Destaquei abaixo trecho do editorial do Estadão a respeito de um acordo no âmbito do G7, de modo a tributar multinacionais. Seria o fim dos chamados “paraísos fiscais”, onde essas maldosas fontes de desigualdade escondem os seus polpudos lucros, evitando, assim, que os governos possam usar esse dinheiro para mitigar o sofrimento dos mais pobres.
O trecho destacado já traz, em si, o ceticismo do editorialista com relação a essa arrecadação adicional de impostos. Não do ponto de vista técnico, ainda que seja uma tarefa difícil tributar entre fronteiras. Mas do ponto de vista da aplicação do dinheiro arrecadado: “se o dinheiro fosse bem aplicado, sem interferência do Centrão e de ministros gastadores”.
Confesso que tive que abandonar a leitura nesse ponto por conta de um ataque irreprimível de risadas.
Não vou nem perder muito tempo com a impropriedade: se não for o “Centrão” (Legislativo) e nem “ministros gastadores” (Executivo), quem vai definir o que fazer com o dinheiro dos impostos? O Judiciário? Anjos travestidos de deputados e ministros? O que temos é isso aí, e são esses que estão aí que vão decidir o destino do nosso dinheiro. Esse “se” não faz o mínimo sentido.
Mas o buraco é mais embaixo, como diria o poeta.
Não são nem esses os que realmente decidem. Foram outros deputados e ministros, no passado, que já decidiram pelos que hoje estão no poder. Cerca de 93% do orçamento federal está vinculado a gastos decididos nas décadas passadas. Os atuais legisladores e ministros têm pouquíssima margem de manobra.
Acrescentei duas notícias para ilustrar esse ponto: o imbróglio das dívidas dos Estados (R$350 bilhões são impagáveis) e o furo atuarial da previdência dos militares, calculado em R$700 bilhões. Ambos os gastos deverão ser cobertos por impostos no futuro. São somente amostras de como o grosso do nossos gastos já está decidido.
Claro que o Legislativo e o Executivo atuais poderiam mudar o curso dessa história, mexendo em privilégios adquiridos. Por exemplo, grande parte do rombo dos Estados tem origem na previdência dos funcionários públicos. A alíquota de contribuição já foi foi elevada em alguns Estados de 11% para 14%, mas está longe de resolver o problema. E sempre que se fala sobre o assunto, existe unanimidade em dizer que o tema não é “popular”, podendo prejudicar ambições eleitorais. Ora, se conter gastos com funcionalismo público é “impopular”, isso só significa que o peso do funcionalismo já ficou tão grande na sociedade brasileira que é impossível reverter o quadro. E mesmo que Legislativo e Executivo fizessem a sua parte, teríamos sempre um Judiciário pronto a defender os “mais pobres”.
Voltando à tributação das multinacionais: hoje, o dinheiro salvo da sanha arrecadatória é utilizado para novos investimentos por parte dessas empresas ou para pagar dividendos para os seus acionistas, a maioria pequenos investidores que têm nesses dividendos a sua renda para consumo. Os grandes acionistas, por outro lado, terão menos dinheiro para os seus gastos com luxo e suas ações de filantropia. Tudo isso para que os governos possam continuar sustentando suas máquinas de fazer o bem.
Gosto de pensar em crescimento econômico como criação de valor. O PIB de cada país é calculado com base no valor agregado de cada atividade: depois de descontados todos os custos de produção daquele bem ou serviço, o que sobra é o valor agregado, o Produto Interno Bruto.
O PIB é calculado somando-se o valor, em reais, dos produtos e serviços finais, comprados pelos consumidores. O próprio IBGE, aqui, explica de maneira didática como é calculado o PIB. O exemplo dado pelo Instituto é o do pão: se o trigo foi vendido a R$ 100, a farinha de trigo a R$ 200 e o pão a R$ 300, o PIB terá sido de R$ 300, que é o valor pago pelo consumidor final.
No entanto, como disse acima, gosto de pensar no PIB como valor agregado em cada uma dessas etapas. Vamos imaginar, apenas para fins didáticos, que o produtor de trigo não tenha tido custo na sua produção. Seu lucro foi, então, de R$ 100. O produtor de farinha de trigo comprou o trigo a R$ 100 e vendeu a farinha a R$ 200, tendo também um lucro de R$ 100. E o produtor de pão comprou a farinha de trigo a R$ 200 e vendeu o pão a R$ 300, tendo lucro de R$ 100. A soma dos lucros em cada passo (do produtor de trigo, do produtor da farinha e do produtor de pão, R$ 100 em cada etapa) perfazem o total do PIB.
Observe que este “valor agregado” em cada etapa está dividido entre lucro para o capitalista e salários. Funciona como se os empregados de cada empresa fossem, eles mesmos, capitalistas de si mesmos, obtendo “lucro” do aluguel de sua mão de obra. Chamamos esse “lucro” de salário. Assim, esses R$ 300 obtidos na venda do pão não são exatamente a soma dos lucros dos capitalistas ao longo do processo. Inclui também os salários pagos à mão-de-obra utilizada em cada etapa.
Ah, e o PIB inclui também os impostos. Afinal, é preciso que todo esse processo remunere também o nosso “sócio oculto”.
Então, como estava dizendo, o crescimento econômico, o aumento do PIB, é, no final do dia, um processo de agregação de valor. Pode não parecer para você, que é um consumidor insaciável, mas a coisa mais difícil que existe no mundo é tirar dinheiro do bolso de alguém. Este alguém só vai tirar dinheiro do bolso para comprar algo que lhe agregue valor. Este contínuo esforço para agregar valor ao longo de todo o processo produtivo até chegar no consumidor final é que produz o crescimento econômico. Por definição.
Este conceito é de extrema importância. Muitas vezes nos envolvemos em debates sobre o papel do Estado na economia, sobre como gastos do governo poderiam estimular o crescimento econômico e esquecemos esta verdade básica: não existe crescimento econômico permanente sem agregação de valor.
