Tratando o brasileiro como imbecil

Imposto Digital.

Imposto digital não é CPMF. Imposto digital é…

Até agora ninguém do governo veio a público para explicar o que seria o tal “imposto digital”, e como ele pode substituir impostos sobre folha de pagamento, IPI, Imposto de Renda, subsidiar o Renda Brasil, a lista de benesses não para de crescer.

Há uma confusão intencional aqui. Existe realmente uma discussão global sobre como taxar a economia digital. Empresas “que não estão em lugar algum”, como Google, Facebook, Amazon e outras do mundo virtual são um desafio para um sistema tributário baseado em jurisdição territorial. Os governos estão discutindo como taxar o consumo desses serviços.

Isso é uma coisa.

Outra coisa é um imposto “de base ampla” (como gosta de enfatizar Paulo Guedes) para financiar a felicidade geral da nação. Seu assessor especial Afif Domingos falou em arrecadação de R$ 120 bilhões/ano. Não se arrecada esse montante taxando os serviços do Google, Facebook etc. Obviamente não é isso. Insiste-se no termo “imposto digital” para confundir as coisas. Propositalmente. Não existe (pelo menos não foi divulgado) até o momento qual seria a base de tributação desse tal “imposto digital”.

A taxação das transações pela Internet já acontece. Pagamos ICMS e IPI sobre a compra de qualquer produto, seja este comprado em uma loja física ou na Amazon. Resta a transação em si, o pagamento sobre a transferência do dinheiro. Mas se isso for taxado somente para transações na Internet, todo o consumo migrará para as lojas físicas. Obviamente também não é disso que se trata.

Seria muito melhor para todos se Paulo Guedes parasse de tratar os brasileiros como imbecis. Jogasse aberto, dizendo exatamente o que quer, e não ficar se escondendo atrás de um palavreado que não significa nada. Ganharíamos tempo, uma mercadoria cada vez mais escassa na dramática situação fiscal brasileira.

Só avisando

“Parece que tem muita gente que não quer deixar suas digitais”.

“É maldade ou ignorância chamar novo imposto de CPMF”.

Estas são frases de Paulo Guedes, hoje, em audiência no Congresso, sobre o novo imposto que não é a CPMF.

Lula era mestre em cunhar frases que deslocavam a discussão do mérito da questão para o questionamento da moral de quem criticava. Quem não se lembra da acusação de que as pessoas “se incomodavam pelo pobre viajar de avião”, para desclassificar seus críticos?

Guedes precisa tomar cuidado para, no afã de emplacar sua agenda, não adotar métodos que não deram lá muito certo para o PT. Chamar quem é contra a CPMF de ladrão, ignorante ou maldoso, deixando de lado o mérito da questão, não é algo muito esperto a se fazer. Só avisando.

Linha vermelha

Um imposto sobre transações financeiras é o sonho de qualquer governante. Por que? Porque é um imposto insonegável, e sua alíquota pequenininha passa a impressão de ser um imposto inofensivo. Fica lá, escondido, ninguém nota. Só tem um problema: não é um imposto pequeno. Na verdade, é bem grande. Por ser cumulativo, soma-se em cada fase de uma cadeia de produção.

Consideremos um exemplo prosaico: um saco de arroz, vendido no supermercado. Vejamos: o supermercado paga a indústria de arroz, que paga o produtor de arroz, que paga o fabricante de fertilizantes, que paga o produtor dos insumos para a indústria de fertilizantes, que paga o produtor de petróleo, que paga a siderúrgica que produz o equipamento para tirar o petróleo, que paga o produtor de minério, que paga…E isso porque fui em uma vertical só. Não considerei o transporte, as embalagens e outros vias de produção laterais. Não é à toa que a CPMF tem um grande poder arrecadatório com uma pequena alíquota.

Como eu ia dizendo, a CPMF é o sonho de todo governo, pois deixa o imposto escondido. Nem parece que você está sustentando a máquina. Dizem que a alíquota do IVA proposto pela reforma tributária da Câmara precisaria ser de algo em torno de 25%. Um horror. Pois bem, é esse horror que estão tentando esconder de você, ao propor a CPMF.

Todo mundo tem uma linha vermelha. Eu tenho duas: o imposto sindical e a CPMF. Qualquer político que contribua para a volta de um ou de outro não tem o meu voto.

Mais uma vez, a CPMF!

