importância da firme persecução dessas metas”. Voltaremos à importância dessa “persecução” adiante.

Por que um arcabouço frouxo e metas fiscais não críveis (para não dizer incríveis) tiveram o condão de fazer o mercado melhorar e o Copom tirar o risco fiscal de seu balanço de riscos? A resposta é simples: ancoragem de expectativas.

Em primeiro lugar, o “novo” arcabouço é um teto de gastos aguado. É um teto, mas chama diferente. A regra do antigo teto permitia crescimento real zero de despesas. No “novo” arcabouço, as despesas podem crescer acima da inflação, a depender do crescimento de receitas. Mas, ainda assim, há um teto, ainda que mais frouxo.

Com esse teto, digamos, retrátil, estava garantido que a dívida pública não entraria em uma trajetória explosiva. No entanto, temos uma dívida muita alta para o nosso nível de taxa de juros, e era preciso sinalizar que a dívida não só não era explosiva, mas que entraria em uma trajetória firme de redução. É nesse ponto que entra a meta de superávit primário. Com essa meta, Haddad estava sinalizando para o mercado o desejo do governo de reduzir a dívida pública. Para tanto, haveria uma combinação de controle frouxo de despesas com aumento da arrecadação, e a “persecução” da meta de superávit (no dizer do Copom) seria uma forma de medir o real desejo do governo de reduzir a dívida pública ao longo do tempo.

Mas note uma coisa: ao passo que a regra de crescimento de despesas está agora inscrita na Constituição, a regra de resultado primário não é, a rigor, sequer uma regra. O resultado primário está implícito na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), que é o orçamento do governo aprovado pelo Congresso. Qualquer dificuldade para cumprir a meta de resultado primário pode ser facilmente acomodada através de emendas à LDO.

Bem, se a regra de gastos é frouxa, se o aumento da arrecadação é incerto e se a meta de resultado primário pode ser facilmente mudada, então porque raios o mercado comprou a ideia do déficit zero para 2024??? Na verdade, não comprou. O relatório Focus indica um déficit primário de 0,8% do PIB para o ano que vem.

Sim, eu sei que agora você deve estar bem confuso. Afinal, se o mercado não acredita no Haddad e prevê um déficit de 0,8% do PIB para o ano que vem, então porque esse bafafá todo em torno da fala do Lula? O presidente não estaria somente externando algo que o mercado já espera? É aqui que entra o papel das expectativas.

Por mais que a meta seja difícil de alcançar, ela funciona como uma âncora para as expectativas. O mesmo acontece com a meta de inflação: o BC não cumpriu a meta nos últimos dois anos, mas nem por isso o mercado achou que a autoridade monetária havia desistido da meta. Sua comunicação e seus atos sempre foram na direção de garantir que os agentes de mercado permanecessem na crença de que a meta estava sendo perseguida.

Mentiras sinceras (no dizer do poeta) interessam ao mercado, e é isso que Roberto Campos deve ter dito a Fernando Haddad. É preciso manter a promessa, mesmo que todos saibam que será muito difícil cumpri-la. Claro que promessas não seguidas de atos acabam por perder a credibilidade. E era exatamente isso o que o mercado estava esperando para o ano que vem. Na medida em que fosse ficando claro que a meta não seria cumprida, Haddad até poderia mudá-la ao longo do ano que vem, mas sempre mantendo o discurso de “persecução” da meta ao longo do tempo, acompanhado, por exemplo, com um contingenciamento de despesas, para manter a credibilidade da promessa.

O pecado de Lula está em que ele já avisou que não vai cortar nada, e que a promessa é da boca para fora. Desnudou-se a mentira, que de sincera passou a ser escancarada. O resultado disso serão taxas de juros mais altas ao longo do tempo. E se a nova composição do BC for leniente, mais inflação.

Quem viver, verá

Conforme o esperado, e apesar do esperneio do presidente, a meta de inflação foi mantida em 3%, com bandas de 1,5% para cima e para baixo. A única coisa que mudou é que, a partir de 2025, a meta não precisará mais obedecer o ano calendário, será contínua. Antes de explicar o que isso significa, há que reconhecer que o presidente Lula, apesar de ser boquirroto, não é tolo. Manteve a meta em 3%, apesar de querer aumentá-la. O copo meio cheio, aqui, é reconhecer que as ponderações de Campos Neto surtiram efeito junto ao Planalto.

