A ideia única

Durante a campanha eleitoral, o tema CPMF veio à baila por meio de uma imprudente declaração de Guedes. Bolsonaro veio correndo apagar o incêndio e ficou o dito pelo não dito. Foi apenas um “mal-entendido”, disseram todos.

Eleição ganha, montagem de governo, Guedes chama para a secretaria da Receita o inefável Marcos Cintra. Cintra passou sua vida inteira (não é força de expressão) como professor e parlamentar defendendo uma ideia única: o imposto único. O objetivo era óbvio, só não via quem não queria ver.

Passada a reforma da Previdência, começam as discussões da Tributária. Do governo se esperava um projeto inteiro e coerente, como foi o da reforma da previdência. O que tivemos, no entanto, foram balões de ensaio sobre a “nova CPMF”, fantasiada com vários eufemismos diferentes. O imposto único se tornou a ideia única do governo.

Bolsonaro, que de bobo não tem nada, não esperou a saída do hospital para apagar mais esse incêndio. Acabou a história? Não. Em entrevista à Jovem Pan ontem, temos um Guedes lamuriento, que ainda se mostra inconformado com o enterro de sua ideia única. Parece que era aquilo ou nada.

Paulo Guedes é idolatrado pelo mercado. Não é à toa. Trata-se de um economista liberal-raiz, cujas palavras são normalmente música aos ouvidos do mercado. Mas no caso da CPMF, não li uma mísera análise de economista sério defendendo essa estrovenga. Trata-se daquelas idiossincrasias inexplicáveis.

Agora, é melhor o governo correr se quiser algum protagonismo na reforma Tributária. No caso da reforma da Previdência, o governo teve pelo menos o mérito de enviar uma proposta coerente e ousada ao Congresso, apesar de depois ter abandonado a tramitação à própria sorte. No caso da Tributária, corre o risco de nem proposta ter. Será uma pura construção do Congresso. Certamente, uma novidade na democracia brasileira.

A CPMF derruba o secretário da Receita

A única parte que não encaixa nessa história da demissão do Cintra é que o seu chefe imediato, Paulo Guedes, parecia genuinamente convencido de que a única saída para desonerar a folha de pagamentos era a criação da CPMF. Guedes chegou a falar que os congressistas deveriam escolher entre “o imposto ou o desemprego”, daquele jeitinho meigo dele de convencer as plateias.

Do jeito que Cintra foi demitido, parece que ele estava sozinho nessa, atropelando tudo e todos, inclusive o seu próprio chefe imediato.

Claro, a se tomar a valor de face o que Bolsonaro diz em seu tuíte, Cintra foi demitido como uma demonstração, digamos, em três dimensões, de que a CPMF está enterrada. Uma imagem vale mais do que mil palavras, diz o sábio ditado. A cabeça cortada do secretário da Receita exibida na entrada do ministério da Economia vale mais do que mil desmentidos. A única ideia que Cintra teve na vida foi o imposto único. Seu escalpo é o escalpo da CPMF.

Além disso tudo, Cintra não mostrou pulso no episódio das multas contra parentes de Bolsonaro. Sua cabeça já estava a prêmio. A fome com a vontade de comer se juntaram harmonicamente, no caso.

Sobra o enigma de Guedes. Ele estava genuinamente convencido sobre a CPMF. Mas prevaleceu a leitura política de Bolsonaro: a CPMF seria de tal forma um estelionato eleitoral, que ficou claro que não havia como banca-la. Guedes preferiu enfiar o rabo entre as pernas a confrontar o chefe, em uma demonstração clara sobre quem manda em quem no Planalto.

CPMF ou desemprego

Na semana passada, escrevi aqui que a substituição do imposto patronal para o INSS dificilmente seria transformado em novos empregos. Para que isso acontecesse, seria necessário que os empresários se animassem a aumentar investimentos, o que está longe de ser um destino óbvio para o dinheiro poupado. Provavelmente, esse dinheiro seria usado para aumentar os lucros das empresas.

