Em março, quando Fernando Haddad anunciou o “novo arcabouço fiscal”, todo mundo olhou para aquelas metas de resultado primário e disse: sério? Era claro que a meta de déficit zero em 2024 era inalcançável, a menos que houvesse um aumento brutal da carga tributária, algo próximo de 1,5% do PIB. Desde então, o que vimos foi o ministro da Fazenda correndo atrás de receitas, com resultados pífios.
No entanto, desde março, enquanto o mercado financeiro externo permitiu, o nosso mercado melhorou muito: as taxas de juros longas caíram, o real se valorizou e a bolsa subiu. Além disso, o presidente do BC, Roberto Campos, tem mencionado a questão fiscal nos comunicados do Copom de maneira muito mais suave. No primeiro Copom do ano, Campos coloca a questão fiscal entre os fatores de risco para a inflação: “a ainda elevada incerteza sobre o futuro do arcabouço fiscal do país”. Já no último Copom, a questão fiscal não aparece mais entre os fatores de risco, e a menção se dá em relação às metas fiscais: “Tendo em conta a importância da execução das metas fiscais já estabelecidas para a ancoragem das expectativas de inflação e, consequentemente, para a condução da política monetária, o Comitê reforça a importância da firme persecução dessas metas”. Voltaremos à importância dessa “persecução” adiante.
Por que um arcabouço frouxo e metas fiscais não críveis (para não dizer incríveis) tiveram o condão de fazer o mercado melhorar e o Copom tirar o risco fiscal de seu balanço de riscos? A resposta é simples: ancoragem de expectativas.
Em primeiro lugar, o “novo” arcabouço é um teto de gastos aguado. É um teto, mas chama diferente. A regra do antigo teto permitia crescimento real zero de despesas. No “novo” arcabouço, as despesas podem crescer acima da inflação, a depender do crescimento de receitas. Mas, ainda assim, há um teto, ainda que mais frouxo.
Com esse teto, digamos, retrátil, estava garantido que a dívida pública não entraria em uma trajetória explosiva. No entanto, temos uma dívida muita alta para o nosso nível de taxa de juros, e era preciso sinalizar que a dívida não só não era explosiva, mas que entraria em uma trajetória firme de redução. É nesse ponto que entra a meta de superávit primário. Com essa meta, Haddad estava sinalizando para o mercado o desejo do governo de reduzir a dívida pública. Para tanto, haveria uma combinação de controle frouxo de despesas com aumento da arrecadação, e a “persecução” da meta de superávit (no dizer do Copom) seria uma forma de medir o real desejo do governo de reduzir a dívida pública ao longo do tempo.
Mas note uma coisa: ao passo que a regra de crescimento de despesas está agora inscrita na Constituição, a regra de resultado primário não é, a rigor, sequer uma regra. O resultado primário está implícito na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), que é o orçamento do governo aprovado pelo Congresso. Qualquer dificuldade para cumprir a meta de resultado primário pode ser facilmente acomodada através de emendas à LDO.
Bem, se a regra de gastos é frouxa, se o aumento da arrecadação é incerto e se a meta de resultado primário pode ser facilmente mudada, então porque raios o mercado comprou a ideia do déficit zero para 2024??? Na verdade, não comprou. O relatório Focus indica um déficit primário de 0,8% do PIB para o ano que vem.
Sim, eu sei que agora você deve estar bem confuso. Afinal, se o mercado não acredita no Haddad e prevê um déficit de 0,8% do PIB para o ano que vem, então porque esse bafafá todo em torno da fala do Lula? O presidente não estaria somente externando algo que o mercado já espera? É aqui que entra o papel das expectativas.
Por mais que a meta seja difícil de alcançar, ela funciona como uma âncora para as expectativas. O mesmo acontece com a meta de inflação: o BC não cumpriu a meta nos últimos dois anos, mas nem por isso o mercado achou que a autoridade monetária havia desistido da meta. Sua comunicação e seus atos sempre foram na direção de garantir que os agentes de mercado permanecessem na crença de que a meta estava sendo perseguida.
Mentiras sinceras (no dizer do poeta) interessam ao mercado, e é isso que Roberto Campos deve ter dito a Fernando Haddad. É preciso manter a promessa, mesmo que todos saibam que será muito difícil cumpri-la. Claro que promessas não seguidas de atos acabam por perder a credibilidade. E era exatamente isso o que o mercado estava esperando para o ano que vem. Na medida em que fosse ficando claro que a meta não seria cumprida, Haddad até poderia mudá-la ao longo do ano que vem, mas sempre mantendo o discurso de “persecução” da meta ao longo do tempo, acompanhado, por exemplo, com um contingenciamento de despesas, para manter a credibilidade da promessa.
O pecado de Lula está em que ele já avisou que não vai cortar nada, e que a promessa é da boca para fora. Desnudou-se a mentira, que de sincera passou a ser escancarada. O resultado disso serão taxas de juros mais altas ao longo do tempo. E se a nova composição do BC for leniente, mais inflação.