A falsa dicotomia entre garantismo e punitivismo

Meu amigo Nicolau Cavalcanti escreve hoje sobre uma epifania que lhe acometeu: a tendência punitivista da justiça seria um sintoma importante do déficit democrático que culminou nos atos de 8 de janeiro. O direito de defesa, segundo Cavalcanti, seria um dos pilares do Estado Democrático de Direito, e o ataque orquestrado contra esse direito pelos punitivistas seria um dos principais fronts no ataque à democracia.

Essa discussão entre “punitivistas” e “garantistas” me faz lembrar o debate entre “liberais” e “desenvolvimentistas” na seara econômica, no sentido de que cada um dos lados procura jogar o outro para o extremo, de modo que sua própria posição pareça muito razoável. De certa forma, isso é até fácil de fazer, porque qualquer posição pode ser extrapolada. Por exemplo, ser contra o Estado como empresário seria o primeiro passo para a eliminação do Estado, em uma espécie de anarquismo. Ou, ser a favor do Estado como empresário seria o primeiro passo para transformar o país em uma ditadura comunista, em que cada aspecto da vida dos cidadãos seria ditada pelo Estado. Esse tipo de extrapolação pode servir para “ganhar debates” em suas respectivas bolhas, mas é inútil para chegar a consensos mínimos. A imensa maioria das pessoas não acha que o Estado é completamente inútil ou, até mesmo, perigoso, assim como a imensa maioria das pessoas não pensa que um Estado onipresente seja a solução de nossos problemas. Trata-se aqui de uma sintonia mais fina do que estão dispostos a admitir ambos os lados do debate.

Da mesma forma, a oposição entre “garantistas” e “punitivistas”. Os garantistas, como o meu amigo, acusam os punitivistas de quererem acabar com o direito de defesa, ao passo que os punitivistas acusam o outro lado de quererem proteger criminosos. Esse tipo de extrapolação só serve para acirrar os ânimos e cavar trincheiras. O debate deveria se dar a respeito da velocidade da justiça em aplicar a lei, e não sobre um teórico “direito de defesa” a que ninguém, em sã consciência, é contra.

Por fim, permita-me o meu amigo concordar com sua tese central, mas discordar sobre a ordem dos fatores. Sim, um suposto ataque ao direito de defesa seria sintoma de deterioração da democracia em um país, mas não no sentido de fazer parte de um grande pacote de sentimentos anti-democráticos que vicejariam em um suposto submundo fascista em que alguns brasileiros vivem. Na verdade, sentimentos anti-democráticos surgem em cidadãos normais quando um pilar importantíssimo da democracia, a justiça igual para todos, parece disfuncional. Quando o Estado não cumpre o seu dever, cidadãos tendem a tomar a tarefa em suas próprias mãos de maneira desordenada. Nesse sentido, o garantismo extremo seria, ele próprio, a semente de sentimentos anti-democráticos.

Novamente: ninguém, em sã consciência, é contra o direito de defesa. Países com sólida tradição democrática garantem o direito de defesa e, nem por isso, deixam de punir o crime de maneira célere e independentemente de quem seja o réu. Por exemplo, cite um só país democrático em que existam quatro instâncias da justiça para que alguém seja preso (agora cinco, com o juiz de garantias). Portanto, meu convite é que deixemos de lado os rótulos, e trabalhemos para fortalecer a democracia através de uma reforma do judiciário que permita termos a mesma segurança jurídica das grandes democracias.

A criminalização das drogas e a saúde pública

O meu amigo Nicolau Cavalcanti escreve artigo hoje defendendo equiparação dos entorpecentes a remédios. A ideia é de que a simples proibição não está atingindo seus objetivos (que, imagino, seja o de diminuir o consumo, mas não está explícito) e, pior ainda, serviria para que o Estado tirasse o corpo fora na importante tarefa de saúde pública que lhe cabe. Segundo os autores, as drogas seriam tratadas como um remédio tarja preta, sob estrito controle em toda a sua cadeia de produção/comercialização. Essa é uma abordagem alternativa ao “libera geral, cada um sabe o que faz da vida, deixa o Estado faturar impostos sobre as drogas”.

Tenho um filho autista, que faz uso controlado de remédios psicotrópicos. Para comprá-los é um parto: receita em duas vias, assinatura, etc. De fato, bem controlado. Certa vez, estava em uma farmácia e um rapaz procurava comprar esses remédios sem receita. Diante da negativa da balconista o rapaz perdeu o controle, começou a gritar e teve que ser retirado da farmácia por um segurança. Não sei o que aconteceu depois. Existe um “mercado paralelo” de psicotrópicos?

Voltando aos entorpecentes. Nem vou levantar a possibilidade de um “mercado paralelo” de drogas, às margens do mercado regulado. Vamos assumir que o Estado consiga controlar esse mercado. Meu ponto é outro: entorpecentes são remédios?

Para que o esquema “distribuição controlada” funcionasse, seria necessário que médicos prescrevessem cocaína, heroína ou crack para fins terapêuticos, sopesando os seus efeitos benéficos com a possibilidade de se adquirir um vício que pode arruinar a vida da pessoa. Temos visto as discussões a respeito do uso terapêutico da maconha. O mesmo valeria para as drogas mais pesadas? Senti falta de um médico entre os autores do artigo. Assim, deixo a pergunta aos amigos médicos que leem esta página.