Tudo o que um governo populista quer ouvir

Tenho até uma certa vergonha do que vou escrever a seguir. Afinal, quem sou eu na fila do pão para ensinar algo a André Lara Resende, um dos pais do Plano Real (como não se cansam de nos lembrar os jornalistas que pretendem repisar as supostas credenciais ortodoxas do economista), ou a Pedro Cafardo, um dos criadores do maior jornal de finanças do país, o Valor Econômico. É muita pretensão da minha parte, eu sei. Certamente me escapa algum detalhe que mentes mais limitadas como a minha não conseguem alcançar. Quem sabe esse pequeno post chegue a algum deles, e eles possam, assim, nos iluminar com uma explicação convincente sobre o que vai a seguir.

A questão é a seguinte: anteontem, André Lara Resende escreveu artigo no Valor, afirmando que é muita hipocrisia (não lembro se usou essa palavra, mas o sentido é este) reclamar da PEC da gastança e, ao mesmo tempo, defender os gastos com juros. Ambos seriam gastos ”obrigatórios”, um para resgatar a dívida pública e o outro para resgatar a dívida social. Além disso, e esse ponto é chave, os gastos com juros (repito, muito maiores do que a PEC da gastança) seriam tão inflacionários quanto os gastos da PEC, pois aumentariam a demanda agregada, razão pela qual o aumento dos juros por parte do BC seria contraproducente para combater a inflação.

Pedro Cafardo, em seu artigo de ontem, compra a tese e dá números: o governo pagou R$ 1,96 trilhões entre juros e amortizações da dívida, o que representaria quase metade do orçamento federal. Para deixar claro o tamanho da ”gastança” com juros, Cafardo cita a segunda maior despesa do governo, a Previdência, que representa cerca de 20% do orçamento.

Há aqui uma confusão tão grande, que chego a pensar se não seria de caso pensado. Vejamos.

Comecemos pelos números trazidos pelo jornalista. Em 2021, o governo “gastou” R$ 1,96 trilhões com juros e amortizações da dívida. Para começar, esses conceitos são muito diferentes.

A amortização é a devolução do principal da dívida. Você empresta R$ 1.000 reais para o governo, o governo gasta esse dinheiro e, depois de algum tempo, devolve esse dinheiro para você. Contabilizar essa devolução como um gasto significa dizer que o governo gastou o dinheiro duas vezes: a primeira quando recebeu o dinheiro e a segunda quando pagou a dívida. Obviamente não faz sentido.

Já os juros (serviço da dívida), esses sim são despesa do governo. Talvez por ser um dos pais do Plano Real e não apenas um dos criadores do Valor, André Lara, pelo menos, não cai nesse erro básico. Em seu artigo, ele foca nas despesas adicionais com juros do governo, devidas ao aumento da taxa Selic. E essas despesas seriam inflacionárias, pois pressionariam a demanda agregada.

O que nos dizem os números? Vamos usar o ano de 2021, que foi o exemplo dado pelo jornalista. Segundo o Portal da Transparência, dos R$ 1,91 trilhões de juros e amortizações pagos pelo governo (e não R$1,96 trilhões, como citado pelo jornalista), R$ 1,36 trilhões foram de amortizações e R$ 0,55 trilhões foram de juros. Portanto, apenas esse último montante seria realmente “despesa” do governo.

No entanto, e aqui está a parte mais importante do post, Cafardo afirma que a dívida pública, “apesar” de todos esses pagamentos, aumentou em R$ 700 bilhões em 2021! Ora, se foram pagos em juros R$ 550 bilhões, isso significa que não só esses juros voltaram para o Tesouro, como o Tesouro sorveu R$ 150 bilhões adicionais dos poupadores!