Hoje, o Estadão traz uma entrevista com o colunista do Financial Times, Martin Sandbu, que defende a ideia (e não está sozinho) de um novo consenso se formando, e que se destina a substituir o chamado “Consenso de Washington”. Neste “novo consenso”, o Estado tem um papel central no desenvolvimento econômico, ao investir em áreas ou em momentos que não interessam à iniciativa privada, mesmo que, para isso, tenham que aumentar as suas dívidas.
Martin Sadbu dá o exemplo da austeridade fiscal que corta investimentos em saúde. Investir em saúde resulta em uma mão-de-obra mais produtiva, o que impulsiona o crescimento econômico. Mas isto estaria sendo negligenciado pelas políticas de austeridade. Parece ser um bom argumento. Mas, vejamos.
Digamos que o governo invista 1.000 moedas em “saúde”. Este termo genérico, “saúde”, envolve escolhas. Muitas escolhas. O que é “saúde”? Mais ambulâncias? Mais hospitais? Salários melhores para os médicos e enfermeiros? Financiamento de um seguro-saúde? Como fazer com que essas 1.000 moedas sejam investidas de modo a realmente agregar valor para a economia como um todo? Lembre-se sempre: estamos procurando políticas que fomentam o crescimento econômico, e o crescimento econômico se alcança, no longo prazo, somente através da agregação de valor.
Digamos que o governo, que opera os recursos do Estado, tome as decisões corretas, maximizando o valor agregado do investimento em saúde. Ainda cabe a questão: este teria sido o melhor investimento para este dinheiro, tendo como objetivo o crescimento econômico? Note que não estamos fazendo considerações de outras ordens, como justiça ou distribuição de renda. A discussão, da forma como está colocada, se refere ao estímulo ao crescimento econômico. Voltando: terá sido este o melhor investimento para as 1.000 moedas? Será que se estas 1.000 moedas permanecessem nas mãos da iniciativa privada, este dinheiro não poderia ser melhor investido? Quem disse que o investimento em saúde é a melhor alternativa para agregar valor para a sociedade como um todo?
Para quem se choca com esse tipo de discussão (sim, eu sei, saúde é algo sério, discutir economicamente o custo de uma vida humana é chocante), vamos usar outro exemplo, aliás muito em voga: o investimento em infraestrutura.
Biden está patrocinando um megapacote de investimentos em infraestrutura. Estes investimentos poderiam ser feitos pela iniciativa privada, desde que o preço cobrado dos usuários permitisse remunerar o capital, tanto financeiro quanto humano. Lembre-se, esta é a medida de criação de valor. Como o Estado vai investir, depreende-se de que se trata de obras que não agregam valor suficiente para os seus usuários diretos, aqueles que deveriam pagar pelo uso. Portanto, o governo faz uma vaquinha, passando o chapéu entre todos os cidadãos, usuários ou não daqueles serviços, para pagar pela sua construção e manutenção. A ideia é de que aquele investimento agrega valor para todos, mesmo para aqueles que não usam diretamente os serviços. Uma estrada, por exemplo: se fosse cobrado pedágio, este custo seria cobrado dos consumidores finais dos produtos que passam por esta estrada. Como estes consumidores não estão dispostos a pagar por isso (não reconhecem o valor agregado), outros consumidores que não consomem estes produtos são chamados a pagar por eles. De alguma forma, estes outros consumidores estariam sendo, teoricamente, beneficiados pelo fato de estarem pagando, indiretamente, por produtos que não estão consumindo. Essa história de “externalidade positiva” é quase um ato de fé.
Veja: não estou negando que gastos governamentais estimulem o crescimento econômico no curto prazo. Todas aquelas obras, pessoas contratadas, gente trabalhando, e depois uma bela obra sendo utilizada, tudo isso “faz a roda da economia girar”, como dizem. O problema não é o curto prazo. O problema é o longo prazo.
Keynes, em resposta à crítica de que a solução de gastos públicos contra o desemprego levaria à inflação no longo prazo, dizia que, no longo prazo, estaríamos todos mortos. No entanto, esta afirmação de Keynes somente seria verdade se um meteoro atingisse a Terra extinguindo a humanidade. Neste caso, poderíamos gastar como se não houvesse amanhã, dado que não haveria mesmo. A verdade é que nem todos estaremos mortos. A dívida pública é uma transferência de renda intergeracional. A nossa geração estará morta no longo prazo, mas a dívida ficará para os nossos filhos e netos. Toda dívida é um saque a descoberto sobre a geração futura.
No longo prazo, é preciso que os investimentos feitos pelo governo agreguem valor. Somente dessa maneira o crescimento econômico será sustentável. Senão, é só fogo de palha, que se extingue rapidamente, deixando não mais que cinzas. Vejamos o que nos mostra a história.
O gráfico abaixo mostra uma série longa (desde 1947) de crescimento do PIB no Brasil e investimento público. As barras vermelhas são o crescimento do PIB em cada ano (escala da esquerda), enquanto a linha azul mostra o investimento público como percentual do PIB (escala da direita).
Podemos observar três momentos de elevação abrupta do investimento público. O primeiro não tem a ver com investimentos produtivos, mas com a construção de Brasília: os investimentos públicos passaram de 3% do PIB em 1956 para 5,5% do PIB em 1958. A ressaca deste que talvez tenha sido o investimento mais improdutivo da história (e olha que a concorrência é forte) veio a partir de 1963, quando o crescimento do PIB se desacelerou de maneira abrupta: de uma média de 9% de crescimento entre 1958 e 1962, o crescimento em 1963 foi de apenas 0,6%. Se alguém acha que o golpe de 64 não tem nada a ver com economia, talvez tenha que refazer seus conceitos. O crescimento no triênio 63-65 foi de apenas 2,1% ao ano, cerca de 7 pontos percentuais abaixo dos 5 anos anteriores. Ou seja, o crescimento do investimento público foi capaz de gerar crescimento de curto prazo, mas que não se sustentou com o tempo.
O segundo momento é a saída do milagre econômico do início da década de 70. Percebendo que o crescimento estava perdendo ritmo, e sem querer admitir o fim da festa, o governo de Ernesto Geisel pisou fundo no acelerador dos investimentos públicos, de uma média de 7% do PIB na primeira metade da década para uma média de 9,5% no triênio 76-78. Até conseguiu sustentar algum crescimento no curto prazo, mas depois o país mergulhou na crise da dívida externa, dando origem à década perdida dos anos 80.
