Vício de origem insanável

Se eu não tivesse lido uma reportagem ontem sobre o assunto, não teria notado que o Google havia colocado um discreto link em sua página inicial de buscas para um texto em que coloca a sua visão sobre o PL das Fake News. O link é discreto mesmo, precisa se esforçar para vê-lo.

A não ser que o relator do projeto, Orlando Silva, tenha informações sobre pagamento de mesada para deputados por parte do Google, no estilo Mensalão, talvez seja um pouco exagerada a expressão “nunca vi tanta sujeira política” usada pelo deputado.

O tal link foi suficiente para o ministro da Justiça, Flávio Dino, acionar a Secretaria Nacional do Consumidor, enquanto o senador Randolfe Rodrigues pede que o CADE (?!?) multe a empresa. Se os dois próceres do governo petista estão fazendo isso contra o Google sem lei alguma, imagine quando tiverem a faca, o queijo e a lei na mão.

O PL das Fake News pode ter toda a boa intenção do mundo, mas nasce com um vício de origem insanável: é patrocinada pelo governo do PT, um dos lados pela disputa do pós-verdade. Qual a confiabilidade que se pode ter nas intenções de um governo que cria um site de propaganda de si mesmo e chama a isso de “combate às fake news”?

Os grandes jornais publicaram editoriais a favor da aprovação do PL das Fake News, defendendo o seu modelo de negócios. Qual é exatamente o problema de o Google fazer o mesmo em sua página? Os deputados estão abertos à pressão da sociedade, como em todo regime democrático. Cada um, assim como cada cidadão, formará a sua opinião depois de expostos aos diversos pontos de vista. O chororô de Orlando Silva faz parte do jogo. Já a truculência de Flávio Dino e Randolfe Rodrigues, ameaçando uma empresa privada com a máquina do Estado pelo simples fato de externar sua opinião, mostra bem o ânimo desse pessoal.

A delicada questão da moderação de conteúdo nas redes

Entrevista com o relator do projeto das “fake news”, Orlando Silva. Não li o projeto, mas o deputado passa a impressão de que o seu núcleo consiste na responsabilização das redes sociais.

Há dois anos, escrevi um longo artigo intitulado “Redes Sociais e a busca do censor ideal”. Na época, estava ainda quente o debate sobre as eleições americanas e a invasão do Capitólio. O canal de Alan dos Santos havia sido derrubado pelo YouTube por difundir notícias de fraudes nas eleições, e a discussão era sobre o direito (ou o dever) de o YouTube fazer isso.

Naquele artigo, trago dois depoimentos, ambos coincidentes: o primeiro de Mark Zuckerberg e o segundo de Angela Merkel. Ambos concordam que os critérios de seleção de conteúdo deveriam ser do poder público e não de entidades privadas, que não teriam legitimidade para fazê-lo, principalmente quando se trata da arena política.

Não há aqui “absolutização” da liberdade de expressão. Crimes não são, obviamente, cobertos por esse direito. A questão é determinar quem será o árbitro para definir o que é ou não é crime. Na esfera jurídica, o juiz é esse árbitro que define se houve ou não crime. O que o projeto das fake news quer estabelecer, até onde pude depreender da entrevista do seu relator, é que as plataformas sejam transformadas em juízes de conteúdo, sob pena de elas mesmas serem consideradas criminosas.

Na verdade, as plataformas já fazem isso. Segundo seus termos de uso, não é permitida a postagem de conteúdos envolvendo pedofilia ou racismo, por exemplo. E há uma filtragem ativa, como demonstra a suspensão de Alan dos Santos dois anos atrás. O problema é que pedofilia é relativamente fácil de identificar. Já quando nos movemos para a arena política, a coisa fica mais nebulosa.

Orlando Silva afirma, por exemplo, que a convocação para o 8 de janeiro foi nitidamente uma incitação ao golpe de estado. Bem, essa é uma opinião do excelentíssimo deputado. Vendo as convocações, não me pareceu nada diferente das anteriores. O fato de ter descambado em violência não faz da convocação em si um ato golpista. Nessa linha, fico imaginando que as convocações para as manifestações contra Dilma também seriam taxadas de golpistas, dado que o impeachment, segundo o PT e seus aliados, foi um golpe. Quem vai definir o que é ou não é crime político? É correto exigir que as plataformas se envolvam nesse terreno pantanoso?

O problema da censura (esse é o nome) política é que não existe árbitro isento. Por isso, alguma dose de arbitrariedade sempre irá existir. A questão é qual o nível de arbitrariedade tolerável (se é que há algum nível tolerável) para que se protejam as instituições democráticas. Não se trata de uma discussão trivial, e as plataformas são o menor dos problemas.