Sacrifício tem limite

Moisés Naim, colunista do Estadão, sugere que o modelo de união entre os governos ocidentais seja também usado para ações de combate às mudanças climáticas. Afinal, segundo o colunista, o mundo está provando que é possível reagir a uma ameaça comum com união e assertividade.

Bem, é realmente difícil entender de onde o escriba tirou o paralelo entre as duas situações. Na superfície há alguma semelhança. Mas basta um pouco de análise para verificar que as situações são completamente diferentes, quando não opostas. Vejamos.

Grosso modo, ações de combate às mudanças climáticas significam colocar algum preço na emissão de carbono, o que, por sua vez, significa aumentar o preço da energia com origem em combustíveis fósseis de maneira permanente. Ou, até que novas tecnologias possam baratear novamente o preço da energia, o que pode levar décadas. Nesse sentido, as sanções econômicas contra a Rússia tiveram o mesmo efeito: aumento do preço do petróleo. Mas as semelhanças param por aí.

A primeira grande diferença é o período de tempo do sacrifício exigido. Os sacrifícios impostos por uma guerra são tanto mais toleráveis quanto mais fica claro que são transitórios. Em algum momento a guerra vai terminar, e vai se voltar ao status anterior. Nas mudanças climáticas não há esse horizonte. A energia ficará cara “para sempre”, porque é difícil estabelecer prazos para mudanças tecnológicas. Claro, os governos poderiam vender a ideia de uma guerra longa mas que terá um fim. As pessoas aguentariam as privações, se vissem sentido naquilo. Mas aí é que entra a segunda e principal diferença.

Para que as pessoas aceitem fazer sacrifícios são necessários símbolos fortes. No caso, a Rússia, liderada por uma figura que nos acostumamos a ver associada nos filmes ao inimigo, atacando famílias indefesas que poderiam ser nossas vizinhas de bairro, é um símbolo muito poderoso.

Por outro lado, o que acontece com as mudanças climáticas? Em um passado muito remoto, enchentes, furacões, incêndios, secas eram vistos como uma punição dos deuses pelos pecados dos homens. Na medida em que a humanidade foi dominando a ciência, aprendemos que esses fenômenos têm uma explicação natural. Agora, essa mesma ciência quer voltar a nos convencer de que esses fenômenos são devidos a nossos pecados, principalmente o hedonismo de querermos ar-condicionado no verão e calefação no inverno. Isso está longe, muito longe, de servir como símbolo. Estamos acostumados a ver secas e dilúvios desde que nascemos e a encarar isso como fenômenos naturais. Convencer as pessoas de que se trata de uma punição de Gaia vai ser difícil.

Assim, os governos precisariam convencer os eleitores de que nós somos os culpados pelas desgraças que estão caindo sobre nossas cabeças e, se não fizermos nada, o Armagedom nos aguarda (notem que até a narrativa do Juízo Final foi apropriada pelo discurso das mudanças climáticas). E, depois desse convencimento, precisariam prometer que a guerra terá um fim, que as privações serão temporárias, até que nossos bravos cientistas encontrem formas de produzir energia barata e confiável, que não signifique inundar terra de índios (o povo eleito de Gaia) ou produzir detritos nucleares tóxicos. Haja simbologia!

Não é à toa que os governos em todo o mundo estão tentando desesperadamente encontrar soluções para os preços altos dos combustíveis fósseis. Eles sabem que os seus eleitores não têm muita paciência para energia cara. Até topam um sacrifício rápido, se for para enfrentar o inimigo número 1 da humanidade, Putin. Mas a coisa muda completamente de figura quando se trata de combater as mudanças climáticas porque, neste caso, o inimigo somos nós mesmos.