O terceiro momento é a saída do “superciclo das commodities”, causado pelo crescimento acelerado da China. No quinquênio 2004-08, o Brasil cresceu a uma média de 4,8% ao ano. Com a grande crise financeira de 2008, o governo colocou o pé no acelerador dos investimentos públicos para levantar o PIB, elevando de uma média de 2,5% do PIB nos cinco anos anteriores para 4,5% em 2010. A recuperação do crescimento foi rápida no curto prazo, mas a ressaca foi grande, dando origem à década perdida dos anos 10.
O problema desses ciclos de investimentos públicos é justamente encontrar atividades que agreguem valor e que, por algum motivo, não atraem o investimento privado. Haja externalidade positiva!
Mas não é só de investimentos públicos que vive a expansão de gastos públicos em busca do santo graal do crescimento econômico. Como afirmou o colunista Martin Sandbu, os investimentos sociais, que não entram nessa conta de investimentos públicos, agregam valor ao longo do tempo. A austeridade seria, então, contraproducente.
Bem, talvez o colunista do Financial Times não esteja familiarizado com a questão brasileira. Nós JÁ aderimos, de corpo e alma, ao novo consenso que está desbancando o Consenso de Washington. Vejamos o gráfico a seguir, em que mostramos a evolução dos superávits primários e da dívida pública nos últimos mais de 20 anos:
Observe como, a partir de 2014, começamos a produzir déficits primários, depois de 15 anos produzindo superávits. Primeiro, de maneira envergonhada, varrendo os números pra debaixo do tapete da contabilidade criativa. Depois, em plena luz do dia. E a dívida pública, como não poderia deixar de ser, cresceu desde então. Em 2020 produzimos a espetacular marca de 9,5% do PIB de déficit primário, de longe o maior número entre as economias emergentes e somente comparável ao déficit dos EUA entre os países desenvolvidos. Ou seja, já estamos muito à frente de todo mundo nesse “novo consenso”, em que os gastos do governo devem sustentar o crescimento econômico.
Mas este gráfico tem outro trecho interessante: observe o crescimento da dívida entre 1998 e 2002, apesar da produção de superávits primários. Por quê? Simples: a taxa de juros, na época, era gigantesca. O menor nível da Selic nesse período foi de 15,25%, mas foi comum convivermos com taxas acima de 20% ao ano. Então, mesmo produzindo superávits primários, os juros pagos sobre a dívida faziam aumentar essa mesma dívida. Este é o risco que corremos agora, com a dívida acima de 90% do PIB: se a taxa de juros subir, o gasto com juros será muito maior, dificultando a estabilização da dívida.
Perguntado sobre o que nós, um país altamente endividado, deveríamos fazer para nos juntar ao “novo consenso”, o colunista do Financial Times sacou o seguinte:
Em primeiro lugar, temos muito espaço para melhorar como o governo gasta o dinheiro público. Puxa, isso sim é uma descoberta, como não havíamos pensado nisso antes. Basta gastar o dinheiro melhor! Fácil.
Mas o último conselho é que vale ouro: o Brasil deveria encontrar modos de fazer empréstimos de forma segura, com prazos longos, para que não tenha de se refinanciar de repente quando as taxas de juros subirem. Uau, isso é que é conselho! Claro, basta fazer encontrar financiadores de longo prazo para que possamos aderir ao “novo consenso” de “maneira segura”.
Estou sendo sarcástico, claro, mas quando colocados diante do problema concreto, aquele que os gestores públicos enfrentam, todos esses palpiteiros não conseguem se sair com nada mais do que platitudes desse tipo. Quer outro exemplo? Na mesma edição de hoje, o ex-diretor do Banco Central, Luís Eduardo Assis, em sua coluna, também prescreve gastos públicos como a solução de todos os seus problemas. E, óbvio, o abandono do teto de gastos. Mas é o conselho final que vale a pena ler:
Sim, é tempo de pensar em soluções inteligentes e criativas. Estamos esperando. Em todo o artigo que leio criticando o teto de gastos, fico ansioso por encontrar soluções inteligentes e criativas que substituam esse burro e sem imaginação teto de gastos. Saio sempre de mãos vazias.
Resumindo alguns pontos para encerrar este artigo:
1. Crescimento econômico não se improvisa. Crescimento econômico é fruto de produtividade, agregação de valor para o consumidor final. Quanto mais valor se agrega com menos recursos, mais a economia cresce. A destruição de uma economia se dá pelo desperdício de recursos em atividades que não agregam valor.
2. A austeridade não é um fetiche. Quem não gosta de gastar, não é mesmo? O problema está na sustentabilidade da dívida gerada pelo gasto governamental. Se o gasto fosse investido em atividades que agregassem valor, o crescimento econômico resultante pagaria a conta. Mas isto requereria um grau de clarividência dos governos muitas vezes acima do que normalmente observamos. Além disso, parece pouco provável que só o governo encontre atividades que agregam valor, vendo oportunidades onde a iniciativa privada não vê. As externalidades positivas são de difícil mensuração e, como a história mostra, normalmente não compensam o gasto.
3. Este “novo consenso” não tem nada de novo. É o bom e velho keynesianismo, que levou à estagflação da década de 70. O articulista do Financial Times, perguntado sobre a diferença deste “novo consenso” para o keynesianismo, respondeu o seguinte:
O “novo consenso”, portanto, ultrapassaria o keynesianismo por incluir a desigualdade e a desregulamentação financeira como obstáculos ao crescimento econômico. Ou seja, não basta o governo gastar. Precisa gastar distribuindo renda e amarrando as mãos do sistema financeiro, limitando o crédito. Junto com uma boa política de fomento a determinados setores escolhidos pelo seu “efeito multiplicador” (política industrial sofisticada), a mistura disso tudo resultaria em agregação de valor para o consumidor final. Bem, quem sou eu para dizer que vai dar errado.