O que significa essa mudança de metodologia. Para falar a verdade, de prático, não significa nada. Explico.

Hoje, apesar da meta se referir ao ano calendário, o Copom já toma a sua decisão com base em um horizonte móvel de 12 a 18 meses à frente, que é o tempo necessário para que uma decisão hoje afete a inflação no futuro. A economia é um grande transatlântico, e se o comandante quiser desviar de um iceberg, precisa começar a virar o leme muito antes. Então, na prática, o horizonte de decisão já é contínuo. O que vai mudar é que o BC não precisará mais prestar contas anualmente como é hoje, e não ficou claro como será essa prestação de contas no novo sistema, se é que haverá alguma. Mas a prestação de contas está longe de obrigar o BC, não há penalização por não ter cumprido a meta em determinado ano. Então, o que realmente continuará valendo é o horizonte contínuo.

O inefável ministro da Fazenda, no entanto, apresentou a mudança como algo revolucionário, na melhor tradição do circo de pulgas que é este governo, em que cada micro iniciativa é anunciada como o “maior espetáculo da Terra”. Nas palavras do ministro, “a mudança do regime de meta é fundamental para o futuro do país”. Nada menos.

Há que se perguntar porque desse ânimo todo. É fácil de entender. Haddad e sua patota acreditam piamente que, com esse “horizonte contínuo” o BC poderá suavizar a sua atuação ao longo do tempo, não precisando apertar tanto a política monetária quando houver choques. Ora, o Banco Central JÁ FAZ isso hoje. Não por outro motivo, Campos Neto vai perder a meta de inflação esse ano pelo terceiro ano seguido. O BC não é escravo do ano calendário. Se o fosse, a taxa de juros seria muito, mas muito maior do que é hoje.

O que Haddad espera, de verdade, é poder empurrar com a barriga indefinidamente a convergência da inflação para a meta. Aparentemente, ele está confundindo não ter uma meta para o ano calendário com não ter meta alguma. Tombini fez isso: a inflação ficou consistentemente acima da meta ao longo de todo o seu mandato, a ponto de desancorar as expectativas mais longas da inflação, o que exigiu uma política monetária muito mais dura (Selic a 14,25%) quando precisou trazer a inflação de volta para a meta.

A meta contínua só vale a partir de 2025. Perguntado porquê, Haddad saiu-se com essa: “É quando começa o mandato de um novo presidente, decidimos alterar o regime para horizonte contínuo a partir dessa data”. Além da personalização de uma instituição que não deveria depender das pessoas, Haddad, com essa decisão, revela o seu lado Roberto Carlos: “daqui pra frente, tudo vai ser diferente…”. Ou seja, a partir de 2025, com o novo presidente e a nova regra, o BC estará à medida do que Haddad pensa da política monetária: linha auxiliar da política fiscal, ambas remando com força rumo ao abismo.

A má notícia para o ministro da Fazenda é que se o mercado começar a desconfiar que um novo Tombini assumiu o comando, a coisa pode realmente ficar feia. O resultado será um maior custo para trazer a inflação para a meta. Aliás, Lula, hoje mesmo, disse que “o Brasil não precisa ter meta de inflação tão rígida”. É a senha. Quem viver, verá.

A política monetária é o coração da política econômica

Estou assistindo a um seminário patrocinado pelo Banco Central, reunindo vários banqueiros e ex-banqueiros centrais do mundo inteiro.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, teve a oportunidade de fazer a abertura. Veio com aquela conversinha mole, de que política monetária e política fiscal devem trabalhar em harmonia, são como que os dois braços da política econômica do governo.

Em seguida, começa o primeiro painel, com a participação, entre outros, do ex-presidente do BC argentino durante o mandato de Maurício Macri, Federico Sturzenegger. Recomendo fortemente que assistam à sua curta apresentação, entre os minutos 0:55 e 1:12 (o link está no final do post). Além de ser muito espirituoso (como, em geral, os argentinos são), Mr. Sturzenegger só trouxe verdades. Inclusive, quando falou do desastre que significou a mudança da meta de inflação, momento em que lamentou que Haddad tivesse já abandonado o evento.

Mas o ponto a que queria chamar a atenção na fala do ex-presidente do BC argentino ocorreu logo no início, em que ele refutou a imagem usada por Haddad. Na verdade, disse o ex-banqueiro central, a política fiscal são os dois braços, enquanto a política monetária é o coração do corpo. Confesso que raras vezes ouvi uma imagem tão perfeita.

