Ficção sociológica

Acabei ontem de assistir à primeira temporada da boa série Marte, no Netflix. Trata-se de um “docudrama”, em que duas histórias paralelas convivem ao longo de toda a trama: em 2016, um documentário sobre a Space X, a empresa de Elon Musk que pretende colonizar Marte; e em 2036, quando a primeira missão a Marte é lançada. O melhor da série é justamente esse entrelaçamento entre os desafios de uma missão desse tipo levantados durante o documentário, e esses mesmos desafios sendo vencidos (ou não) durante a teórica missão.

Mas não é sobre ficção científica que quero falar aqui. Meu assunto é outra ficção: o papel protagonista das mulheres nesta série, assim como em Away, outra série da Netflix sobre uma missão a Marte.

Aliás, o paralelo entre as duas séries é interessante: em ambas, uma mulher assume o comando da missão que, originalmente, seria de um homem. Em Away, é a esposa do astronauta (ela também uma astronauta) que não pode assumir a missão por conta de uma doença. Em Marte, é a vice-líder da missão, que assume após a morte do líder. Nos dois casos, a mulher chegou lá, digamos, por acidente. Mas o fato é que a ambas cabe o protagonismo.

Na série Marte, uma segunda missão chega ao planeta vermelho, também liderada por uma mulher. Neste caso, a comandante é acompanhada por seu marido, um botânico com um perfil bem delicado e dependente. Uma inversão dos papeis estereotipados a que estamos acostumados.

Mas o que verdadeiramente me chamou a atenção é a cena final do 6o e último episódio da 1a temporada de Marte: são essas duas líderes, a que se junta uma terceira mulher, cientista, que fazem a descoberta que muda o rumo da missão. Além disso, uma quarta mulher é a líder do comitê de países que supervisiona a missão. O episódio termina com 4 mulheres protagonistas. Nenhum homem.

Chamamos de ficção científica uma projeção do futuro com base em tecnologias ainda inexistentes. Contamos histórias do porvir, que um dia existirão. Ou não. Júlio Verne foi o mestre da ficção científica, antecipando muitos dos artefatos que hoje fazem parte do nosso dia a dia. Marte e Away são ficção científica, mas poderão vir, um dia, a se tornar realidade.

Mas Marte e Away são também ficção em outro sentido. Ao dar protagonismo às mulheres, essas duas séries fazem o que vou chamar aqui de “ficção sociológica”. Por que o protagonismo das mulheres é uma ficção sociológica? Simplesmente porque não existe hoje, mas pode existir no futuro. Ou não.

Nesta semana, foram anunciados os Prêmios Nobel de Física, Química e Medicina, os chamados prêmios científicos. Na história desses prêmios desde 1901, um total de 624 cientistas foram laureados. Destes, apenas 23 foram mulheres, ou 3,7% do total. Mas podemos ver algum avanço ao longo do tempo. Se separarmos por décadas, temos a estatística mostrada no gráfico abaixo.

Podemos observar que as últimas duas décadas foram pródigas na indicação de mulheres por parte do comitê do Nobel. Mas esse é o copo meio cheio. O copo meio vazio é que, mesmo assim, temos menos de 10% do total. Há alguns dias, escrevi sobre a pouca presença de mulheres nas Olimpíadas de Matemática. Curiosamente, o percentual de participação também vem aumentando, mas ainda é inferior a 10%.

Hoje, o protagonismo feminino em ciência é apenas uma ficção sociológica, assim como missões a Marte são apenas uma ficção científica. Ficções científicas se tornam realidade ao longo do tempo com base em pesquisa científica e investimento tecnológico, além de escolhas políticas. Como uma ficção sociológica se torna realidade ao longo do tempo?

Como comentei em meu post sobre a fraca presença feminina na Olimpíada de Matemática, há duas hipóteses sobre esta questão: uma biológica e outra sociológica. Minha opinião (e é só uma opinião de leigo) é que se trata de uma mistura das duas coisas. A indústria de entretenimento americana está buscando, de todas as formas, testar a hipótese sociológica: ao dar o protagonismo às mulheres (e essas séries não são as únicas nesse sentido) espera-se inspirar as jovens a seguir o caminho científico, derrubando barreiras sociais que as estariam impedindo. Terão sucesso? Assim como a missão a Marte, só saberemos daqui a 20 anos.