4. A austeridade não é garantia de crescimento econômico. Nem tem a pretensão de ser. A austeridade é apenas o alicerce da casa, não a casa em si. Seria néscio achar que somente o alicerce resolve. Assim como seria igualmente néscio tentar construir a casa sem o alicerce. Vimos que esse tipo de estrutura não se sustenta. O articulista do Financial Times insiste, em vários pontos de sua entrevista, que a austeridade diminuiu o crescimento econômico no curto prazo e, por isso, foi uma política equivocada. O que ele está sugerindo, no fundo, é trocar o alicerce por uma casa construída sobre areia.
Este artigo é uma espécie de continuação do anterior, em que comentamos a carga tributária brasileira. Vamos falar, agora, das despesas.
Começo com algumas manchetes que estamparam os jornais nos últimos dias:
O que aconteceu? O governo malvadão resolveu mostrar sua verdadeira face? Ou, em um acesso de loucura, decidiu dar um tiro no próprio pé, minando sua própria popularidade?
Nem um coisa, nem outra. Foi muito simples o que aconteceu: acabou o dinheiro.
Quer dizer, dinheiro tem. O que acabou foi o dinheiro do que chamamos de verbas discricionárias. O orçamento brasileiro é extremamente engessado. Como podemos ver na tabela abaixo, elaborada pela Instituição Financeira Independente, órgão do Senado, uma parte relevante das despesas são obrigatórias, ou seja, estão carimbadas por alguma lei. Inclusive, várias delas são nada menos que constitucionais.
As duas maiores despesas obrigatórias são a Previdência e Gastos com Pessoal. Somando todas as assistências sociais (Previdência, Seguro-Desemprego, BPC e Bolsa-Família), temos um total de 54,9% das despesas. Os Gastos com Pessoal, por sua vez, somam 21,4% das despesas. Outras despesas obrigatórias, como Educação (incluindo o Fundeb) e Saúde, somam 17,1% das despesas do governo. Sobram 6,6%, que são as chamadas “despesas discricionárias”.
E o que são essas despesas discricionárias? Despesas discricionárias são aquelas livremente definidas pelo governo e pelo Congresso, o que inclui todos os investimentos estatais. Como as obrigatórias são definidas por lei, não há o que fazer. E como existe a Lei do Teto de Gastos, acaba sobrando para as despesas discricionárias. Ou seja, as despesas obrigatórias crescem segundo a lei, empurrando as despesas discricionárias contra o teto de gastos. Parece aquela cena do filme Kingsman, em que o mocinho fica preso em uma sala com a água subindo, sobrando cada vez menos espaço para respirar.
O gráfico abaixo, elaborado pelo IFI, mostra os gastos discricionários ano a ano, em proporção do PIB.
Podemos observar que, neste ano de 2021, esses gastos representam apenas 1,3% do PIB, contra uma média quase sempre em torno de 2% do PIB nos anos anteriores.
Quando a Lei do Teto de Gastos foi aprovada, sabíamos que isso iria acontecer. A ideia era aprovar reformas estruturais que diminuíssem as despesas obrigatórias. Fizemos a Reforma da Previdência, que economizaria R$ 800 bilhões em 10 anos, ou R$ 80 bilhões/ano, o equivalente a pouco mais de 1% do PIB ao ano. Foi uma reforma potente, mas os seus efeitos só se farão sentir ao longo dos anos, o efeito no curto prazo é pequeno.
O mesmo se pode dizer da Reforma Administrativa que está no Congresso. Vai valer somente para os funcionários públicos que ainda vão entrar no serviço público. Então, seus efeitos sobre o orçamento serão sentidos somente ao longo dos anos, não hoje e nem no ano que vem.
Assim, com o Teto de Gastos valendo e as despesas obrigatórias aumentando, começamos a ver a máquina rangendo. Falta dinheiro para o Censo. Falta dinheiro para o Minha Casa Minha Vida. Falta dinheiro para a segurança e a limpeza das universidades federais (não se preocupe, a verba para pagar salários de professores é obrigatória, não discricionária). Daqui a pouco vai faltar dinheiro para imprimir passaportes.
Estamos chegando à hora da verdade do Teto de Gastos. É a única regra fiscal que temos, depois que abandonamos, a partir de 2014, a política de superávits primários. Aliás, para quem acha que o Teto de Gastos é muita austeridade, gostaria que me explicasse que austeridade é essa que provocou o aumento da dívida pública em quase 40 pontos percentuais do PIB em 6 anos.
Abandonar o Teto de Gastos e não colocar nada no lugar é a receita certa para o desastre. Não temos a licença para gastar que um Tesouro dos EUA tem. Sem uma âncora fiscal que substitua o Teto de Gastos, os financiadores da dívida vão começar a exigir mais juros para financiá-la (já começaram, aliás). Uma coisa é pagar juros de dois dígitos sobre uma dívida de 50% do PIB. Outra, bem diferente, é pagar juros de dois dígitos sobre uma dívida de 90% do PIB. Começa a ficar insustentável.
Como sair dessa sinuca de bico? Esta é a questão que os candidatos a presidente a partir de 2023 precisam responder. Qualquer outra bandeira depende de se resolver isso. Porque, senão, não haverá dinheiro para financiar qualquer promessa.
Existem símbolos que retratam uma era. Também existem símbolos que retratam as consequências de um certo tipo de mentalidade. Quando um símbolo representa as duas coisas, estamos diante de algo poderoso.
O teleférico do Alemão vai completar 10 anos em julho. Está fechado, no entanto, desde o fim das Olimpíadas do Rio. Há quase, portanto, 5 anos.
A obra era a face social do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, um conjunto de investimentos públicos empacotado em uma campanha de marketing. O Brasil estava na crista da onda, o dinheiro abundava e gastamos como se não houvesse amanhã. Dilma foi eleita em 2010 como a mãe do PAC.
Em seu discurso de inauguração, Dilma lembrou de seu padrinho e se emocionou. Disse que Lula pensou em tudo aquilo com muito amor e carinho. Era a época do Estado-Mãe, que não fica preso a planilhas de despesas, investindo o que for preciso para tornarem todos felizes.