Dizer que política monetária e política fiscal são os dois braços de um corpo supõe, de maneira implícita, que há um cérebro que comanda os seus movimentos. Ou seja, os braços se movem voluntariamente, obedecendo a um comando central. No caso do Brasil, este cérebro seria, obviamente, os poderes da República, presidente e congressistas.

Não, esta imagem está irremediavelmente errada. A atuação do Banco Central se aproxima à dinâmica do coração, um órgão que funciona sem que o cérebro interfira (ainda bem!). O coração bate mais forte ou mais fraco a depender da demanda do corpo: se o corpo está em repouso, o coração pode bater mais lentamente, se o corpo está acelerado (se os braços estão se movimentando muito), o coração precisa acelerar seus batimentos para prover o sangue necessário à atividade. Não é o cérebro que, voluntariamente, ordena que o coração faça uma coisa ou outra, mas antes o coração está “programado” para que, de maneira AUTONÔMA, responda aos estímulos do restante do corpo (desculpem-me os médicos se a imagem não é perfeita, só quis dizer que o coração não faz movimentos voluntários).

Assim também com o Banco Central: a política monetária somente reagirá aos estímulos do restante da política econômica, principalmente a política fiscal. Não há nada que o Banco Central possa fazer, a não ser garantir que o restante do corpo funcione bem. E o pressuposto para o bom funcionamento do corpo é uma moeda estável. Então, o BC fará o que for necessário para manter a estabilidade da moeda, respondendo de maneira proporcional aos estímulos que vêm do restante do organismo econômico. Note que o BC, a exemplo do coração, não “decide” voluntaria e discricionariamente qual será o nível da taxa de juros. O BC praticará a taxa de juros NECESSÁRIA para manter o restante do corpo econômico funcionando com uma moeda estável.

Claro que, assim como o coração, o BC tem um limite, a partir do qual já não consegue cumprir a sua missão. Quando isso acontece, a política monetária deixa de ter efeito, e a moeda se desestabiliza, desestabilizando todo o organismo econômico.

Como disse Federico Sturzenegger, às vezes é mais fácil aprender com o que deu errado. E muita coisa deu errado na Argentina. Vai lá, assiste, serão os 17 minutos mais bem empregados do seu dia hoje.

Juros: opção ou consequência?

O Banco Central afirma que a culpa pelos juros altos é do governo. O governo afirma que a culpa pelos juros altos é do Banco Central. Quem tem razão?

Mesmo quem tem conhecimento zero de macroeconomia, poderia responder a essa questão usando apenas a lógica aplicada à observação da realidade. Vejamos.

Digamos, por hipótese, que o BC pudesse colocar a taxa de juros onde quisesse, discricionariamente. Se isso fosse verdade, qual seria exatamente a limitação para praticar taxa zero de juros? Ou, como defende Lara Resende, “taxas de juros abaixo da taxa de crescimento da economia”? Os defensores do MMT são muito modestos em suas ambições. Um BC absolutamente discricionário poderia zerar as taxas de juros, se isso fosse do “interesse nacional”, como afirma o ministro da SECOM. Aliás, quando não seria?

Mas a lógica nos leva mais longe: se, afinal, a taxa zero de juros é a opção óbvia de um BC que trabalha sem restrições, para que mesmo existe um Banco Central? O dinheiro poderia ser gerido diretamente pelo Tesouro Nacional. Um BC sem restrições é, por definição, um BC que não tem razão de existir.

No entanto, sabemos que o BC trabalha sob restrições. Na verdade, uma restrição: a inflação. Inflação é um termo ausente em todo esse debate. Desafio o leitor a encontrar essa palavra nos discursos de Lula, Haddad, Galípolo, e todo o Estado Maior e menor do PT. Quando aparece, é de modo lateral, afirmando que se trata de uma “inflação de oferta”, contra a qual o BC não poderia fazer nada (a inflação seria, então, uma espécie de destino), ou para sugerir uma meta de inflação maior, o que não deixa de ser um reconhecimento inconsciente de que a inflação é, de fato, uma restrição.

