A força das instituições

Por óbvio não conheço detalhes, e tudo que vou escrever a seguir se baseia na minha percepção das coisas, mas, ao que parece, o presidente (agora ex) do Peru, Pedro Castillo, foi vítima da ilusão do apoio do “povo”. Contando com o “povo” para se manter no poder, Castillo tentou uma cartada, frustrada em poucas horas.

Em uma sociedade minimamente organizada, o que manda são as “instituições”. O “povo” não passa de uma massa amorfa, desorganizada, incapaz de impor a sua vontade. Mesmo porque, a “vontade” do povo é, como o próprio, amorfa. São as instituições que dão estrutura à vontade do povo. Se elas funcionam bem, se são inclusivas ou extrativistas, se estão capturadas por interesse privados, isso é outro problema. O ponto central é que são as instituições a instância onde se resolvem as coisas na arena política.

Nas ditaduras pessoais, as instituições se confundem com uma pessoa. No entanto, mesmo nesse caso, o ditador precisa se mostrar hábil para se manter no poder. Afinal, trata-se apenas de um único homem, que domina as instituições do país com sua maneira de equilibrar os pratos e satisfazer ou aterrorizar pretendentes ao poder.

Em uma democracia, a mesma coisa. O detentor do poder mantém-se na medida em que consegue equilibrar os pratos. O poder é limitado pelas instituições. Muitos acham, por exemplo, que o impeachment de Dilma só ocorreu porque Eduardo Cunha assim o quis, ou que um processo de impeachment de Bolsonaro só não ocorreu porque Rodrigo Maia e, depois, Arthur Lira, não quiseram. Ledo engano. O presidente do Congresso, de fato, tem a caneta. Mas é subordinado aos interesses da Casa que preside. Cabe ao presidente do Congresso medir a temperatura e dançar conforme a música. É a instituição, no fim do dia, que manda.

Muitos esperavam (e ainda esperam) que a força do “povo” fosse suficiente para que Bolsonaro se mantivesse no poder, desafiando as instituições. Se tentasse, aposto que seu destino seria o mesmo que o de Castillo. O ”povo” na rua tem alguma influência sobre as instituições, sem dúvida. Mas os que detém o poder dentro das instituições sabem distinguir entre uma verdadeira revolta popular e um amontoado de devotos de um político.

Teste psicotécnico

1. Alberto Fernandez foi eleito presidente da Argentina, sucedendo a um presidente de direita.

2. Biden foi eleito presidente dos EUA, sucedendo a um presidente de direita.

3. Pedro Castillo foi eleito presidente do Peru, sucedendo a um presidente de direita.

4. Gabriel Boric foi eleito presidente do Chile, sucedendo a um presidente de direita.

5. xxxx será eleito presidente do Brasil, sucedendo a um presidente de direita.

A arte de ser feliz está em esperar o melhor e se preparar para o pior.

Guinada à esquerda

Como assim, “presidente dá guinada à esquerda”??? O sujeito é o Guilherme Boulos deles, está fazendo exatamente aquilo que disse que iria fazer, e o mundo político e econômico peruano está espantado com a “guinada à esquerda” de Pedro Castillo?

Temos sempre a ilusão de que um radical vai caminhar para o centro, de modo a manter a governabilidade. O mercado costuma dar pouca importância à retórica dos candidatos porque, pensa, na hora do vamos ver, o candidato eleito precisará caminhar para o centro para não ficar isolado e colocar o seu governo em risco.

Ocorre que a retórica, se não é simplesmente promessa populista de campanha, define o candidato. Ao que parece, Pedro Castillo, neófito do poder, foi com muita sede ao pote. Deveria aprender com Lula, que conseguiu enganar o mercado durante alguns anos, até ter segurança para implementar a sua verdadeira agenda. A troca de Pallocci por Mantega marca esse momento, que atingiu o seu ápice com Dilma.

Quando Lula diz que vai acabar com o teto de gastos, ou desenvolve ideias de economia do manual da Unicamp, o mercado ouve essas palavras com o filtro do “no final, ele vai caminhar para o centro”. Compreensível, dado que Lula já fez isso no primeiro mandato. Só esquecem os 10 anos de terror que se seguiram àqueles três primeiros anos do “Lula centrista”.

É possível sim que, Lula eleito, não cometa o erro primário do seu congênere peruano. Muito mais experiente, ele sabe que, para cozinhar o sapo, é preciso aumentar o fogo lentamente, caso contrário, o sapo pula da panela. E ele sabe como ninguém cozinhar o sapo do mercado financeiro.

FHC vs. Vargas Llosa

O trecho destacado abaixo é o início de um artigo publicado hoje no Estadão.

O autor diz que a imprensa estrangeira atribui atrocidades a Bolsonaro, além de ter Lula como o seu queridinho e, se pudesse votar, Lula já estaria eleito. Mas, por outro lado, afirma que o povo brasileiro sabe o que Lula fez no verão passado.

Quem é o autor? Será um bolsonarista de quatro costados, como Augusto Nunes ou JR Guzzo? Ou mesmo alguém mais crítico a Bolsonaro, mas que também não lambe a bota de Lula, como William Waack?

