Hoje faz exatamente um mês desse anúncio de página inteira, publicado nos principais jornais do Brasil. É da lavra do CEO da Multiplan, defendendo, com palavras menos toscas, que a Covid-19 não passava de uma “gripezinha”, e que tínhamos de voltar a trabalhar.
Cheguei a comentar na época que a comparação com outras doenças era descabida, pois feita em bases de tempo diferentes: comparava-se os mortos pela Covid-19 em pouco mais de um mês com as mortes em um ano inteiro por outras doenças. Na época, fiz uma conta simplória: se o número de óbitos pela Covid-19 crescesse no mesmo ritmo da semana anterior, teríamos 54 mil óbitos em um ano. Bem, um mês depois, temos mais de 20 mil, and counting.
Reproduzi o mesmo gráfico do anúncio, mas na mesma base de tempo: o período de 23/04 a 22/05, um mês depois dos dados apresentados no anúncio. Se as outras causas de morte permaneceram mais ou menos nos mesmos patamares de 2018 (ano desses dados), a Covid-19 deve ter sido a terceira causa de morte no Brasil nos últimos 30 dias, colada no câncer. Outra forma de ver: a Covid-19 deve ter sido responsável por cerca de 16% das mortes do Brasil no período.
Não custa lembrar que na semana anterior a esse período de 30 dias, a média de crescimento diário de óbitos era de 164/dia (média de 7 dias), enquanto hoje é de 890/dia, na mesma média. A Covid-19 caminha rapidamente para se tornar a principal causa-mortis do país.
Lição: nunca subestime o crescimento exponencial de uma doença altamente contagiosa que não tem vacina nem remédio.
Hoje, o CEO da Multiplan (empresa de shopping centers) publicou anúncio de página inteira, pedindo pela reabertura do comércio. Para tanto, procura minimizar o número de mortes causadas pela Covid-19, comparando-o com o número de mortes por outras doenças. Trata-se de um número muito pequeno, não justificando, portanto, o fechamento da economia. Estará ele certo?
Desde que o número de óbitos registrados por COVID-19 acelerou para mais de 100/dia, no dia 07/04, foram um total de 2.342 óbitos contabilizados (até ontem, 22/04). Ou, 146 óbitos/dia, na média do período. Por que peguei este período? Porque este tem sido o ritmo de óbitos desde então. Por exemplo, nos últimos 3 dias, foram 148 óbitos/dia. Então, não tem acelerado, pelo menos por enquanto.
Este número é muito? É pouco? Com o que deveríamos comparar? Para verificar, vamos pegar a mesma base usada pelo CEO da Multiplan, o Datasus.
Segundo os números do Datasus, em 2018 morreram 1.316.719 pessoas pelos mais diversos motivos, ou 3.607 pessoas/dia. A campeã das causas são as diversas doenças do aparelho circulatório, com 27,2% do total, seguido de câncer (17,3%), doenças do aparelho respiratório (11,8%) e causas externas, como violência, acidentes de trânsito etc. (11,5%).Dos óbitos decorrentes de doenças do aparelho respiratório, 51% foi devido a pneumonia, o que representou 79.281 óbitos em 2018. Quando observamos este número, nos parece algo muito maior do que o Covid-19, que matou, até o dia 22/04, “apenas” 2.906 pessoas no país. Por que então se faz tanto barulho em torno do Covid-19, enquanto para combater a pneumonia, que é algo parecido, não se cogita fechar o país? Esta é a pergunta feita no anúncio.
Em primeiro lugar, não vamos nos deixar enganar pelos números. Sabe aquela propaganda “você pode comprar este carro pelo equivalente a um cafezinho por dia?”, tanto ao gosto de comerciantes como o dono do shopping? Aqui é a mesma coisa, estamos comparando períodos diferentes. 79.281 óbitos/ano significa, na média, 217 óbitos/dia por pneumonia. Comparando o número de mortes por Covid-19, estas já alcançaram 68% do número de mortes por pneumonia em 2018, ajustado pelo período. Isto porque estamos em regime de distanciamento social há um mês, não sabemos o número se não houvesse esse regime.
Em segundo lugar, a pneumonia é CAUSADA pela Covid-19, mas não se confunde com ela. A pneumonia é uma doença do sistema respiratório que pode ter várias causas (na maioria das vezes, bacteriana), a enorme maioria não contagiosa. Quando um parente morre de pneumonia, pode ter velório e enterro com a família. Portanto, não se resolve pneumonia com distanciamento social. Além disso, o número de óbitos pela doença é mais ou menos constante, tendo girado entre 70 e 80 mil nos últimos anos, segundo o mesmo Datasus. Ou seja, o sistema de saúde, mal ou bem, está dimensionado para tratar esses casos.
Doenças altamente contagiosas têm outra dinâmica. Há surtos, que podem pressionar o sistema hospitalar. O mais comum é a gripe. O mesmo Datasus nos diz quantas pessoas morreram de influenza ao longo dos últimos anos. O pior ano foi 2009, com o surto de H1N1: 1.818 pessoas morreram naquele ano. Ou seja, já morreram mais pessoas por Covid-19 em um mês do que de influenza em um ano, no pior ano da doença no Brasil.
Visto de outra maneira: seguindo nesse ritmo (não precisa acelerar o número de óbitos), o Covid-19 vai matar 54 mil brasileiros em um ano. Isso é o dobro dos que morrem de câncer de pulmão, um pouco menos dos que morrem de diabetes, ou o equivalente ao número dos que morrem assassinados no país todo ano.
– Ah, mas não vai continuar, o surto uma hora vai acabar, esses 54.000 estão exagerados.
Por obra e graça do que vai terminar? O Covid-19 não tem vacina, não tem remédio, a taxa de mortalidade é algo entre 0,5% e 1,0% dos contaminados, por que morreriam menos de 54 mil em um ano? Por imunidade de rebanho é que não vai ser. A conta é simples: se morrerem 54 mil em um ano, isso significa, para uma taxa de mortalidade de 0,5%, 10,8 milhões de infectados, ou 5% da população brasileira. Longe, portanto, da imunidade de rebanho. Sem isolamento social (ou uma vacina), esse número é daí para cima, não daí para baixo.
Outro número mostrado pelo CEO tem o seu valor. Sem dúvida, nosso número per capita de óbitos tem sido várias vezes menor que nos países da Europa e nos EUA. Pode haver várias explicações: subnotificação, clima, vacinação BCG, raios UV, número maior de leitos de UTI, medidas de isolamento social precoces etc, etc, etc. Este número é importante, e isso sim pode servir de base para um relaxamento da política de distanciamento social, uma vez garantido o atendimento na rede hospitalar. Mas, obviamente, trata-se de um retrato da situação atual, não necessariamente o que vai acontecer no futuro se a política mudar. Por isso, tudo precisa ser feito com cautela, de modo planejado, e sempre com o preparo necessário para lidar com um eventual aumento excessivo do número de casos.
Não há dúvida de que o custo econômico do distanciamento social tem sido altíssimo, e é perfeitamente legítimo questionar se está valendo a pena. Mas precisamos de dados honestos para julgar. Fazer comparações descabidas não ajuda para a avaliação do problema.