Notinha no Estadão nos conta que o ministro Luís Roberto Barroso, em tom jocoso, teria flertado com a ideia de uma “Casa Verde”, que servisse como lugar de internação para os malucos do país, em uma referência ao conto O Alienista, de Machado de Assis.
Não sei se a notinha é fidedigna. Mas se for, denota um ato falho do ministro do STF. Basta conhecer a trama para sacar que a imagem da “Casa Verde” se volta contra o próprio ministro. Aliás, como toda obra-prima atemporal, O Alienista parece descrever a realidade atual.
A obra nos apresenta a história do Dr. Simão Bacamarte, médico bem-sucedido que volta para a sua cidade natal. Lá, põe em prática seus conhecimentos de psicanálise, e começa a internar todas as pessoas que não se enquadram em seu padrão de perfeição. No início tem o apoio dos cidadãos, mas a coisa começa a sair do controle, com cada vez mais pessoas internadas na “Casa Verde”.
Em determinado momento, o barbeiro Porfírio lidera a “Revolta dos Canjicas”, para acabar com aquela situação. As forças armadas se juntam à revolta, e Porfírio toma o poder da cidade, fechando a Câmara dos Vereadores. Mas, surpreendentemente, Porfírio faz um acordo com Bacamarte, que continua internando as pessoas normalmente.
É então que João Pina, outro barbeiro, se revolta com aquela situação, e lidera outra revolução, que derruba Porfirio do poder. Mas João Pina também se alia a Bacamarte e as internações continuam.
Interrompo aqui a sinopse para traçar o evidente paralelo político entre O Alienista e a situação dos dias que correm. Os barbeiros lideram o povo contra os desmandos do médico. Mas, quando tomam o poder, compõem com o doutor, pois este lhes é útil para o exercício do poder. A luta contra o status quo é apenas uma desculpa para o exercício do poder. E o povo vai atrás, iludido. Qualquer semelhança não é mera coincidência.
Mas, avancemos. Bacamarte continua em sua missão, até que uma parte relevante da população se acha internada. Neste ponto, o médico começa a desconfiar de que sua teoria está errada. Na verdade, se comportamentos fora do padrão constituem a norma (dado que boa parte da população encontrava-se internada), então o “padrão” deveria estar invertido. Desvios de comportamento eram o normal e louco era quem não apresentasse nenhum desvio. A partir dessa conclusão, Bacamarte libera todos os internados da cidade e interna-se a si próprio, pois era, em sua avaliação, o único cidadão que não apresentava qualquer desvio de caráter.
Barroso, ao evocar a Casa Verde, coloca-se como o Bacamarte que julga os desvios morais das pessoas com base na “ciência”. A ciência é uma grande conquista da humanidade, sem dúvida, mas quando é usada para fins políticos, desvirtua-se. Como cansamos de ver durante essa pandemia, a ciência já deu sua “palavra final” muitas vezes, para depois ter que se desdizer, como Bacamarte o fez. Na verdade, a ciência nunca dá uma “palavra final”, sempre está aberta a ser desafiada. O uso político das conclusões científicas é que pretende dar essa aura de infalibilidade para a ciência, muito útil para os fins políticos.
Na verdade, todos somos um pouco Simão Bacamarte. Julgamos as pessoas de acordo com a nossa régua. Somos os únicos perfeitos no mundo, e os outros deveriam ser internados. O que significa, no final, que deveríamos nos alienar em nosso mundo perfeito. Essa é, na minha visão, a mensagem de Machado de Assis: tenha cuidado com o desejo de um mundo perfeito. Normalmente, traz a semente de um mundo totalitário.