Nada disso. O autor é ninguém menos do que Mário Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura e ex-candidato a presidência da República contra Alberto Fujimori. Vargas Llosa pode ser considerado o FHC do Peru: um intelectual que enveredou pela política, com ideias modernas sobre economia.

Bem, pelo menos era isso que eu pensava. Vargas Llosa está fazendo campanha por Keiko Fujimori, filha de Alberto, contra o professor Pedro Castillo nas eleições de hoje no Peru. Para fazer um paralelo: imagine que Bolsonaro, dois anos depois de eleito, tivesse dissolvido o Congresso e o STF e tivesse governado por mais 8 anos de maneira ditatorial, até renunciar ao cargo. Vinte anos depois, seu filho Eduardo se candidata e chega ao segundo turno contra Guilherme Boulos. Nesse contexto, quem FHC iria apoiar?

Enquanto FHC assina notas conjuntas com Lula (falarei sobre essa nota conjunta em outro post), Vargas Llosa apoia Fujimori. Cada país tem o FHC que merece.

A pobreza como destino

Mario Vargas Llosa, em artigo publicado hoje no Estadão, pede votos para Keiko Fujimori no 2o turno das eleições peruanas, a serem disputadas em junho.

Imagine um 2o turno entre Guilherme Boulos e Eduardo Bolsonaro, este concorrendo após seu pai ter governado o país por 10 anos e ter tentado dar um golpe para se perpetuar no poder. Agora imagine Fernando Henrique pedindo votos para Bolsonaro. Isso é mais ou menos o que está acontecendo no Peru neste momento. Como chegamos neste ponto?

Estou muito longe de ser um especialista em política peruana. Faço aqui apenas uma análise à distância, tentando traçar paralelos com a política brasileira, um exercício sempre precário.

Quem acompanha Vargas Llosa não pode deixar de ficar espantado com esse posicionamento. O prêmio Nobel de literatura foi um crítico áspero de Alberto Fujimori, de quem foi adversário nas eleições de 1990, tendo perdido no 2o turno.

A partir do governo de Alberto Fujimori, o Peru, assim como o Brasil, entrou em uma fase de reformas estruturais que lhe permitiu alcançar estabilidade econômica rara por essas bandas latinas. Cabe ressaltar que Vargas Llosa também era a favor dessas reformas, o que nos leva a crer que a história do Peru estava escrita em 1990.

No gráfico abaixo, podemos observar a relação entre a renda/capita do Brasil e a do Peru.

No início dos anos 90, a renda do Brasil era o dobro da peruana. Nos últimos 30 anos, o Peru praticamente nos alcançou, com a renda brasileira ficando apenas 15% acima da peruana (o ano de 2020 está contaminado pela epidemia).

O rating soberano do Peru foi elevado para Grau de Investimento em abril de 2008, um mês antes do Brasil. A diferença é que eles ainda são Grau de Investimento, com rating BBB+, enquanto nós perdemos o Grau de Investimento no final de 2015, sendo hoje BB-. Ou seja, precisaríamos de 5 upgrades para atingir o nível do Peru. Hoje, um título do governo do Peru de 10 anos está pagando 5% ao ano, enquanto o nosso, para atrair investidores, precisa pagar 9% ao ano.

O interessante é que a disciplina que permitiu diminuir as taxas de juros e aumentar a renda atravessou governos de esquerda (como o de Humala) assim como de direita (como o de Alejandro Toledo), ou mesmo simplesmente populistas, como o de Fujimori.

No entanto, algo aconteceu. Mais do que a Lava-Jato, que devastou a classe política peruana, um descontentamento generalizado parece estar dando as cartas, assim como aconteceu no Chile. Chegamos, então, ao artigo de Mario Vargas Llosa.

Vargas Llosa, em seu artigo, prevê o fim das eleições livres, a lá Chavez/Maduro, caso o Guilherme Boulos deles, Pedro Castillo, seja eleito e implemente a sua agenda de estatização generalizada. Vê em Keiko Fujimori o “mal menor”, caso ela se comprometa a “respeitar a liberdade de expressão, não expulsar os juízes do Poder Judiciário e a convocar eleições ao término de seu mandato”. Ou seja, desde que a filha de Fujimori seja a democrata que seu pai não foi. Entre a ameaça à democracia pela esquerda e pela direita, Llosa opta por esta última. Se optou, é porque viu um “mal menor”.

O que mais me chama a atenção nisso tudo é o fato de o Peru ter, aparentemente, seguido à risca o receituário da Faria Lima para ser feliz: disciplina fiscal e reformas. O que nos leva à conclusão de que, se essas são condições necessárias para o progresso, estão longe de serem suficientes. O Peru está, igualzinho ao Brasil, entre a cruz e a caldeirinha, mesmo sendo um aluno exemplar.

A conclusão a que eu chego é que, por mais que façamos, somos reféns do nosso DNA, que determina a fraqueza de nossas instituições, eternamente capturadas por elites predatórias, e sempre ficaremos sujeitos a qualquer populista com discurso apelativo que aparece. A nossa pobreza é um destino.