O rato que ruge

Nós não somos vira-latas. Temos profunda consciência de nossa importância para o mundo, e sabemos nos posicionar com o destaque que queremos e merecemos. Por isso, vamos voltar a pedir vistos dos estadunidenses. Acabou a festa de imigrantes ilegais dos EUA no Brasil.

Ironias à parte, Pedro Fernando Nery argumenta muito bem, em artigo de hoje, o non sense da medida.

A reciprocidade pela reciprocidade, ignorando outros aspectos da questão, dá a medida do viés desse governo. Os que defendem a medida minimizam os efeitos sobre o turismo, afirmando que não houve aumento de turistas com a medida. Esse argumento é equivalente ao dos que defendem a gratuidade das bagagens em voos, afirmando que os preços das passagens aéreas não diminuiu com a cobrança, ignorando que muitos outros fatores influenciam os preços das passagens. No caso dos vistos, Nery nota que a decisão do governo não se baseou em nenhum estudo demonstrando que a medida foi inócua. Como o período de teste foi muito curto, é improvável que haja estudos conclusivos a respeito, mas é de bom senso concluir que, em havendo uma barreira a menos para o turismo, a isenção, no mínimo, não atrapalha.

No filme “O Rato que Ruge”, da década de 50, um pequeno país declara guerra aos EUA, atacando com arcos e flechas. Trata-se, obviamente, de uma comédia. Ao exigir vistos duzamericanu, o Brasil ruge. Pena que não seja uma comédia.

Aqueles que “podem fazer escolhas”

Pedro Fernando Nery cai na provocação de Lula e se pergunta: será que nosso problema é que a “classe média” (definida pelo colunista como “aqueles que podem fazer escolhas”) consome demais?

Antes de começar, quero dizer que gosto dessa definição, aqueles que “podem fazer escolhas”. No mais miserável barraco da mais miserável favela brasileira você vai encontrar TV e celular. São escolhas, e essas pessoas entram na definição de Pedro Nery para a “classe média”. Sigamos.

Para início de conversa, é preciso reconhecer que, sem poupança não há investimento e, sem investimento, não há crescimento econômico. Este é o mais puro “supply side economy”, justamente o inverso do que Lula e sua camarilha econômica sempre propuseram, que o dinheiro “na mão do pobre” vira consumo e o consumo impulsiona o crescimento. Ciro Gomes pega bem essa contradição, ao chamar de “nacional-consumismo” o modelo econômico do PT, em contraponto ao seu “nacional-desenvolvimentismo”.

Mas voltemos à questão: o brasileiro “que pode fazer escolhas” consome demais? O que seria esse “consumir demais”? Lula refere-se à “ostentação” da classe média (vamos esquecer por um momento o relógio de R$80 mil que o pai dos pobres humildemente ostentava). Pedro Nery refere-se ao pouco gosto que “aqueles que podem fazer escolhas” têm pelo ato de poupar. Somos um país de consumistas.

Isso é verdade. Nosso nível de poupança é dos mais baixos do mundo. Mas o grande despoupador chama-se governo. No breve período de 15 anos em que fabricamos superávits primários (deve ter sido o único período na história do Brasil), usamos esta poupança para pagar os juros da dívida, fruto da despoupança dos anos anteriores. E, desde 2014, temos produzido novamente déficits primários. E de onde vem essa poupança que serve para pagar os juros da dívida e o déficit primário? Sim, vem da poupança dos que “podem fazer escolhas”.

O incentivo à poupança é baixo no Brasil. Temos uma história marcada por confisco e constantes surpresas inflacionárias. Assim, as pessoas que “podem fazer escolhas” escolhem consumir hoje a guardar o dinheiro para um amanhã que não sabem se vai chegar. Somos uma sociedade consumista, a começar do governo, o maior consumidor de todos.

Lula crítica a “ostentação” da classe média por motivos ideológicos. Ele mesmo deve achar esse discurso uma bobagem, mas falando aos seus, divide o mundo em “burguesia” e “proletariado”, sendo que seu partido é a vanguarda do proletariado. É permitida à vanguarda usar um relógio de R$80 mil, na medida em que está trabalhando para a libertação do proletariado de seus grilhões. “Ostentação” é uma categoria que se aplica somente à burguesia, que trabalha para a manutenção de seus privilégios. Pedro Nery toma esse discurso de Lula como uma chamada à poupança. Nada mais longe da realidade.

Escutar os dados

“Prefeituras poderiam ser escutadas, não só ouvidas”.

Escutar os dados é uma arte que poucos dominam. Somos, todos, reféns do viés de confirmação: damos ouvidos apenas aos dados que confirmam a nossa tese de estimação.

Pedro Fernando Nery, neste artigo, toma como exemplo a notícia da Folha sobre as tais “vacinas vencidas”, que se provou falsa como uma nota de R$3 depois que ficou claro tratar-se de atraso de registro. Neste meio tempo, claro, o medo tomou conta de uma parcela da população, em um assunto já tão sensível quanto a campanha de vacinação. Enfim, um desserviço.

A boa notícia é que essas falsas notícias normalmente não têm vida longa: os dados objetivos acabam se impondo, e a verdade é reestabelecida. Foi o que aconteceu neste caso.