Claudio Adilson, economista que respeito muito, afirma que o dinheiro da contribuição previdenciária patronal poderia também ser usado para aumentar salários e/ou formalizar o emprego de quem já está empregado. Verdade, ainda que eu não veja muito porque o empresário iria aumentar a remuneração em um ambiente com 11% de desemprego. Na parte superior da pirâmide até pode ser, mas, de maneira generalizada, parece pouco provável.

De qualquer forma, fico feliz de ter escrito antes o que um dos melhores economistas do país escreve hoje: reduzir ou eliminar o imposto previdenciário patronal não irá aumentar o emprego. Não nas atuais condições do mercado de trabalho.

Portanto, a dicotomia “CPMF x desemprego” é só um arroubo de retórica por parte do ministro da Economia. Paulo Guedes precisa tomar cuidado ao usar expressões fortes, politicamente carregadas, para defender suas posições. Ele teve muito sucesso ao fazer isso durante a tramitação da reforma da Previdência, ao usar a imagem do avião que está caindo. No entanto ao abusar desse tipo de retórica em temas nos quais claramente há exagero e má teoria econômica, o ministro corre o risco de perder credibilidade junto aos congressistas, de quem depende para seguir em frente com os projetos da pasta. Como dizia minha avó, quem fala muito dá bom dia a cavalo.

Os pais da reforma

379 votos para uma reforma impopular como a da Previdência não é para qualquer um.

Filho bonito tem muitos pais e, quem diria, a Reforma da Previdência se transformou em um filho lindo, disputadíssimo.

Afinal, quem são os pais da reforma?

Temer é o primeiro deles. Ao lado de outras reformas importantíssimas, o governo Temer foi o primeiro a propor uma reforma abrangente depois de quase 20 anos após a última, no governo FHC. Foi dado o início de todo um trabalho de convencimento da opinião pública, e a reforma teria sido aprovada não fosse o escândalo conhecido como “Joesley Day”.

O segundo pai é a dupla Bolsonaro/Guedes, que tiveram a iniciativa de enviar a proposta de uma reforma para o Congresso. Apesar de poderem ter utilizado a reforma de Temer, optaram pelo caminho mais arriscado de enviar um projeto totalmente novo, muito mais ambicioso. Conseguiram.

O terceiro pai é Rodrigo Maia. Ele assumiu para si a tarefa de articular os apoios que terminaram na acachapante votação de hoje. Não há dúvida de que, se não fosse o empenho de Maia, que era o único a afirmar ser possível votar a reforma antes do recesso, essa proposta não teria saído do lugar.

O Congresso brasileiro é o quarto pai dessa reforma. É difícil imaginar que uma reforma tão impopular tenha sido aprovada por “interesses menores”. Posso estar sendo ingênuo, mas acredito que a maioria dos deputados, neste caso bem específico, estava realmente convencida de que precisávamos evitar o precipício. Não aprovar a reforma seria entregar o país de volta ao PT, o que não interessa a ninguém, a não ser aos próprios petistas.

Por fim, o quinto pai dessa reforma são todos os técnicos que trabalharam na proposta e no convencimento dos congressistas e da opinião pública, entre os quais destaco Paulo Tafner e Pedro Fernando Nery. Mas há muitos outros, que trabalharam no governo Temer e trabalham no governo Bolsonaro, sem os quais não teria sido possível esta aprovação.

Quase 74% do Congresso votando a favor da Reforma da Previdência, que é uma das reformas mais impopulares em qualquer lugar do mundo. Só no Brasil.

Cada um no seu quadrado

A decisão sobre depósitos compulsórios faz parte do arsenal de política monetária, assim como a decisão sobre o nível da taxa básica de juros. Em um regime de Banco Central independente, decisões sobre essas duas variáveis cabe exclusivamente ao BC.

Imagine o Deus nos acuda se fosse Mantega a anunciar diminuição de R$100 bi nos compulsórios. Mas como Guedes “respeita” a independência do BC, está tudo bem. Como dizia minha vó, faz a fama e deita-te na cama.