Assim, afirmar que o BC poderia praticar taxas de juros menores (quanto menores?) é, na prática, afirmar que o controle da inflação não deveria ser uma restrição a ser respeitada. Mesmo aqueles que, honestamente, reconhecem que o controle da inflação deve ser uma meta do BC, mas acham que o BC deveria dar um peso maior para a atividade econômica (“um pouco mais de inflação para um um pouco mais de crescimento”), na prática estão subordinando a inflação ao objetivo de crescimento. E isso é um problema, porque, a rigor, não há limites para a ambição de crescimento. De quanto deveria ser o crescimento do PIB para que, finalmente, voltássemos a controlar a inflação? 3%? 5%? 10%? Por isso que a missão do BC conta com uma meta de inflação mas não uma meta para o crescimento.

Enfim, o arranjo institucional de um BC independente que tem como meta controlar a inflação só faz sentido se as decisões do BC forem limitadas pela inflação. E se as decisões do BC são limitadas, por definição o BC não pode colocar as taxas de juros onde deseja. Se assim fosse, o BC, a rigor, nem precisaria existir. E, se o BC responde à inflação, essa inflação deve ter sido gerada em outro lugar. Onde?

PS.: o BC pode ser obrigado a aumentar as taxas de juros em resposta a um erro de política monetária anterior, e essa é uma das acusações que se fazem aos BCs do mundo inteiro, por terem demorado a reagir aos gigantescos estímulos fiscais dados durante à pandemia. Mas note que essa crítica é justamente a oposta a que o governo do PT faz ao BC hoje, ou seja, o BC deveria ter sido ainda mais durão antes, para não deixar a inflação chegar aonde chegou. De qualquer forma, esta crítica não nega que a origem da inflação não foi a política monetária (taxa de juros), mas a política fiscal (gastos do governo).

Dá para confiar?

O ministro da Fazenda embala a ideia de “descriminalizar” o não cumprimento da meta fiscal fazendo um paralelo com a atuação do Banco Central: afinal, se o presidente do BC não é punido por não cumprir a meta de inflação de determinado ano, por que o presidente da República deveria sê-ló por não cumprir a meta fiscal?

Este paralelo está errado de duas maneiras.

Em primeiro lugar, o BC não controla a inflação. O BC controla a taxa de juros, que, espera-se, tenha efeito na atividade econômica e, por consequência, afete a inflação em um (in)certo horizonte de tempo. O governo, por sua vez, controla suas despesas, uma das variáveis-chave para o controle do resultado fiscal. A outra variável são as receitas, e é por isso que a LRF determina que o governo deve contingenciar despesas se houver frustração de receitas. Esse mecanismo, como sabemos, foi retirado do PL. Pode-se argumentar que as despesas obrigatórias não estão nas mãos do governo, restando apenas as despesas discricionárias, uma margem de manobra cada vez mais estreita. Justo. Entramos aí no segundo erro dessa comparação.

Ao contrário do BC, que busca cumprir uma meta determinada pelo CMN, o governo determina sua própria meta fiscal. Se há dificuldade para cumprir uma meta de superávit primário por conta das despesas obrigatórias, é preciso explicitar essa dificuldade na LDO, prevendo um déficit fiscal. Antes de continuar, um pouco de história.

Em 2015, o então governo Dilma causou imenso mal estar ao enviar um orçamento para o Congresso prevendo déficit fiscal para o ano seguinte. Era a primeira vez que isso acontecia desde 1998, e o reconhecimento de que a era dos superávits primários havia terminado. Na verdade, já havia terminado em 2014, mas a coisa estava disfarçada pelas “pedaladas fiscais”. O mal estar foi tão forte, que o governo enviou outro orçamento, desta vez prevendo superávit primário. A forma de cumprir esse compromisso, ainda em 2015, foi a aprovação de créditos suplementares por fora do devido processo legal, o que serviu de base, além das pedaladas, para o processo de impeachment.

Aí está o poder da LRF. O que Haddad pretende é estabelecer uma meta de faz-de-conta, não cumpri-la, e a coisa ficar por isso mesmo. Afinal, para quê passar o perrengue de ter que assumir, logo de cara, que a tal “meta de superávit primário” é fake? Põe lá a meta claramente inatingível no Powerpoint, continua gastando como se não houvesse amanhã e, no final do ano, simplesmente faz uma cartinha para o Congresso. E todo ano a mesma coisa. Afinal, o papel aceita tudo.