Quando esse assunto da CPMF veio a público há alguns meses, Bolsonaro não titubeou: disse que o novo imposto não era pauta do governo, e pediu a cabeça do pai da ideia, o secretário Marcos Cintra. A repercussão havia sido péssima, pois a não criação de novos impostos era uma das pedras angulares da campanha do candidato do PSL, e a recriação da CPMF era o símbolo máximo de um novo imposto. Na época, bolsonaristas saíram correndo para dizer que era tudo intriga da imprensa, que o governo jamais patrocinaria uma coisa dessas. A demissão de Marcos Cintra foi a comprovação dessa posição.

Aos poucos, no entanto, foi ficando claro que o pai da ideia não era Cintra, mas o próprio Guedes. Ele insiste na criação do novo imposto para “desonerar a folha de pagamentos”. Como diz o presidente do BC na matéria abaixo, “o imposto não é um sonho, mas precisa ver para o quê está sendo criado”. Lembra a pregação de Adib Jatene pela criação do primeiro IPMF (Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras) para financiar a saúde. O fim era muito nobre, e justificava a criação do imposto. O presidente do BC certamente teria outra opinião se ainda fosse um executivo do mercado financeiro. Mas resolveu tocar o samba de uma CPMF só em que se transformou a reforma tributária defendida pelo governo Bolsonaro.

Ok, desta vez não se trata de criar novos gastos, mas de substituir um imposto por outro, subsidiando a criação de empregos. Menos mal. Mas só existe a CPMF como solução para isso? Não seria possível aumentar alíquotas de impostos já existentes? Além disso, a folha de pagamentos das empresas é onerada porque são muitos os “direitos” dos trabalhadores. Ao criar a CPMF, o governo estará subsidiando esses direitos (ou os lucros dos empresários, pois nada garante que mais empregos serão criados) através da oneração de indivíduos que não receberão esses benefícios. Trata-se de um imposto, além de tudo, perverso do ponto de vista distributivo. Os desdentados do Brasil, mais uma vez, estarão subsidiando quem tem carteira assinada e/ou seus patrões. E para quem pensa que a CPMF afeta só quem tem conta bancária, pense de novo.

A CPMF é aquele imposto que parece inocente, não dói quase nada se comparado a outros impostos com alíquotas muito maiores. Mas é exatamente este o problema. Assim como a gordura vai obstruindo silenciosamente os vasos sanguíneos, a CPMF vai obstruindo a livre circulação do dinheiro pelo sistema financeiro, que é o sistema circulatório da atividade econômica. Com a liquidez do sistema comprometida, a atividade vai perdendo o seu vigor, pois a mobilização de capitais para financiar a atividade fica mais difícil. Não à toa, a Comissão Europeia estudou esse assunto durante vários anos após a crise de 2008, como uma forma de fazer o sistema financeiro financiar uma rede de proteção contra crises daquele tipo, e não chegou em um desenho que não fizesse a emenda pior que o soneto. A CPMF seria uma (mais uma!) jabuticaba bem brasileira.

Há dois projetos de reforma tributária no Congresso, uma na Câmara e outra no Senado. E há a CPMF do Paulo Guedes, contra promessa de campanha de seu chefe. Vamos ver qual delas a sociedade brasileira quer.

As virtudes do câmbio flutuante

O câmbio flutuante é uma benção.

O câmbio é a melhor medida da saúde econômica de um país em relação ao mundo. Ele traduz, em um único preço, as diversas e intrincadas relações econômicas e financeiras que um país têm em relação aos seus pares globais.

Nem sempre foi assim.

Até a década de 70, o câmbio era administrado no mundo inteiro. Com o fim do padrão-ouro nos EUA, os diversos países foram forçados a deixar suas moedas livres para flutuar. Aqui no Brasil, a nossa experiência de câmbio flutuante começa somente em janeiro de 1999.Com um câmbio administrado, as pressões sobre a economia se acumulam, afetando balanço de pagamentos e dívida pública, até que, não tendo mais como segurar a “cotação administrada”, tudo explode. Vimos essa novela várias vezes na história econômica brasileira.

Além de evitar o acúmulo de pressões, o câmbio flutuante tem a grande virtude de sinalizar que algo não vai bem no país em relação aos seus pares. Trata-se de um termômetro: se valoriza, significa que estamos ficando mais ricos em relação aos outros países. Se desvaloriza, significa que estamos ficando mais pobres.

Alguns podem dizer que o mercado de câmbio não passa de um parque de diversões para especuladores. Sim, também. Mas também existem empresas que precisam fazer o hedge de suas importações, e famílias que viajam para o exterior. E, mais que tudo, existe o Banco Central com mais de US$300 bi de reservas, pronto a vender dólar para quem quiser. Trata-se de um inibidor formidável para quem quer especular contra o Real. E, mesmo assim, a moeda ruma para R$6 por dólar.