Vou repetir o raciocínio para quem se perdeu. Imagine que você deve R$7, sendo que R$2 vencem neste ano. Se você pagasse esses R$2, sua dívida cairia para R$5, certo? Mas você não paga, você refinancia, ou seja, toma emprestado de novo. Sua dívida permanece em R$7. Mas, além disso, dessa dívida de R$7, você deve juros no valor de R$1. Você também não paga esses juros, você pede dinheiro emprestado para pagar. Sua dívida passa a ser de R$8. Além disso, você precisa gastar adicionalmente R$0,50 sem ter esse dinheiro e, portanto, precisa tomar emprestado mais R$0,50. Sua dívida vai a R$8,50. Portanto, desses R$8,50, R$7 são dívida antiga (das quais você refinanciou R$2 neste ano) e R$1,50 é dívida nova, sendo R$1 dos juros acumulados e R$0,50 de despesas novas. Voltando aos números: do R$1,91 tri, R$1,36 tri é dívida antiga refinanciada e R$0,55 tri de juros não pagos. Se os juros tivessem sido pagos, a dívida ficaria constante. Como não foram, a dívida teria aumentado em R$0,55 tri. Como aumentou em R$0,7 tri, temos que o governo gastou R$0,15 tri adicionais.

Note que, de todos esses “gastos”, nada, absolutamente nada, é “gasto dos rentistas”. O dinheiro volta todo, e mais um pouco, para o próprio governo. É este o “gastador”, o “impulsionador da demanda”. As amortizações e os juros pagos são transformados em títulos públicos e encarteirados pelos rentistas, que não podem pagar comida ou viagens com títulos públicos. O dinheiro dos rentistas (a dívida pública) já foi gasto no passado pelo governo. Os únicos gastos realmente adicionais em 2021 foram os R$150 bilhões, que se transformaram em dívida que deverá ser paga (ou rolada) no futuro. Portanto, se tem alguém aumentando a demanda agregada é o governo, não os “rentistas”. O dinheiro destes está preso, na forma de títulos públicos.

Mas a parte mais assustadora do artigo de Pedro Cafardo não é a completa ignorância sobre esses fatos simples. O que mais assusta (mas não surpreende) é a afirmação de que Haddad está longe de discordar de Lara Resende.

Como o BC é independente, não haverá como, por vias normais, influenciar o seu trabalho. No entanto, como já vimos, o Congresso aprova PECs como se troca de camisa, a depender da recompensa. Além disso, o mandato de Roberto Campos termina no fim de 2024. Portanto, não se pode descartar alguém de um perfil mais, digamos, alinhado ao de Lara Resende (quem sabe o próprio) a partir de 2025 no comando do BC. Por fim, a meta de inflação parece muito apertada para um governo que não vê “um pouco mais de inflação” como um problema.

O artigo de André Lara Resende será lido, no futuro, como a sua carta de apresentação para o emprego de banqueiro central alinhado com o governo. Está lá tudo o que um governo populista quer ouvir.

Discutindo a relação

A parte mais divertida das análises de economistas da chamada “escola desenvolvimentista” são as justificativas de porque determinada política econômica não funcionou como o previsto. O jornalista Pedro Cafardo, em sua coluna de hoje, nos brinda com um desses momentos.

Cafardo parte de uma dissertação de mestrado em sociologia (!) para descrever o que deu ruim na relação entre o setor industrial e um governo que, supostamente, patrocinou toda a agenda desenvolvimentista. Segundo a coluna, a participação da indústria no PIB era de 16,9% em 2003, caindo para 11,7% em 2016. Ou seja, a indústria continuou a encolher durante os governos do PT, mesmo com todos os incentivos “corretos”.

O diagnóstico dos industriais, levantado pela dissertação, é que de nada adianta incentivos se os juros e o câmbio estão “errados”. Juros altos e câmbio apreciado neutralizariam a “política industrial”, tornando-a inócua.

A parte mais, digamos, pitoresca da análise está na avaliação de que, talvez, os empresários industriais, por serem também rentistas na pessoa física, não se posicionaram contra os juros altos. Ou seja, haveria um conluio entre os industriais e o setor financeiro para manter os juros altos e, assim, matar a indústria. Essa vai para a minha caderneta.

