à OAB e o direito ao cartel

A OAB não considera o exercício da advocacia como uma atividade econômica qualquer, regida pela lei da oferta e da demanda. Por isso, a defesa apaixonada do que seria, em qualquer outro ramo da atividade econômica, um cartel para prejudicar os consumidores.

Essa é a natureza do argumento: baixar preços seria, no final do dia, uma prática “puramente mercantil”, incompatível com a advocacia. A advocacia seria uma atividade tão nobre, tão pura, que não pode ser comparada com um armazém de secos e molhados. Não! Os nobres causídicos estão acima dessas realidades comezinhas que tocam apenas a nós, pobres mortais. Por isso, seus serviços não podem ser “vendidos” (desculpem-me o termo grosseiro) a qualquer preço.

O resultado disso, claro, é dificultar a vida de advogados com menor experiência, e que estariam dispostos a receber menos pelos seus serviços, além de, claro, levantar a barra de quem pode contratar advogados. O processo foi instaurado em 2005 (!) e só agora vai a julgamento, o que, por si, demonstra o poder da catchiguria de impor uma prática flagrantemente ilegal.

Parabéns aos advogados de São Paulo

Normalmente não acompanho as eleições da OAB. Trata-se de uma realidade distante para mim. No entanto, as eleições deste ano me chamaram a atenção por causa de uma candidata: Dora Cavalcanti.

Dora é advogada criminalista e atende VIPs. Mas seu cliente mais famoso, e pelo qual lembrei do seu nome, foi o grupo Odebrecht, no julgamento da Lava-Jato. Dora é muito atuante no, digamos, direito de defesa de quem tem dinheiro para pagar bons advogados, que sabem como explorar as chicanas processuais da justiça brasileira. É conselheira do Instituo pela Defesa do Direito de Defesa e faz parte do grupo de advogados Prerrogativas (Prerrô, para os íntimos), liderado pelo advogado petista Marco Aurélio de Carvalho, que surgiu justamente como uma reação à Lava-Jato e à “perseguição” a Lula.

A candidata Dora, portanto, tinha lado. Fiquei curioso, então, em ver como os advogados paulistas votariam nessa eleição. O resultado, não posso deixar de registrar, deixou-me animado.

Em primeiro lugar, com 36% dos votos, foi eleita a nova presidente da OAB-SP, Patrícia Vanzolini. Em segundo lugar, o atual presidente da Ordem, Caio Augusto Silva dos Santos, recebeu quase 33% dos votos, em uma chegada muito apertada. E, em um distante terceiro lugar, Dora Cavalcanti recebeu 10% dos votos. O restante foi dividido entre outros dois candidatos.

Na entrevista ao Estadão hoje, a presidente eleita da OAB-SP foi perguntada sobre o que os advogados acham da atuação de Sérgio Moro. A resposta foi brilhante: ao mesmo tempo que, como criminalista, tem sérias restrições ao modus operandi do ex-juiz, reconhece que muitos advogados pensam que Moro atuou dentro das 4 linhas. Sendo assim, apesar de sua posição, reconhece que não pode falar pela advocacia neste aspecto.

Esta pluralidade da advocacia paulista provavelmente explica os mirrados 10% dos votos recebidos por Dora Cavalcanti. Os advogados paulistas decidiram que a OAB deveria trabalhar pelos seus interesses e pelos interesses do Brasil, e não pelos de um partido. A OAB-SP livrou-se, por larga margem, de servir como um braço do PT. Parabéns, advogados de São Paulo.

Não mexam no meu queijo!

A Reforma Tributária ainda vai ocupar muito espaço por aqui.

Não é de hoje que o setor de serviços está chiando com a proposta de reforma que está sendo discutida no Congresso. Há algum tempo, cheguei a comentar um artigo do ex-secretário da Receita, Everardo Maciel, que foi um dos primeiros a erguer o tacape.

Sim, a exemplo da Confederação Nacional dos Serviços, que defendeu a CPMF para fugir da reforma, também a OAB está pintada para a guerra.