Todos felizes. Inclusive os que usaram a obra para cobrar faturas de serviços prestados, como a Odebrecht, que foi, coincidentemente, a empreiteira contratada. Dos que aparecem na foto de dezembro de 2010, quando Lula visita a obra, somente o atual prefeito do Rio, Eduardo Paes, não foi preso.
Mas esse é o detalhe menos importante dessa história. O ponto relevante aqui é o gasto de recursos públicos em obras inviáveis economicamente. No caso, R$ 210 milhões em dinheiro de 2011. Inviável porque qualquer obra de infraestrutura necessita de manutenção. Não adianta só construir e inaugurar. É preciso prever a manutenção. Caso contrário, a deterioração vai levar inexoravelmente ao sucateamento. Essa é a realidade, por mais amor e carinho que se possa colocar em uma obra.
O financiamento da manutenção pode ocorrer basicamente de três formas: governo, usuários e patrocínio. O transporte público nas grandes cidades por exemplo, é financiado por um mix de governo (subsídios) e usuários. No caso do teleférico, o governo pagava tudo. Só que o dinheiro acabou.
Quer dizer, o dinheiro não acabou. Na verdade, o dinheiro nunca existiu. Sacamos adiantado o dinheiro do pré-sal e de um crescimento econômico que achávamos eterno. Contratamos gastos que se tornaram direitos perpétuos, como o aumento da folha do funcionalismo e suas respectivas aposentadorias. Quando o dinheiro que era para estar ali não estava, acabou sobrando para o teleférico. Este é o símbolo de uma era.
Mas o teleférico do Alemão é também o símbolo de uma mentalidade. A viagem era “de graça” para os moradores.
Papai Lula e Mamãe Dilma deram de presente para os seus filhos necessitados. É óbvio que não existe nada de graça. O projeto do teleférico deveria ter sido precedido de um estudo de viabilidade econômica: qual deveria ser o preço da passagem para viabilizar a sua manutenção? Pergunta básica, mas que certamente não foi feita na festa do PAC. Isso é coisa de quem não tem amor e carinho. Nada contra a que o Estado financie 100% da obra e da manutenção. Desde que haja uma previsão orçamentária que impeça a descontinuidade do serviço. Imagine, por exemplo, parar o sistema de ônibus de uma cidade porque “acabou o dinheiro”. Quando isso acontece, se aumenta o preço da passagem de ônibus e ponto final.
A reportagem diz que a lotação que faz o mesmo percurso cobra R$3.
Será que, com esse preço, o teleférico é viável economicamente? Se não for, o governo poderia subsidiar o restante? Essas perguntas são básicas, mas faz 5 anos que o teleférico “de graça” está parado. Está tudo certo: os moradores não pagam e também não recebem o serviço.
No final do livro Atlas Shrugged, de Ayn Rand, o personagem que luta honestamente até o fim para manter funcionando um sistema inviável se vê no meio do nada em um trem quebrado, sem condições de receber manutenção. Sempre lembro desse final quando vejo o sucateamento de obras grandiosas.
Qual a maior empresa do Brasil? Se você chutou “Petrobras”, errou. Com cerca de R$ 300 bilhões anuais de faturamento, a Petrobras é apenas a segunda maior empresa do Brasil.
A maior empresa do Brasil, de longe, é o governo federal. Com “faturamento” de aproximadamente R$1,5 trilhões, é nada menos do que cinco vezes maior do que a segunda colocada.
Mas o governo não é uma empresa qualquer. Se compararmos com o sistema solar, o governo é o Sol, tem luz própria. Não apenas é muito maior, mas sua natureza é diferente. O governo emite uma moeda que é aceita nas transações entre todas as outras empresas. E, além disso, elabora leis que tornam obrigatório o pagamento de impostos. A Petrobras não tem o poder de obrigar ninguém a comprar seus produtos. Mas o governo tem o poder coercitivo de garantir o seu “faturamento”: todos são obrigados a pagar impostos.
Como qualquer empresa, no entanto, o governo pode dar lucro ou prejuízo. No nosso caso, dá prejuízo. E dos grandes. Mas, ao contrário dos outros planetas, o Sol pode emitir moeda a seu bel prazer ou obrigar os outros planetas a pagarem mais impostos. E seu tamanho é tão maior, que é virtualmente impossível escapar de financiar a sua dívida. Todos os planetas orbitam em torno do Sol, não há escapatória possível.
Às vezes me pego pensando porque se gasta tantos litros de tinta analisando no detalhe a política e as decisões de Brasília.
O motivo é simples: qualquer tempestade eletromagnética no Sol pode ter influência deletéria nos planetas. O Sol, pelo seu tamanho e pelas suas características únicas, é determinante para a vida dos planetas. Por isso é tão importante a estabilidade do governo. Assim como o Sol nasce e se põe todos os dias, sem que notemos a sua presença a maior parte do tempo, assim deveria ser o governo.
Essa alegoria tem um defeito: os planetas não podem sair de suas órbitas, mas as pessoas e empresas podem sim decidir que esse Sistema Solar não lhes serve e procurar outro Sol para orbitar. Os planetas seguem as leis da física, as pessoas e empresas seguem as leis da sobrevivência.
Em uma época em que falar contra o auxílio emergencial é arriscar- se a ser chamado de genocida, Ricardo Paes de Barros, um dos maiores especialistas em políticas sociais do Brasil, põe o dedo na ferida. Tentei destacar alguns trechos, mas a entrevista inteira é um primor. Vale a leitura.
Costumo apreciar as análises do Cláudio Adilson. Mas dessa vez serei obrigado a abrir divergência.
Neste artigo, o articulista condena as premissas do liberalismo, de A a Z. Afirma que há evidências empíricas abundantes de que os mercados, deixados livres, não levam ao “bem-estar”, o que quer que isso signifique.
A solução? Governos que investem com taxas de retorno satisfatórias. É um pouco como dizer que há evidências de que a democracia não resolveu nossos problemas, então seria melhor uma ditadura que tomasse as decisões corretas. É o velho sonho dos tecnocratas: governos dirigidos por clones de Mr. Spoc, tomando as decisões mais racionais no lugar desses seres humanos irracionais.