O falso dilema das redes

Está bombando nas redes o documentário da Netflix “O dilema das redes”, onde ex-empregados de empresas de tecnologia (Google, Facebook e Twitter) atacam o modelo de negócios dessas empresas.

Em resumo, é o seguinte: essas empresas usam ferramentas de inteligência artificial para maximizar o efeito da publicidade. São empresas que vivem da publicidade e, portanto, ganham mais quanto mais cliques seus anúncios recebem.

O número de cliques é diretamente proporcional a dois fatores: tempo de exposição e segmentação precisa. Quanto mais longo for o tempo em que o indivíduo fica exposto ao software, e quanto mais certeira for a segmentação, maior a chance de um determinado anúncio ganhar um clique.

Qual a novidade? Por que o buzz a respeito do assunto?

A publicidade sempre existiu, desde que o capitalismo de consumo de massa se estabeleceu entre nós. As técnicas de publicidade evoluíram com o tempo, basta comparar anúncios de algumas décadas atrás com os atuais.

Também a segmentação evoluiu. Revistas e jornais são oferecidos para os anunciantes com a definição de seus público-alvo. Malas-diretas chegam (chegavam) nas casas das pessoas com determinado perfil. Lojas fazem promoções entre seus clientes de acordo com aquilo que compraram.

As redes sociais (vamos chamar assim, embora o Google e a Amazon não o sejam) levaram a segmentação ao estado da arte, ao usar Big Data para identificar os seus usuários. O que você escreve em um e-mail, as páginas que você visita, o que você comprou um dia, tudo alimenta algoritmos de inteligência artificial, procurando adivinhar a sua próxima necessidade. Isso é bom ou ruim?

Isso não é bom nem ruim. Isso é técnica de publicidade, como sempre foi. Claro, há os que acham a publicidade um instrumento do demônio, por incitar o consumismo. Se você é uma dessas pessoas, então o problema não são as redes sociais, o problema é a publicidade em si. Se você, por outro lado, entende que a publicidade é a alma do capitalismo, então deveria aceitar numa boa a sua evolução em direção a uma maior efetividade.

Mas há a questão da privacidade. Uma coisa é você assinar um jornal ou uma revista com anúncios. Outra bem diferente é um software de inteligência artificial “roubar” os seus dados e comercializá-los.

Aí que está o ponto. Acho que hoje nem o mais ingênuo dos usuários pensa que o seu uso das redes sociais não gera dados que serão usados para caçar cliques. As pessoas usam as redes sociais “sem pagar nada”. Mas, como já dizia Milton Friedman, não existe almoço de graça. Portanto, o uso dos dados pessoais é o preço cobrado para usar as redes sociais. Se a pessoa não está disposta a pagar este preço, não deveria usar. Ponto. Revoltar-se contra o modelo de negócios das redes sociais é inútil. Esperar por uma regulamentação governamental, também. No limite, se a regulamentação realmente coibir o uso de dados pessoais para segmentação da publicidade, o negócio das redes sociais acaba. E aqueles que não se importam de receber publicidade segmentada ficarão sem o serviço.

Pergunta: quanto você pagaria por uma assinatura mensal do Google ou do Facebook para não ter seus dados comercializados? Haveria assinantes suficientes para pagar a conta? Jornais e revistas cobram assinatura e nem por isso deixam de ter anúncios. Qual teria que ser o valor da assinatura para evitar a necessidade de anúncios?

O último ponto, e que reputo o mais importante, é o vício. Acho que este é o ponto nevrálgico da questão, mais ainda do que a privacidade dos dados. Mas este não é um problema apenas das redes sociais. Todos os veículos de comunicação trabalham arduamente para manter a audiência. Procuram usar técnicas para prender o usuário o maior tempo possível diante da tela ou do papel. Não é diferente com as redes sociais. Isso é inerente a qualquer mídia que trabalha com anunciantes.