Afirmei que o BC tem apenas a taxa de juros para controlar a inflação. Na verdade, a taxa de juros é apenas o instrumento. O BC controla a inflação com a sua credibilidade. Os agentes econômicos trabalham com expectativas, e essas expectativas estão ancoradas na ação do BC. Se o BC tem boa reputação, todos sabem que a taxa de juros será, mais cedo ou mais tarde, colocada em um patamar que controle a inflação. Para que uma meta fiscal funcionasse “sem punição” seria necessário ter uma autoridade fiscal independente do governo, com poder de controlar o orçamento. Na falta dessa autoridade, ficamos reféns da credibilidade do próprio governo. Dá para confiar?

O gambito do Copom

Em sua primeira reunião do ano, em 01/02, o Copom fez aquilo que todo BC sério faria se estivesse na mesma situação: manteve a polítia monetária apertada porque as expectativas de inflação estão muito longe da meta. Seguiu-se um barulho ensurdecedor do presidente e de toda a claque que o segue. Haddad fez biquinho, afirmando que o BC havia ignorado o “grande pacote fiscal” anunciado duas semanas antes com pompa e circunstância.

Roberto Campos Neto, apesar de ser um voto em nove no Comitê, assumiu a tarefa institucional de aparar arestas. Em primeiro lugar, fez introduzir uma frase na ata do Comitê, publicada uma semana depois, em que faz menção ao “grande pacote fiscal” de Haddad. Em seguida, fez uma jogada de risco, e decidiu se expor em um programa como o Roda Viva. Na minha visão, saiu-se bem na transmissão de uma mensagem de paz institucional. Alguns, inclusive, apostaram que o Copom, dali em diante, seria um pouco mais “amigável” às demandas do governo.

De nada adiantaram esses movimentos. O Copom e seu presidente não mereceram o benefício da dúvida por parte de Lula e de seu governo. A pressão acalmou durante alguns dias, para voltar com força em seguida, e tornar-se insuportável às vésperas da reunião, com direito a seminário do BNDES com a presença de prêmio Nobel e tudo o mais.

O Copom encontrava-se em uma encruzilhada: ou bem cumpria o seu papel institucional de ponderar o melhor nível para a taxa de juros consideranto a meta que lhe foi dada pelo CMN, ou cedia às pressões. O comunicado de hoje não deixa margem a qualquer dúvida: o Comitê decidiu seguir pelo primeiro caminho, fazendo valer a sua independência. A manutenção da frase “[o Comitê] não hesitará em retomar o ciclo de ajuste caso o processo de desinflação não transcorra como esperado” tem a força de um grito de guerra. Imagine o que aconteceria se o BC, não satisfeito em manter a taxa no atual patamar, a tivesse elevado…

Com o BC pintado para a guerra, resta ao governo quatro alternativas:

1) Procurar, de alguma forma, destituir cinco diretores do BC agora (em um colegiado de nove). Note que não basta remover Campos Neto. Ele é apenas um voto no Copom, e as decisões têm sido unânimes. A única vez em que não houve unanimidade com essa diretoria foi em setembro, quando o Comitê decidiu manter a taxa em 13,75%, encerrando o ciclo de alta. Na ocasião, houve dois votos por um aumento adicional de 0,25%… Ou seja, RCN é o menor dos problemas do governo.

2) Mudar a meta para a inflação de 2024 em diante. Com isso, teoricamente, o Copom teria espaço para reduzir a taxa de juros. O problema com esse movimento é que a formação das expectativas já considera a meta. Quando o Focus indica uma inflação de 4,1% para 2024, não significa que os economistas que respondem à pesquisa disponham de uma bola de cristal e calculem, com tanta antecedência, qual será a inflação do ano que vem. Lembre-se, estamos somente em março, 2024 está muito distante. O que os economistas fazem? Partindo da meta (que é 3%), avaliam que, com uma certa taxa Selic, a inflação ficará acima da meta em 1,1%. Se a meta for elevada para, por exemplo, 4%, e tudo o mais ficar constante, é só questão de tempo para que as expectativas migrem para 5,1% em 2024 (1,1% acima da nova meta). O problema não é o nível da meta, mas a capacidade/credibilidade do Banco Central de trazer a inflação para a meta, qualquer que ela seja. Esse é o princípio fundamental do sistema de metas de inflação, que trabalha, basicamente, com expectativas. Mudar a meta só bagunça o coreto, sem realmente dar maior espaço para cortes de juros. Aliás, pelo contrário, aumenta a incerteza, que é inimiga do juros baixos.

