Uma extensa reportagem de hoje no Estadão descreve os últimos avanços do combate ao crime na China, o que inclui, obviamente, desafiar o regime. A ideia é tentar antecipar o crime através do monitoramento de potenciais transgressores, identificados por meio da análise extensiva de dados e uso de inteligência artificial em sua interpretação.
Esse método de combate ao crime remete ao icônico filme Minority Report, um dos melhores de Tom Cruise. Neste filme, uma empresa assume com sucesso o policiamento do país, ao utilizar uma tecnologia que consegue “prever” os crimes antes de acontecerem. Na verdade, a tecnologia se resume aos “Cogs”, mutantes que conseguem ver o futuro.
A discussão ética se dá em torno da ideia de se punir um crime antes que aconteça. De maneira estrita, o crime não ocorreu, portanto não há criminoso. Mas a tecnologia previu o crime, portanto há um criminoso em potencial, que pode ser punido e posto fora de circulação. Ético ou não, o procedimento faz despencar o número de crimes no país. (Fiquem tranquilos os que não assistiram ao filme e gostariam de assistir, a trama é muito mais do que isso, não há spoiler aqui).
A inteligência artificial está fazendo, e fará cada vez mais, o papel dos “Cogs”. Na China isso já é uma realidade, e a discussão ética está posta. No último tiroteio com vítimas nos Estados Unidos, em um desfile de 4 de julho em Chicago, ao que parece o assassino deixou pistas em suas redes sociais, o que normalmente acontece. É tentador pensar que, com base nessas pistas, a polícia poderia prendê-lo antecipadamente, poupando sete vidas. O problema é que uma prisão antecipada colide frontalmente com princípios básicos da civilização ocidental e do Estado de Direito, como a presunção de inocência e a liberdade de expressão. Poder-se-ia pensar em um monitoramento mais próximo de pessoas que poderiam ser assassinos potenciais. No entanto, na prática, isso custaria muito caro. Imagine monitorar, seguir e neutralizar todo maluco que fala groselha na internet. Haja recursos policiais!
Nicholas Taleb, em seu clássico livro Black Swan, analisa fenômenos que ele chama de “cisnes negros”, ou seja, de baixíssima probabilidade de ocorrência mas que causam um estrago gigantesco. Um dos exemplos é o 11/09, em que a segurança dos aeroportos não foi suficiente para evitar o atentado das torres gêmeas. A questão colocada é justamente qual o custo de se ter evitado o 11/09 ANTES de ele ter ocorrido. Quem seria o político que bancaria o atual esquema paranoico de segurança nos aeroportos antes desse atentado? Sem que o atentado tivesse ocorrido, não haveria apoio da sociedade para a verdadeira tortura que se tornou viajar de avião nos EUA. Talvez ainda estejamos para ver um evento de proporções cósmicas que convença os americanos a deixarem-se monitorar e aceitarem a prisão de suspeitos pelo que falam em redes sociais.
O governo chinês, como sabemos, não tem esse tipo de pudores, e monitora seus cidadãos usando os seus “Cogs”. Lá, o trade off entre segurança e privacidade foi resolvido. No ocidente, a discussão continua.