Há um vício de origem em toda essa análise: o de que juros e câmbio podem ser determinados discricionariamente pelo governo. Só não o faz porque o setor financeiro domina tudo e falta “força e coragem” (no dizer do bravo colunista) ao setor industrial para impor a agenda do desenvolvimento.

Juros e câmbio são o preço do dinheiro. A taxa de juros é o preço do dinheiro para as transações domésticas, enquanto o câmbio é o preço do dinheiro para as transações com o exterior. Ambos os preços são formados pelas expectativas dos agentes econômicos com relação ao que o governo, que é o monopolista da emissão de moeda, vai fazer. Quanto mais o governo não for confiável e sinalizar que não respeita a própria moeda, mais cara fica a mercadoria.

No caso específico dos incentivos à indústria, todos eles, de alguma maneira, pesam sobre o orçamento público, o que força os juros para cima. A esperança dos desenvolvimentistas é que incentivos localizados em “setores dinâmicos” da economia podem impulsionar o crescimento econômico, aumentando a arrecadação e mais do que compensando o custo dessas políticas. Já vimos, nos governos do PT, principalmente durante a gestão Dilma Rousseff, que este moto-perpétuo econômico ainda não foi inventado.

Se o governo tentasse, artificialmente, manter os juros baixos e o câmbio depreciado, o resultado seria mais inflação, o que não é um equilíbrio sustentável a longo prazo. Aliás, qualquer controle artificial de preços leva a distorções que, mais cedo ou mais tarde, precisam ser corrigidos. Controlar juros e câmbio são, em última análise, controle de preços. Não se trata de “força e coragem”, mas de “oferta e demanda”.

A coluna acerta apenas quando afirma que essa discussão ganha importância na medida em que o PT pode voltar ao poder no ano que vem. De fato, todas as declarações de Lula, até o momento, apontam para os mesmos erros de política econômica que marcaram as gestões do PT até 2016. Pelo visto, o chão é o limite para a participação da indústria no PIB.

Mistificações

Pedro Cafardo, editor-executivo (!) do maior jornal de finanças e economia do país, comete mais um artigo inacreditável hoje no Valor Econômico.

O colunista é saudosista do tempo em que os industriais “tinham voz”, na pessoa de Antônio Ermírio de Moraes. Ou seja, o tempo em que o lobby da indústria funcionava, e arrancava do governo benefícios subtraídos do restante da sociedade. O novo programa de incentivo à indústria automobilística deve ser somente um acidente de percurso nessa “falta de apoio governamental à indústria”.

Cafardo também chora o “encolhimento absurdo do BNDES”. Faltou dizer que nos tempos áureos de Antônio Ermírio, o balanço do BNDES raramente representava mais de 1% do PIB. Esta participação foi elevada a quase 10% do PIB nos anos Dilma, e o que colhemos foi a maior recessão da história brasileira. Hoje, essa participação está em cerca de 4% do PIB, ainda quatro vezes mais do que nos tempos de Antônio Ermírio. E o colunista vem falar de encolhimento.

Outro ponto é o nível dos juros e do spread bancário. Antônio Ermírio, assim como todos os brasileiros, sempre reclamaram do nível dos juros. Ocorre que estamos, hoje, com a Selic no menor nível da história, tanto em termos nominais quanto em termos reais. O spread bancário continua sendo um problema, e tem a mesma raiz da questão que tornam absurdos os preços dos automóveis brasileiros: impostos. O aumento da alíquota da CSLL sobre os lucros dos bancos só vai piorar o problema.