Não é à toa: como diz Pedro Fernando Nery em seu tuíte, os advogados pagam pouco imposto, assim como médicos e outros prestadores de serviços. A reação do presidente da OAB só corrobora o tuíte.

O presidente da OAB sabe do que está falando: a carga tributária sobre os advogados e profissionais liberais em geral vai aumentar com a reforma. Como a carga tributária geral deve continuar onde está, outros agentes vão pagar menos impostos. Estes outros agentes são a indústria e, em menor medida, o comércio. E adivinha quem consome os serviços de advogados e quem consome os produtos da indústria e comércio? Pois é.

Estamos novamente falando de distribuição de renda. O presidente da OAB é o primeiro a se alinhar a causas nobres e populares, sempre defendendo os fracos e oprimidos da sociedade. Desde que não mexam com o dele.

A judicialização do setor aéreo

Não consigo ver nada mais Brasil do que esse assunto aqui. Coisa igual pode existir, mais é impossível.

Trata-se do seguinte: multiplicaram-se sites que oferecem a compra de demandas judiciais de passageiros contra companhias aéreas, ou ajuda para processar as companhias, em caso de atrasos e cancelamentos, em troca de uma participação na indenização. Segundo a matéria do Valor, o nível de judicialização ultrapassou o dos EUA, terra dos advogados e dos processos, como sabemos. Os culpados? Esses sites do demônio.

As companhias aéreas obviamente criticam esses sites, acusando-os de estarem causando milhões de prejuízo às empresas do setor. E aqui entra o primeiro “componente Brasil” dessa história. Esses sites apenas descobriram um nicho de mercado: a tendência de os juízes brasileiros darem ganho de causa para o passageiro, independentemente da causa do atraso/cancelamento. Segundo a reportagem, a justiça brasileira não segue a Convenção de Montreal, que regula essa relação, e que não dá ganho de causa ao passageiro quando o atraso/cancelamento se deu por “força maior”. Mas aqui no Brasil, o sentimento anti-capitalista é mais forte, praticamente invencível, de modo que as empresas são sempre culpadas. Esses sites nada mais fazem do que explorar essa “distorção de mercado”.

Mas a OAB chegou para dar um jeito nessa história. Como não é possível mudar cabeça de juiz, vamos acabar com esses sites do demônio e dificultar o acesso do brasileiro à justiça. E aqui entra a segunda característica bem brasileira dessa história. Não, a OAB não está preocupada com a hiperjudicialização. Segundo a matéria, a OAB está processando os sites por fazerem o papel de advogados sem sê-los e por estarem “mercantilizando” os serviços de advocacia. A OAB está preocupada, portanto, em manter o monopólio da advocacia e a “pureza” da atividade contra a influência do vil metal.

Da primeira acusação, os sites defendem-se dizendo que contratam advogados para representar junto à justiça. Ou seja, respeitam o monopólio da OAB. Mas é a segunda acusação que marca bem o que é a justiça no Brasil. Advogados não podem fazer propaganda de sua atividade. Advogados não podem abrir o seu escritório em uma loja no nível da rua ou em um shopping. Advogados devem esperar sentados em suas torres de marfim os seus clientes. Não mercantilizar a sua atividade é isso. Fazer publicidade seria sujar as mãos no capitalismo mais rasteiro e isso os advogados não podem fazer.

Essa então é a justiça no Brasil: juízes que julgam com cabeça anti-capitalista e advogados que pensam com cabeça anti-capitalista. Resultado: uma justiça inacessível e intimidatória, feita para quem conhece o sistema por dentro e consegue, a peso de ouro, explorar os vieses dos juízes. Esses sites de processos contra companhias aéreas vieram para inverter essa lógica: deixar a justiça facilmente à mão e forçar uma mudança de jurisprudência por parte da justiça. Essa é, aliás, a forma mais eficiente de diminuir a atuação desses sites: passar a adotar a Convenção de Montreal, tornando o ganho na justiça menos certo. Mas aqui preferimos quebrar o termômetro ao invés de combater a febre.

Setores da sociedade

O termo “setores da sociedade” é uma óbvia cortina de fumaça para dar ares de respeitabilidade ao pessoal que plantou a notinha.