Até acredito que em países como Noruega ou Japão, onde há um sentido de bem-estar coletivo mais desenvolvido, a coisa possa ter alguma chance de funcionar. Mas, por algum misterioso motivo, Cláudio Adilson acredita que esse tipo de governo pode existir em países como o Brasil. Tivemos “políticas pró-crescimento” à vontade durante os governos lulopetistas e colhemos uma década perdida.
A verdade é que nunca experimentamos mercados verdadeiramente livres no Brasil. Temos um crony capitalism em que os amigos do rei se beneficiam das “políticas pró-crescimento” em detrimento do bem-estar geral da sociedade. Além disso, pagamos o custo de um estado de bem-estar social sem termos antes ficado ricos para custea-lo.
Gastamos 9 pontos percentuais do PIB no ano passado injetando dinheiro na veia da economia. Conseguimos, com isso, aumentar o PIB em uns 4%, considerando a diferença da queda do PIB brasileiro (-4,1%) em relação ao PIB de seus pares, que recuaram, em média, cerca de 8%. Cabe a questão: esse crescimento é permanente? Consegue ser sustentado no tempo? Desconfio da resposta, mas vamos conferir daqui a 5 anos.
Cláudio Adilson diria que esses 9 pontos do PIB não foram investidos em projetos com “retorno satisfatório”. Bem, talvez Mr. Spoc seja convidado a fazer parte do governo no lugar do Guedes.
Já tive oportunidade de comentar aqui algumas decisões esdrúxulas de juízes a respeito de demandas que teriam consequências econômicas nefastas.
Observando o teor da PEC emergencial aprovada pelo Senado (e que deve ser aprovada pela Câmara nessa semana), caiu-me uma ficha: os juízes decidem do modo que decidem porque vivem em um mundo sem restrições orçamentárias.
A PEC emergencial trata de congelamento de salários do funcionalismo público caso as despesas obrigatórias atinjam 95% das despesas totais. Mas, vejam só: esse congelamento não atinge o Legislativo ou o Judiciário. Assim, a professora ou a enfermeira terão o seu salário congelado, mas não o aspone DAS-52398 ou o desembargador.
Só pode ser por isso que leis e julgamentos constroem um mundo maravilhoso, onde todos têm a sua dignidade humana preservada, sendo a dos autores e operadores da lei a primeira na fila.
Ocorre que, como no mundo real existe restrição orçamentária, a dignidade humana dos funcionários do Legislativo e do Judiciário vem às custas da dignidade humana do restante da população. Por mais que a letra da lei afirme o oposto.PS.: é claro que essa elite do funcionalismo público sabe o que é restrição orçamentária. Caso contrário, aquele procurador mineiro não teria reclamado do “miserê” que ganhava. O que só torna a coisa pior: eles não vivem em um mundo à parte, eles sabem exatamente o que estão fazendo.
Eu nem ia comentar, porque achei a coisa meio folclórica. Mas quando vi o Estadão dar capa para o fato, como se de importante coisa se tratasse, fui olhar com mais atenção.
O assunto teve origem em matéria do site Metrópoles. Na medida em que grande parte das pessoas só lê a manchete e, no máximo, o lead, cuidadosamente escolhidos pelo editor para causar impacto, vou gastar algumas linhas para mostrar algumas inconsistências da reportagem. Depois, vou dar minha interpretação política.
Vamos às inconsistências.
1. A matéria afirma que o governo federal (todas os ministérios e autarquias) gastou, em 2020, R$ 1,8 bilhão em alimentos. Este valor seria 20% acima dos gastos de 2019, insinuando um crescimento bem acima da inflação. Ocorre que a inflação de alimentos em 2020, no IPCA, foi de 18%. Ou seja, todas as famílias brasileiras, se mantiveram a mesma quantidade consumida de alimentos, gastaram 18% a mais em 2020. 20% adicionais não parece ser exagerado.
2. A comparação se deu somente com 2019. E os mesmos gastos em outros governos? Houve um aumento substancial? Ou diminuição? Das duas uma: ou o repórter não pesquisou para dar essa Informação (que é obviamente importante), ou pesquisou e achou números que não ornam com a narrativa pretendida. Em ambos os casos, não fez o trabalho decentemente.
3. Dos R$ 1,8 bi, R$ 632 milhões foram gastos pelo Ministério da Defesa, R$ 60 milhões pelo Ministério da Educação e, em um distante terceiro lugar, R$ 2 milhões pelo Ministério da Justiça. Somando esses 3 primeiros ministérios, temos R$ 694 milhões. Faltam, grosso modo, R$ 1,1 bilhão, que devem ter sido gastos pelos outros ministérios e autarquias. Ocorre que todos esses entes devem ter gasto menos do que os R$ 2 milhões gastos pelo Ministério da Justiça, o 3o lugar. Se assim for, deveríamos ter pelo menos 550 ministérios e autarquias para completar os R$ 1,1 bi que faltam. Temos tudo isso de ministérios e autarquias? A conta não fecha.
4. Na matéria, o Ministério da Defesa informa que os gastos com alimentos se destinam a manter alimentação saudável para uma tropa de 370 mil soldados que, ao contrário de outros servidores, não fizeram home office. Se isso for verdade, temos um gasto mensal de R$ 142/pessoa/mês em alimentos. Não parece muito para fornecer 3 refeições diárias. Os gastos do ministério da Educação, apesar de não serem foco da matéria, devem se justificar pelo fornecimento de alimentos para as universidades federais. Mas esta é apenas uma suposição minha.
Bem, mas tudo isso é irrelevante. O que importa, de fato, é a narrativa política. Quando Bolsonaro tirou a foto comendo pão com leite condensado, havia ali uma narrativa: a do presidente “gente como a gente”, tiozão, bruto mas simpático, que não tem papas na língua quando é pra dizer a verdade sobre as coisas. Tudo isso está sintetizado naquela foto. A foto era uma narrativa. E ele fez isso de maneira consciente.