Regime de capitalização

O regime de capitalização já existe: chama-se PGBL. Neste instrumento, o trabalhador tem um incentivo fiscal para poupar em prazos mais longos. Temos, portanto, um sistema híbrido: para aposentadorias de até 5 salários mínimos, o sistema de repartição do INSS. Acima disso, a poupança individual em PGBLs. Não é isso que o Paulo Guedes quer?

Para que o atual sistema fosse realmente um substituto do regime de capitalização, seria necessário mudar o formato do PGBL: a liquidez precisaria obedecer regras muito mais rígidas do que os atuais 60 dias de carência. Em fundos de pensão fechados, o indivíduo somente tem acesso à sua conta se sair do emprego e, mesmo assim, se cumprir certos prazos. O grande segredo da poupança previdenciária é dificultar ao máximo o acesso ao dinheiro. O acesso ao PGBL poderia, por exemplo, estar atrelado ao momento da aposentadoria oficial, pelo INSS.

Obviamente, sob essas condições, o volume de recursos que temos hoje na indústria de PGBLs seria muito menor. As pessoas preferem liquidez, ainda que não tenham planos para o dinheiro. Ainda mais em um país instável como o Brasil.

O que Paulo Guedes quer é forçar essa poupança de longo prazo. Ao invés de dar murro em ponta de faca, tentando convencer os congressistas de algo que eles não entendem, talvez uma reengenharia da atual indústria de PGBLs, nos moldes do 401-k americano, pudesse ser um substituto aceitável.

O BPC e a mente humana

Já escrevi sobre isso aqui, e o ministro Paulo Guedes, que não é bobo, sabe como funciona a mente humana.

Colocado diante da possibilidade de receber antes um benefício, é óbvio que a pessoa optará por isso, mesmo que seja um benefício menor. O raciocínio é simples: sabe-se lá se vou estar vivo daqui a 5 anos, quero receber agora.

Ao tornar a regra opcional, Paulo Guedes, na prática, terá a mesmo efeito do que se a regra fosse obrigatória. Gênio.

A boa e velha articulação política

O funcionário de Bolsonaro, Paulo Guedes, entrou no jogo da Velha Política.

Bolsonaro tem três alternativas:

1) Demite Guedes, mostrando quem realmente manda.

2) Assume a paternidade da ideia, inventando uma estorinha qualquer do tipo “Guedes terá um diálogo republicano com os parlamentares”. Em outras palavras, reconhece que “articulação política” pode ter outro sentido do que as malas de dinheiro do Gedel.

ou

3) Faz cara de paisagem, continua fazendo seu espetáculo no Twitter para sua plateia cativa e deixa o trabalho sujo para o seu funcionário. No melhor modo “eu pago meu despachante para conseguir as coisas, não me interessa como ele consegue”.

Vamos ver.

Guedices

O mercado financeiro era “alckmista” nas eleições porque gosta de ganhar os juros da dívida pública na maciota, segundo Paulo Guedes.

Guedes sabe muito bem que o mercado financeiro era alckmista porque avaliava que Alckmin teria mais convicção e habilidade política para aprovar a reforma da Previdência no Congresso, que é o que realmente vai diminuir a dívida pública no longo prazo. Por enquanto, com suas declarações desastradas e sua falta de foco na reforma, Bolsonaro vai dando razão à Faria Lima. Alckmin teria menos convicção para tocar a agenda de privatizações? Bem, o atual governo já disse que Petrobras, Caixa e Banco do Brasil são imexíveis. E mesmo coisas mais simples, como o IPO da asset do BB, esbarram em “problemas”.

Por enquanto, a agenda liberal do “único governo liberal da história do Brasil” se resume à rodada de concessões de aeroportos, privatização da Eletrobrás e leilão do pré-sal. Toda ela herdada do governo Temer.

O governo tem menos de 100 dias, é verdade, está ainda se organizando, é injusto cobrar alguma coisa. Vamos ver o que Bolsonaro e Guedes entregarão em quatro anos. Guedes sabe que a Faria Lima aplaudirá de pé se conseguirem fazer metade do que prometeram. Mas, para isso, é preciso começar a trabalhar mais e falar menos.