Quais seriam esses “setores da sociedade”? Seriam os professores? Os sem-teto? As donas-de-casa? Ou seriam os petistas e todos os encalacrados na justiça que podem pagar advogados a peso de ouro? Façam suas apostas.

O mundo mágico das leis

“Direitos conquistados não podem ser retrocedidos […]. Saúde não é mercadoria. Vida não é negócio. Dignidade não é lucro”.

Com essas palavras, e com sua caneta toda-foderosa de ministra de plantão, a Excelentíssima Ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lúcia, suspendeu liminarmente, em ação da OAB, resolução da ANS que estabelecia regras para a cobrança de franquia e co-participação dos usuários de planos de saúde.

Saúde é um problema no mundo inteiro. E isso por um motivo muito simples: “saúde não é mercadoria”, mas mesmo assim custa dinheiro. Como a demanda por saúde é infinita (todos querem viver para sempre com boa saúde), mas a oferta é finita, não há preço que equilibre oferta e demanda. Mas é preciso cobrar um preço, pois os operadores da saúde não vivem de brisa. Nesse sentido, saúde é sim uma “mercadoria”, e deve ser tratada como tal. Caso contrário, sua oferta desaparece.

A Ministra fala de “direitos conquistados”. Há dois tipos de direitos: os políticos e os econômicos. Os políticos são gratuitos: direito ao voto, direito à livre expressão, direito de reunião etc. Estes direitos se conquistam pela capacidade das sociedades de se organizarem e se livrarem de tiranias. Já os direitos econômicos somente são “conquistados” quando a oferta de produtos e serviços é viável economicamente. Caso contrário, são “direitos conquistados” apenas no papel.

Cansamos de ver isso no Brasil. A saúde talvez seja o melhor exemplo: se dependesse da Constituição, teríamos o melhor sistema de saúde do planeta. Só que não. A saúde (assim como a educação, a alimentação, o saneamento básico, o transporte, a justiça e uma longa lista de etceteras) é tratada na Constituição como um “direito”, não como uma “mercadoria”. Por isso, não sai do papel.

A Ministra acha um absurdo que os operadores da saúde obtenham lucro (que palavra tão feia!) com a sua atividade. Ora, sem o lucro, não há viabilidade econômica. E sem viabilidade econômica, não há oferta da “mercadoria”. Assim, o tal “direito conquistado” continuará ficando no papel. Especificamente no caso da norma da ANS, o que há é uma bem-vinda flexibilização: nem todos podem arcar com os custos de um plano sem co-participação e sem franquia. O que a Ministra e a OAB querem é que exista um só tipo de plano que cubra todas as doenças, todos os hospitais, sem franquia e sem co-participação, e que seja suficientemente barato para que todos possam adquiri-lo. Sim, eu também quero viajar para Marte e voltar em um fim de semana…

Ao exigir que os planos de saúde sejam perfeitos, a Ministra, na prática, exclui grande parte da população de uma parcela dos benefícios pelos quais poderia pagar. É mais ou menos o que acontece quando a legislação trabalhista coloca no papel uma série de “direitos adquiridos” do trabalhador, mas que, na prática, são inviáveis do ponto de vista econômico. O resultado é que somente uma elite tem acesso a esses direitos, enquanto o restante da população vive à margem da “legislação perfeita”. A nova legislação trabalhista nada mais fez do que reconhecer a realidade econômica, permitindo emprego “de carteira assinada” a pessoas que, antes, estavam fora do sistema formal.

“Vida não é negócio”. Frases de efeito são bonitas de se ler, mas não resolvem o problema daqueles que não têm emprego vitalício, plano de saúde custeado pelo governo, auxílio-moradia e outras prebendas. Ao insistir em uma visão de mundo em que os “direitos” são “conquistados” na base de belos discursos e canetadas, a Ministra Carmén Lúcia joga para o horror do SUS parcelas cada vez maiores da população, que não podem pagar pelo “plano de saúde perfeito” que só existe no mundo mágico das leis.