Como eu estava dizendo, o câmbio flutuante é uma benção. Já ficou para a história a frase de Paulo Guedes, afirmando que “se o dólar for a R$5, é sinal de que estou fazendo muita bobagem”. E a R$6? Há que se conceder que Guedes e sua equipe vem remando contra a marcha da insensatez. As bobagens estão sendo feitas em várias partes dos 3 poderes.

Pelo menos, ao contrário de outras crises no passado, temos o câmbio flutuante que serve como o canário na mina. Ninguém vai poder dizer que não sabia que algo muito errado estava sendo feito.

A história se repete

Uma História do Brasil de bolso.

Na década de 50, o Estado brasileiro era capaz de construir uma cidade do nada. E assim o fez. Brasília nasceu às custas de endividamento e emissão de moeda. Resultado: inflação descontrolada e crise da dívida na década de 60, e a queda do governo alguns anos depois.

Na década de 70, o Estado brasileiro não era mais capaz de construir cidades, mas ainda podia fazer grandes obras. E assim o fez. Itaipu, Transamazônica e outras obras gigantescas nasceram às custas de endividamento externo. Resultado: inflação e crise da dívida na década de 80, precipitando o fim do regime militar.

Na década 2000, o Estado brasileiro já não podia mais construir cidades ou grandes obras. Mas ainda era capaz de capitalizar seu banco de desenvolvimento (uma forma de driblar as agruras de um orçamento limitado), e alavancar o retorno de acionistas privados em grandes obras. Assim nasceram Belo Monte, Sete Brasil e os campeões nacionais. Resultado: inflação e descontrole das contas públicas na década de 10, precipitando o fim do governo.

Aprendemos?

Não.

Em banho-maria

Antes de comentar a declaração de Maia, vamos desenhar o contexto.

O Estado brasileiro gera déficit fiscal primário desde 2014, e ainda vai gerar por mais uns dois anos, pelo menos. Serão quase 10 anos em que o Estado brasileiro não cabe dentro dos impostos arrecadados, tendo que se endividar para pagar suas contas. Isso, com uma carga tributária equivalente a 35% do PIB, a maior, de longe, entre os países emergentes, e comparável a países ricos, como Reino Unido e Alemanha.

Durante esse período, a dívida pública saiu de 55% do PIB (que já era de longe a maior dívida entre os países emergentes) para quase 80% do PIB, nível de dívida comparável ao de países muito mais desenvolvidos, com taxas de juros muito menores. A dívida só não continuou aumentando porque aprovamos uma medida extrema, o Teto de Gastos, o BNDES devolveu uma parte do dinheiro emprestado e conseguimos diminuir as taxas de juros após uma política monetária responsável, que domou a inflação. Mesmo assim, 80% do PIB é uma dívida de gente grande.

Agora, a fala de Maia. Como um liberal responsável, ele não defende o endividamento irresponsável. Não. Ele defende a continuidade das reformas justamente para abrir espaço no orçamento para o investimento estatal. Segundo ele, só com o investimento privado, o Brasil não vai a lugar algum.

Segundo o pensamento de Maia, não há espaço para a redução da carga tributária. O Estado precisa gastar o dinheiro liberado pelas reformas para investir. O pibinho seria uma evidência de como o investimento estatal é essencial para o Brasil crescer. Não lhe ocorre que, com o Estado consumindo a poupança nacional (lembre-se, geramos déficit primário há 6 anos), com uma carga tributária escorchante e um nightmare tributário e jurídico sem paralelo no mundo, pedir investimento privado é quase uma ato de fé. Mas não, o problema é que o “investimento privado não resolve”. Bem ou mal, Maia representa a banda mais liberal do Congresso, aquela que não demoniza a iniciativa privada. Se ele pensa desse jeito, imagine a média do Congresso…

Ontem, ao ser perguntado sobre o pibinho pelos jornalistas, Bolsonaro soprou no ouvido do humorista carioca a resposta: Posto Ipiranga. Para bom entendedor, meia palavra basta: Paulo Guedes é o fiador dessa política liberal, que busca tirar o Estado de atividades produtivas para abrir espaço ao investimento privado. O pibinho, se continuar (e, ao que tudo indica, vai continuar) será cobrado politicamente do ministro da Economia por um presidente que nunca teve convicções liberais. Ontem, Bolsonaro colocou o Posto Ipiranga no banho-maria. E vai aumentar a temperatura da panela daqui para frente.

A CPMF que não é CPMF

“Não é CPMF, é só um imposto sobre transações”.

O Guedes podia implementar logo essa p… desse imposto, já que não tem capacidade de pensar em nada melhor mesmo. Mas pelo menos podia parar de menosprezar a inteligência alheia.