Antes de continuar, vou fazer uma pequena digressão para fazer o meu ponto. Tem um pequeno livro da década de 50, que amo de paixão, chamado “A Lei de Parkinson”, em que o autor faz uma análise da vida corporativa. Em um dos capítulos, o autor analisa a dinâmica da tomada de decisão nas corporações. A tese é a seguinte: quanto mais complexo e caro for um projeto, menos atenção receberá dos tomadores de decisão. E vice-versa. Ele dá um exemplo: uma reunião para analisar 3 projetos. O primeiro é um reator nuclear no valor de US$ 10 milhões, o segundo é um projeto de cobertura para os automóveis dos funcionários no valor de US$ 3 mil e o terceiro é o tipo de café que vai ser servido na copa, no valor de US$ 100. O autor demonstra que 10% do tempo da reunião será gasto com o reator, enquanto 75% será gasto discutindo o cafezinho. Por que isso? Simples: porque as pessoas não conseguem entender a complexidade do reator e não compreendem o que sejam 10 milhões, mas todo mundo entende o que é um cafezinho, sabe quanto custa no supermercado e compreende a grandeza de 100 dólares.
Este exemplo me ocorreu ao ver o impacto da informação: R$ 15 milhões em leite condensado! Todo mundo sabe quanto custa uma lata de leite condensado, sabe quanto leite condensado vai numa receita de pudim. É muito mais fácil lidar com essa informação do que, por exemplo, com o gasto de R$36 milhões anuais só para MANTER PARADO o canteiro de obras da usina nuclear Angra 3. É dinheiro do mesmo jeito, mas a primeira informação tem uma narrativa compreensível por trás.
Ao tirar uma foto com a lata de leite condensado, Bolsonaro criou uma narrativa. Ao estampar os gastos com leite condensado do governo federal, o site Metrópoles deu um ipon na narrativa de Bolsonaro, colocando um preço na suposta simplicidade do presidente.
Pode até ser (é até bem provável) que haja ineficiências e corrupção nesse processo de compras do governo. Ineficiências e corrupção que não são de hoje, diga-se de passagem. Se a reportagem servir para uma auditoria séria por parte do TCU, já terá sido útil. Mas o ponto principal, claro, não foi apontar irregularidades. Foi colocar em cheque a imagem de austeridade e integridade do governo Bolsonaro. Para tanto, utilizou-se da mesma figura usada pelo presidente. Neste ponto, a reportagem foi genial.
Aos que se incomodam com esse tipo de tática, uma mensagem de conforto: seu político de estimação também usa narrativas. A isso chamamos de política.
Vou iniciar este artigo com um disclaimer: não tenho nada contra os funcionários públicos. Pelo contrário. Reconheço a importância de todos em um sem número de funções essenciais para o bom funcionamento do Estado. Portanto, o que vai a seguir não deve ser interpretado, nem de longe, como um libelo contra o funcionalismo público. Trago apenas números.
A minha fonte principal de dados é o Atlas do Estado Brasileiro, do IPEA. Trata-se de uma radiografia bastante completa do funcionalismo público brasileiro, cobrindo o período de 1986 a 2017. Usei especificamente os dados de 2017 para fazer a análise que vai a seguir.
Vamos do geral para o particular.
Em 2017, os três níveis de governo (Federal, Estadual e Municipal) gastaram R$ 751 bilhões com funcionários públicos da ativa. Isto significou 10,7% do PIB daquele ano. Como a carga tributária é de aproximadamente 33% do PIB e o déficit primário daquele ano foi de aproximadamente 2% do PIB, temos um total de despesas gerais do governo equivalente a 35% do PIB. Portanto, a despesa com funcionários públicos nos três níveis de governo representou algo como 30% (10,7% de 35%) de todas as despesas públicas. É o segundo maior item de despesas, somente atrás da Previdência Social, que já foi objeto de reforma. Portanto, o próximo item da pauta de controle de despesas é a despesa com salários dos funcionários públicos.
Claro que, como pressuposto básico, assumimos que é necessário fazer algum ajuste nas contas públicas. Temos uma relação dívida/PIB caminhando para 100% (muito acima de nossos pares emergentes), produzimos um déficit primário da ordem de 3% do PIB e temos uma carga tributária de cerca de 1/3 do PIB, também muito acima de nossos pares emergentes. Estes números nos levam à conclusão de que precisamos ajustar as contas, a não ser que sejamos partidários da tese de que podemos nos endividar indefinidamente ou podemos rodar a maquininha de imprimir dinheiro sem limites (o que vem a dar na mesma). Se você é partidário dessas teses, este artigo não vai fazer muito sentido para você.
Voltemos ao fio da meada. Tivemos, em 2017, um gasto anual de R$ 751 bilhões com salários de funcionários públicos da ativa. Para decidir onde e como cortar, precisamos analisar como se distribui este gasto. O Atlas do Estado Brasileiro traz alguns dados relevantes, que usei para fazer os meus próprios cálculos. É isso que veremos em seguida.
A distribuição dos gastos com o funcionalismo público
De maneira geral, podemos dividir os gastos com funcionalismo nas três esferas governamentais (Federal, Estadual e Municipal) e entre os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Uma primeira abordagem para analisar os gastos com o funcionalismo é levantar o salário médio dos servidores. Afinal, parece ser intuitivo que atacar os salários mais altos é a forma mais eficiente de controlar os gastos, pois é nesses salários que, supostamente, estaria a maior gordura. A tabela 1, a seguir, mostra os salários mensais médios de 2017 já atualizados para 2019 pelo INPC:
Observe como os salários do poder Judiciário e da esfera Federal são muito maiores do que nas outras esferas e nos outros poderes. Uma crítica à reforma administrativa que foi enviada pelo governo para o Congresso é justamente a de não ter mexido com os supersalários do Judiciário.
Ocorre que a forma mais eficiente de cortar qualquer despesa é atacar as maiores despesas. Qualquer economia nas maiores despesas faz mais diferença do que se fossem feitos cortes nos menores itens de despesa. Os maiores salários estão no Judiciário. Mas será que este é o maior item de despesa? Não. A tabela 2 mostra o total gasto em cada nível de governo e em cada poder (estes números não estão no Atlas, eu calculei com base nos números do Atlas).