3) Continuar esperneando, com o objetivo de ter um bode expiatório para o crescimento pífio da economia.

4) Fazer um ajuste fiscal de verdade, que faça com que os agentes econômicos retomem a confiança no governo, permita a reancoragem das expectativas de inflação e, por fim, abra espaço para o início de um ciclo de cortes bastante expressivo da taxa Selic, como tivemos a partir de 2017.

O Copom fez o seu gambito. Vejamos o próximo movimento do governo.

O astrólogo da economia

André Lara Resende tem o péssimo hábito de pegar uma informação isolada para chegar às conclusões que lhe interessam. Foi assim em seu artigo passado, em que pegou o superávit primário do ano passado para afirmar, sem corar, que a situação fiscal do Brasil está ok. Claro, sem combinar com o ministro da Fazenda, que afirma que recebeu uma herança maldita.

Em artigo publicado ontem no Valor (íntegra no final do post), Lara Resende repete a estratégia. Para afirmar que é o BC que determina a curva de juros, usa um gráfico de um relatório publicado pelo Tesouro Nacional, que mostra o custo de emissão de dívida do Tesouro comparado com a taxa Selic (usaremos este mesmo relatório para desmentir o economista). Quando a taxa Selic cai, o custo de emissão da dívida cai. Quando a Selic sobe, o custo de emissão da dívida sobe. Portanto, é o BC que determina o nível geral das taxas de juros no Brasil, e não somente a taxa Selic. Para chegar a essa conclusão (que, aliás, valeria para qualquer BC do mundo), Lara Resende não lança mão de qualquer instrumento econométrico, como um teste de causalidade de Granger. Segundo o economista, dá para ver a causalidade “a olho nu”. Lara Resende despreza instrumentos matemáticos no trato da ciência econômica, como faz questão de deixar claro em seu texto.

Mas vamos deixar de lado as picuinhas, e vamos nos concentrar no conceito. Como tudo em economia, nada é preto no branco. Banco Central e mercado estão em uma eterna dança, em que um influencia o outro. A curva de juros é fruto das forças de mercado. Mas é claro que os agentes olham para o Banco Central para tomarem as suas decisões sobre as taxas de juros futuras. Como trabalham com distribuições de probabilidades e não com certezas, os agentes ponderam os movimentos do BC (presentes e futuros) com possíveis cenários econômicos derivados desses movimentos do BC. Assim, formam suas convicções e definem as taxas de juros de prazos mais longos. Lara Resende, ao afirmar que os ortodoxos afirmam que a curva de juros não é influenciada pelo BC, está criando um espantalho para desmenti-lo. A tática é velha.

Aliás, o custo da dívida nem é o melhor instrumento para chegar à conclusão que Lara Resende chegou. Como a nossa dívida é formada por uma parcela relevante de títulos atrelados à Selic (cerca de 40% – tabela 2.3 do relatório), é claro que, quando a Selic cai, o custo de emissão da dívida também cai. Além disso, a parcela prefixada tem, em geral, vencimentos curtos (tabela 3.4). E, quanto mais curto for um título prefixado, mais próxima estará a sua taxa da provável trajetória da taxa Selic no curto prazo. Se a taxa Selic estiver caindo, a taxa prefixada de curto prazo será menor, e vice-versa.

Lara Resende se aproveita dessa característica para mostrar meia-verdade. No gráfico 4.3 logo em seguida ao gráfico usado pelo economista, temos a evolução das taxas das NTN-Fs, que são os títulos prefixados mais longos. Podemos observar que sua evolução segue bem menos a taxa Selic do que o custo total da dívida, que tem influência das LFTs e das LTNs (prefixados mais curtos).

Mas o ponto fundamental da discussão é por que Lara Resende fez questão de estressar este ponto. Ora, simples: a sugestão é de que o BC pode, com tranquilidade, reduzir as taxas de juros quanto queira, porque a curva de juros acompanhará a queda, tornando o carregamento da dívida muito mais barato. Para que isso seja crível, no entanto, o economista precisa desvincular o nível de taxa de juros do controle da inflação. E é isso que faz nesse artigo, ao afirmar que não há evidências de que o nível de juros controla a inflação, desmontando, em poucas linhas, todo o arcabouço monetário construído nas últimas três décadas, e que é usado pelos principais bancos centrais do mundo. Claro que Lara Resende não sugere nada para o lugar do sistema de metas de inflação. A inflação seria controlada de algum modo misterioso, que o economista não divide com seus leitores.