Antônio Ermírio representava uma casta de industriais que serviam de fonte para os jornalistas. Hoje, segundo Cafardo, os jornalistas vão sondar a opinião dos profissionais do mercado financeiro. Que nunca, segundo ele, defenderão a queda dos juros. Bem, se o colunista lesse o próprio jornal onde é editor-executivo, veria opiniões de muitos executivos do mercado na direção da queda da Selic. Inclusive, o próprio relatório Focus, que traz a mediana das expectativas do mercado, indica Selic de 5,75% no final do ano.

Só faltou o câmbio no cardápio da “desindustrialização brasileira”. Deve ter faltado espaço na coluna.

Enfim, um amontoado de mistificações que servem para defender uma agenda que já se mostrou perniciosa para o país. Que o digam os 12 milhões de desempregados.

Volta Cristiano Romero!

A lama em que nos encontramos

Pedro Cafardo é editor-executivo do Valor Econômico.

Hoje, Pedro comete uma coluna mais ou menos assim:

– O liberalismo tomou conta do governo brasileiro. E isso é bem-vindo, dado que o Estado brasileiro está falido e não consegue mais cumprir com suas obrigações.

– No entanto, seria bom olhar para o que está acontecendo lá fora: Trump e até a liberal Alemanha estão mudando as regras do jogo e protegendo suas indústrias “estratégicas”.

– Pausa na coluna para a descrição da “experiência” e do “orgulho” de voar em uma aeronave da Embraer na África do Sul. Uma “emoção”.

– Depois de demonstrar, com essa “experiência”, o quanto a Embraer é “estratégica” para o Brasil, o articulista volta a falar da tal “onda antiliberal” no mundo e como o Brasil, com o novo governo, está na contramão.

– Por fim, questiona se este seria o melhor momento para vender as estatais brasileiras. Afinal, se a joia da tecnologia brasileira foi vendida por “míseros” US$ 5 bilhões, quanto valeriam as outras joias?

Vou começar a descascar a partir desse “míseros” na frente dos 5 bi. O editor-executivo do Valor, o maior jornal de finanças do país, não sabe o que é valuation de uma empresa. Trata seus acionistas como um bando de idiotas, que não sabem fazer contas, e estivessem vendendo o “patrimônio brasileiro” a preço de banana. Segundo Cafardo, o Estado brasileiro precisa intervir, impedindo que os acionistas façam essa besteira. Afinal, só o Estado sabe o quanto realmente vale esse “orgulho nacional”.

O final dessa história já sabemos: sem condições de competir no mercado global, em determinado momento a Embraer fecharia fábricas, demitindo milhares de empregados. Clamores se levantariam para que o governo “fizesse alguma coisa” para preservar os empregos e subsídios seriam dados para manter uma empresa zumbi, sem condições de sobrevivência.

Protegemos indústrias ao longo de décadas e os resultados estão aí para quem tem olhos para ver. Queremos fazer o que supostamente estão fazendo agora EUA e Alemanha, sem ter antes colocado as condições para a acumulação de capital físico e humano, coisa abundante nos dois países. O resultado é o crony capitalism, uma corruptela do capitalismo. Aliás, não deixa de ser curioso um editor do Valor elogiando a política de Trump no que ela tem de mais imbecil.

Por fim, de maneira marota, Cafardo dá um salto quântico no artigo, passando para a venda das estatais. O único link possível entre os dois casos, Embraer e estatais, é o seu valor estratégico. Mas o colunista não cita o valor estratégico, mesmo porque é difícil defender que, por exemplo, os Correios tenham algum valor estratégico. Cafardo vai pela linha do valor da venda: a Embraer, joia da tecnologia nacional, foi vendida por míseros 5 bilhões. Seria este o momento de vender as estatais? Como se o Estado brasileiro estivesse nadando em dinheiro e tivesse escolha. E, pior, como se as empresas estatais, continuando nas mãos do Estado, pudessem algum dia valer mais.

A coluna de Pedro Cafardo tem sua utilidade. Quando um editor-executivo do maior jornal de finanças do país comete um artigo desse naipe, tomamos consciência da lama em que nos encontramos.