Observe como o grosso dos gastos encontra-se no poder Executivo (R$ 652,6 bilhões, representando cerca de 87% do gasto total). Isso acontece porque, mesmo tendo o nível salarial mais baixo entre os três poderes, o poder Executivo é o que tem, de longe, o maior número de funcionários públicos: são 10,7 milhões, representando 94% do total de 11,4 milhões de servidores em 2017, como podemos observar na Tabela 3.
E esse é o xis da questão. Enquanto os maiores salários estão no poder Judiciário e na esfera Federal, os maiores gastos, em valores absolutos, estão no poder Executivo e nas esferas Estadual e Municipal. Mesmo que conseguíssemos, por exemplo, cortar em 25% os salários do poder Judiciário nas esferas Federal e Estadual, teríamos uma economia anual de R$ 18 bilhões. Não é pouco, mas também não ajuda muito, em um déficit primário da ordem de R$ 200 bilhões por ano. Por outro lado, teríamos mais ou menos a mesma economia se conseguíssemos cortar os salários do poder Executivo nas três esferas de governo em algo como 2,8%.
Isso acontece porque a distribuição de riqueza no funcionalismo público segue mais ou menos o mesmo padrão do restante do Brasil: poucos ganham muito, e a maioria ganha uma miséria. Vamos pegar como exemplo os salários acima de R$ 20 mil/mês. No poder Executivo, apenas 0,1% dos funcionários públicos ganham acima deste valor nas três esferas de governo. No Legislativo, são 4,8%, enquanto no Judiciário são 12,5%. Em termos absolutos, o poder Executivo gasta R$ 5,5 bilhões/ano com esses salários, o Legislativo gasta outros R$ 5,5 bilhões/ano, enquanto o Judiciário gasta R$ 20 bilhões/ano. Portanto, o governo como um todo gasta R$ 31 bilhões/ano com salários acima de R$ 20 mil/mês, ou 4,1% do total dos gastos. Se conseguíssemos cortar em 25% esses salários, teríamos uma economia de apenas R$ 7,8 bilhões, a mesma economia que teríamos se cortássemos os salários abaixo de R$ 20 mil/mês em 1,1%.
Conclusão: mirar nos maiores salários é necessário, mas não suficiente
Mirar nos salários mais altos, nos privilegiados do setor público, é o equivalente a taxar grandes fortunas: funciona como efeito demonstração, mas tem efeito limitado sobre as contas públicas. Infelizmente, somos um país pobre, e se não taxarmos os pobres, ou não cortarmos os salários dos funcionários que ganham menos, não se tem o efeito pretendido.
Isso significa que não se deva mirar nos maiores salários? De maneira alguma! Politicamente, qualquer intervenção só funciona se houver um efeito demonstração. Os deputados, senadores e governantes deveriam começar cortando de seus próprios salários, e os magistrados com as maiores regalias deveriam ser os primeiros alvos de qualquer reforma administrativa. Mesmo que isso não signifique, como vimos, grande economia, demonstra para a grande massa dos funcionários públicos que a coisa é para todos e é para valer. Meu ponto aqui é que focar as reformas administrativas das três esferas do governo apenas nos maiores salários não funciona.
O Estado que queremos e o Estado pelo qual estamos dispostos a pagar
Os números acima mostram que o problema não está nos supersalários ou nos privilégios. O problema é mais embaixo: a grande massa dos funcionários públicos, aqueles que ganham menos e que prestam serviços diretamente à população, estes são os que representam os maiores gastos dos governos nas três esferas. A grande questão é que é fácil prometer o paraíso na Terra, mas pagar por isso é que são elas. Somos um país pobre, mas prometemos um Estado escandinavo para a população. É lógico que haja frustração, mesmo gastando 10,7% do PIB com salários de funcionários públicos (isso é só da ativa, não estou contando os aposentados).
A discussão de uma reforma administrativa passa pela discussão do Estado pelo qual podemos pagar. Para isso, é preciso, antes de mais nada, acabar com o mito de que, eliminando “penduricalhos” e acabando com os “marajás” do serviço público, os problemas estarão resolvidos. Não estarão. O grosso do gasto público se dá nos extratos inferiores, como vimos.
Já contribuímos com cerca de 1/3 do PIB em impostos. Trata-se de um nível somente inferior ao que se tem nos países nórdicos. E esta carga tributária não tem sido suficiente para pagar pelos serviços que demandamos do Estado. A solução é elevar ainda mais a carga tributária? Quem garante que a qualidade dos serviços do Estado melhorará simplesmente colocando mais dinheiro no sistema?
A questão não é se os funcionários públicos ganham muito ou pouco. A verdadeira questão é qual o tamanho do Estado pelo qual estamos dispostos a pagar. E aqui, vale a mesma lógica de um país pobre: o grosso da conta sempre vai recair sobre os pobres. Nunca esqueça esse fato.
Está mais do que na hora de acabar com o “me engana que eu gosto”
Encerro com o mesmo disclaimer que dei no início deste artigo: tenho o maior respeito pelos funcionários públicos e não quero usá-los como o bode expiatório dos problemas brasileiros. Meu único ponto neste artigo foi mostrar que, se queremos diminuir as despesas do Estado brasileiro (e essa é uma premissa importante), é preciso atacar a questão dos serviços que o Estado presta para a população e da remuneração dos funcionários públicos que prestam esses serviços. O fato é que os serviços demandados pela população não cabem no orçamento público, e alguém precisa dar essa má notícia.
Tenho consciência de que não se trata de assunto fácil, mas funcionários públicos de vários estados já estão sentindo na pele uma “reforma administrativa” não declarada, com o atraso sistemático de seus salários. Estamos vivendo um “me engana que eu gosto”, fazendo de conta que temos dinheiro para pagar os salários de todos. Não temos, e é melhor reconhecer este fato do que varrer a realidade para debaixo do tapete. O redimensionamento do Estado é a forma ordenada de resolver o problema. A maneira desordenada já conhecemos: inflação, que distribui para toda a população o ônus de uma conta que não tem como ser paga.