Com o BC controlando direta ou indiretamente toda a curva de juros da economia, e com a inflação sendo controlada pelo divino Espírito Santo, nada impediria o BC de reduzir a taxa básica de juros quanto quisesse, diminuindo em muito as despesas com juros, e fomentando o crescimento econômico. Resta saber por que o BC do Alexandre Tombini, que tentou um movimento de redução artificial dos juros durante o governo Dilma, não perseverou no seu intento, voltando a elevar a taxa Selic até 14,25% (!)

É claro que a taxa Selic está muito alta, e isso causa não poucos problemas à economia. A discussão é como o BC pode baixar essa taxa de juros sem perder o controle da inflação. Este é um debate legítimo, em que vários economistas têm visões diversas. No entanto, Lara Resende, por tudo o que já escreveu, não é um debatedor legítimo nessa discussão. Ao afirmar que o BC pode, sem custos, determinar a taxa de juros no patamar que quiser, se desqualifica para o debate. Quando se discute astronomia, não há lugar para astrólogos.


A inflação do chuchu

Haddad afirma que os juros estão em um nível “fora de propósito”.

Lara Resende diz que os juros estão “errados”.

Como nenhum dos dois se dispôs a dizer quais seriam os juros “certos” ou “razoáveis”, nem compartilharam o seu modelo de determinação dos juros, a coisa soa mais a achismo. E achismo por achismo, também tenho meu palpite.

Também acho que os juros estão errados. A julgar pelos resultados dos últimos dois anos e pelo que se encaminha nesse ano de 2023, os juros deveriam ser ainda mais altos. Se o BC se encaminha para o terceiro ano de não cumprimento de meta, é porque praticou juros abaixo do que deveria. No sistema de metas de inflação, é a inflação que determina se os juros estão “certos” ou “errados”. O resto é só achismo de botequim.

Há uma concordância implícita com essa premissa quando se discute a meta de inflação. Mexer na meta só faz sentido se se acredita que o nível das taxas de juros é função da meta. Ou, mais tecnicamente, do desvio da inflação em relação à meta. Sintomaticamente, Lara Resende pouco menciona a meta em suas entrevistas e artigos. Prefere fazer uma espécie de “taxonomia da inflação”: tratar-se-ia de “inflação de oferta”, não “de demanda” e, portanto, infensa à taxa de juros. Assim, segundo o economista, o BC deveria, neste caso, assistir ao processo inflacionário passivamente, pois não haveria nada a fazer. Nos lembra os bons tempos de Mário Henrique Simonsen e sua “inflação do chuchu”, época em que o governo combatia a inflação “de oferta” na base de controle de preços da Sunab.

Voltando à racionalidade do sistema de metas (sistema este, bom lembrar, que manteve a inflação baixa em boa parte dos últimos mais de 20 anos), um aumento da meta poderia até levar a um alívio da política monetária, mas só na primeira rodada do jogo. O diabo é que trata-se de um jogo com infinitas rodadas. Já na segunda, voltaríamos exatamente ao mesmo problema, só que com uma inflação mais alta. Explicando: o que determina a taxa de juros real neutra da economia é a própria economia, não o Banco Central. Assim, se a inflação está acima da meta (qualquer que ela seja), o BC precisa praticar taxas de juros reais acima da taxa neutra – assim funciona o sistema de metas. Com a meta mudada para cima, a taxa de juros nominal também precisa subir. Se, em um primeiro momento, o aumento da meta faz com que as expectativas fiquem abaixo da nova meta, em um segundo momento todas as expectativas migram para a nova meta, e as velhas mazelas brasileiras voltam a empurrar as expectativas para cima da meta. Voltamos ao ponto inicial do jogo, mas com uma inflação mais alta.

O raciocínio acima é complexo, e é difícil de explicar em uma mesa de bar. Mais fácil colocar a culpa da inflação no chuchu da vez.

Torneira de asneiras

“Então ele quer chegar à inflação padrão europeu, e não, nós temos que chegar à inflação padrão Brasil. Uma inflação de 4,5% no Brasil, de 4%, é de bom tamanho se a economia crescer. Você, com 4% de inflação, com 4,5, com a economia crescendo, é uma coisa extraordinária”.