A diferença, neste caso, está na acessibilidade. O problema é que as redes sociais estão disponíveis nos celulares. E o celular está perto de você 100% do seu tempo. Este é o real problema. Na verdade, se precisássemos sentar na frente do computador para navegar, a coisa não seria muito diferente da TV, ainda que existam pessoas viciadas em TV. Mas o fato de carregar o celular conosco o tempo inteiro faz com que o vício se torne muito mais fácil. É como deixar um copo de pinga 100% do tempo ao alcance de um alcoólatra.

Este é um problema sério e que merece a nossa atenção. Não tem muito o que se possa fazer aqui, a não ser apelar para o autocontrole. Alguns truques ajudam, como, por exemplo, desligar as notificações. De vez em quando também é útil adotar períodos sabáticos, em que nos afastamos completamente das redes. Na verdade, do celular. Refeições em família sem os respectivos celulares também ajudam muito. Tudo isso é tanto mais difícil quanto mais estivermos viciados. O que torna a coisa ainda mais importante.

Note que o problema não são as “redes sociais”. Assim como o álcool, as redes sociais são bem úteis quando usadas com moderação. A comparação com cocaína é algo completamente desproporcional e inadequado. Não há reações químicas no cérebro que nos tornam escravos físicos do “vício em redes sociais”. Acredite, não temos “síndrome de abstinência” quando deixamos de usar as redes sociais. A comparação com o álcool ou com o cigarro é um pouco mais próximo da realidade. É possível usar com moderação.

Por fim, considerações sobre “ameaças à democracia” e “discursos de ódio” supostamente facilitadas pelas redes sociais são apenas mais uma forma de discurso político. Vivemos, no século XX, muitas “ameaças à democracia” e “discursos de ódio” sem o auxílio das redes sociais. Trata-se de uma confusão, proposital ou não, entre meio e mensagem. Acabar com as redes sociais não acabará com as mensagens de ódio. Elas apenas mudarão de meio. Culpar as redes sociais por supostos ataques à democracia é um meio fácil de deslocar a culpa da própria incompetência em transmitir uma mensagem alternativa que ganhe mentes e corações. Afinal, as redes sociais estão aí para todos, basta usar.

PS.: não é à toa que a Netflix tenha produzido este documentário. Ela também está na briga pela sua audiência, não se esqueça. E cada minuto a menos no Facebook significará potencialmente um minuto a mais na Netflix. Não tem santo nessa história. Todos estão em busca do seu olhar.

Documentário de ficção

Tem documentário novo na Netflix, abordando “o golpe da direita que derrubou o governo popular do PT”.

“Algo aconteceu no tecido social do país”, diz uma voz lamuriosa no trailer. PQP, algo aconteceu! Como se a roubalheira da Petrobras tivesse sido uma espécie de meteoro que surgiu assim, do nada.

A academia de Hollywood vai precisar criar a categoria documentário de ficção.

Quem lacra, não lucra

A Netflix deu fim à série “One Day At a Time” (muito prazer). Segundo o crítico do NYT, uma série “inteligente, divertida, com representatividade de minorias”. Só tinha um problema: os telespectadores parecem não concordar com o crítico do NYT, e deixaram a série com traço de audiência.

O crítico do NYT não se conforma com a forma com que a Netflix acabou com a série: eximindo-se de culpa. Afinal, TV é um negócio e precisa dar lucro, reconhece o crítico. Mas melhor teria sido, segundo o crítico, a Netflix bancar uma série deficitária como um investimento “de longo prazo” no relacionamento com seus clientes.

Não ocorre ao crítico que o “culpado” pela descontinuação da série não foi a Netflix, de fato. Foi, sim, a falta de pessoas dispostas a assistir a tal série. Também não lhe ocorre que, investindo em séries que ninguém vê, a Netflix colocaria em risco as séries que são vistas. Isso sim, poderia colocar em risco o relacionamento de longo prazo com seus clientes, ao ameaçar a própria existência da empresa.

Séries “lacradoras” podem agradar os críticos e uma “legião” de meia dúzia de fãs bem-pensantes, mas não sustentam um business de massa. As pessoas chegam em casa e querem se divertir. Só isso.