Esse é um pequeno trecho da verdadeira torneira de asneiras que o presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, resolveu abrir em uma entrevista ao repórter do Pravda, quer dizer, da Rede TV, Kennedy Alencar. Vejamos se Lula tem razão em dizer que 3% é inflação “nível europeu”.

Na tabela abaixo, temos um levantamento das metas de inflação nos vários países do mundo que adotam essa sistemática. O levantemento é de 2021, por isso mostra o Brasil com meta de 3,75%.

No nível dos 3% de inflação temos: Albânia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Georgia, Hungria, Indonésia, México, Filipinas e Sérvia. Destes, apenas Albânia, Hungria e Sérvia são europeus. E, sem demérito, 3a divisão da Europa.

Já os países que adotam meta de 4,5% para cima temos: África do Sul, Belarus, Jamaica, Casaquistão, Malawi, Moldávia, Sri Lanka, Tanzânia, Turquia, Uganda, Ucrânia, Uruguai, Bangladesh, Kirguistão, Tadjiquistão, Zâmbia, Gana e Uzbequistão.

Daí, você pergunta: o Brasil quer pertencer ao primeiro ou ao segundo clube? Lula acha que não temos pedigree para pertencer ao clube de Chile, Colômbia e México. Nosso clube é dos vira-latas mesmo.

Em outro trecho da entrevista, Lula afirma que “seu” presidente do BC, Henrique Meirelles, teve total autonomia durante a sua gestão, mas que eles “conversavam”. Meirelles deveria vir a público para esclarecer que tipo de “conversa” o presidente “autônomo” do BC e o presidente da República tinham.

Enfim, o Lula do 1o mandato, aquele que enganou boa parte da Faria Lima, só existiu porque o então ministro da Fazenda, Antônio Palocci, entendia como a economia funcionava. Fernando Haddad, com todo o seu discurso preparado e fino, pensa exatamente como o seu chefe, que só é mais bocudo que o seu ministro. Não tem o mínimo risco de dar certo.

Emagreça dormindo

Não é a primeira vez que leio um artigo comparando um possível novo arcabouço fiscal com o regime de metas de inflação. Felipe Salto volta ao tema, propondo um regime de “metas de dívida pública”, a exemplo do exitoso regime de controle da inflação.

Só tem um pequeno problema nessa comparação: o BC é independente, e coloca a taxa de juros onde acha necessário para levar a inflação de volta à meta. Salto não menciona a necessidade dessa agência independente, guardiã do valor da moeda. Quem será a autoridade que implementará os ajustes necessários para garantir a convergência da dívida pública para a meta? O próprio governo? O Congresso, muitas vezes sócio do Executivo na gastança? Será o lobo tomando conta do galinheiro?

Salto, assim como outros que defendem a ideia, quer um arcabouço suficientemente flexível para suportar choques, mas que conte com regras que conquistem a credibilidade do mercado. O sistema de metas de inflação não é isso. Nesse sistema, a credibilidade emana do Banco Central, não de regras. O BC não segue regras pré estabelecidas para determinar as taxas de juros. O BC avalia a situação a cada momento e determina o nível de juros que acha mais adequado. E, o mais importante, conta com credibilidade junto aos agentes econômicos, que acreditam que a autoridade monetária fará, a cada momento, hoje e no futuro, o necessário para trazer a inflação para a meta.

Na falta dessa autoridade crível, um sistema de “metas de dívida pública” precisaria contar com regras. E regras, por definição, devem ser não discricionárias para funcionar, ou seja, devem ser cumpridas independentemente da vontade de quem as implementa. E, por definição, e esse é o ponto importante, regras são regras. Regras “flexíveis” são flexíveis somente até um determinado ponto. Caso contrário, deixam de ser regras. Uma barra flexível para exercícios físicos tem a capacidade para se sobrar, mas só até certo ponto. Quando chega neste ponto, a barra (a regra) se torna rígida, e voltamos ao ponto inicial, em que o governo se vê às voltas com uma regra que não consegue cumprir. É só uma questão de tempo.

O que Felipe Salto e outros que escrevem na mesma linha querem é uma especie de dieta sem esforço. “Emagreça dormindo” é o nosso sonho de consumo. A comparação com o sistema de metas de inflação serve só para tomar emprestado verossimilhança de algo que funciona, sem que haja a mínima condição para implementar algo semelhante.