Quer dizer, estou sendo um pouco ingênuo. Essas falsas notícias acabam sendo desmentidas somente para aqueles que escutam os dados. Para aqueles que têm tese de estimação, nada neste mundo é capaz de derrubar uma boa fake news. Sempre haverá “alguma coisa por trás”, tornando a tese verossímil. Aí, não tem jeito.

A qualidade das elites brasileiras

Existe consenso no mainstream do pensamento econômico de que a qualidade das instituições determina a probabilidade de sucesso de um país. Por instituições, entendemos coisas como as leis e o enforcement das leis, a estabilidade do sistema político, a qualidade e independência das agências governamentais e a facilidade para se empreender, por exemplo.

Muitas vezes nos perguntamos por que certas coisas são de um jeito e não do outro, porque não podemos funcionar como os países mais desenvolvidos funcionam. E não vale dizer que os países ricos funcionam melhor porque são ricos. É o justo oposto: porque as coisas funcionam bem é que esses países são ricos. EUA e Brasil tinham nível de riqueza semelhante há três séculos. O que aconteceu lá que não aconteceu aqui? Boas instituições.

Mas as instituições não foram outorgadas por Deus no início dos tempos a cada país, de modo que uns tiveram sorte de contar com boas instituições e outros, nem tanto. Não. As instituições são construções humanas. Mais especificamente, são construções das elites de cada país. Diz o velho ditado que jabuti não sobe em árvore, se está lá é porque alguém colocou. O jabuti das instituições, boas ou ruins, foi colocado pelas elites de cada país.

Pedro Fernando Nery, em um artigo de 08/12 no Estadão (Piores elites do mundo, leia aqui), cita um trabalho em que os autores, Tomas Casas e Guido Cozzi, da Universidade St. Gallen, na Suíça, criaram um índice de qualidade das elites, inspirados nas ideias dos economistas Acemoglu e Robinson, autores do best-seller Por que as Nações Falham. O Brasil aparece em 27º lugar em um conjunto de 32 países. Fui atrás do trabalho, que pode ser consultado aqui.

Trata-se de uma abordagem bastante interessante, que parte de três pressupostos:

  • As elites são uma inevitabilidade empírica, dominando a economia por meio do poder político. Elas proveem a capacidade de coordenação necessária dos recursos da economia, sejam humanos, financeiros ou baseados no conhecimento.
  • Ao estabelecer instituições que permitem a coordenação, as elites moldam o desenvolvimento humano e econômico, o destino das sociedades, a riqueza das nações e sua ascensão e queda.
  • Para sustentar sua posição, as elites administram modelos de negócios que acumulam riqueza. Elites de alta qualidade administram modelos de negócio de Criação de Valor, que fornecem para a sociedade mais do que dela tomam. Elites de baixa qualidade fazem o oposto, ao operar modelos de Extração de Valor da sociedade.

O que são elites?

Para começo de conversa, é preciso definir o que se entende por elite. Segundo os autores do índice,

“Elites são grupos estreitos e coordenados, que contam com modelos de negócios que conseguem acumular riqueza com sucesso”.

Modelos de negócios, neste contexto, não são necessariamente empresas. É qualquer mecanismo de acumulação de riqueza. Não se está entrando no mérito de se se trata de elites econômicas, políticas ou culturais. Qualquer um que acumula riqueza (em relação à média da riqueza da população do país), faz parte da elite. Tomando dados do IBGE (Pnad contínua – 2019), uma pessoa que recebe mais do que R$ 3.500 por mês está entre as 15% que mais tem renda no país, e faz parte do grupo que acumula 50% da renda do país.

Claro, ninguém que receba R$ 3.500 por mês se considera elite. No entanto, as estruturas estão, de alguma maneira, montadas para concentrar a renda do país dessa maneira. Se R$ 3.500 não parece muito, lembre-se de que a parcela dos 80% mais pobres da população vive com uma renda mensal média de R$ 850. Sim, o Brasil é um país pobre.

Uma outra forma de ver a questão é focar na demonização que as esquerdas costumam fazer das elites empresariais, as quais, em conluio com políticos inescrupulosos, seriam responsáveis por criar regras para proteger os seus interesses. Esta é a imagem de “elite” que a maioria tem em mente quando ouve esta palavra. No entanto, elite é muito mais do que isso. Lembro, a propósito, de um artigo de Samuel Pessoa, em que o economista descreve perfeitamente uma das muitas vertentes da elite brasileira. Pessoa toma como exemplo a personagem principal do filme Aquarius, que virou ícone da luta contra o “golpe” do impeachment, quando seu elenco apareceu empunhando cartazes “anti-golpe” no Festival de Cannes.

Clara, a personagem encenada por Sônia Braga, é o símbolo da resistência contra a especulação imobiliária, quando se recusa a vender seu apartamento para uma incorporadora. Pergunto: tem mais simbolismo anti-elite do que isso? Pois bem. Pessoa descreve Clara: aposentada pelo teto do INSS, acumula a pensão do falecido marido, ex-professor titular de uma universidade federal. Ele comenta: é exclusividade brasileira poder acumular a própria pensão com a do marido. Clara possui 4 outros apartamentos, provavelmente adquiridos com financiamento do antigo BNH. A hiperinflação comeu o saldo devedor, e estes apartamentos provavelmente custaram a Clara muito menos que à sociedade brasileira, pois políticos demagogos cancelaram a correção da dívida. Com sua “luta contra a especulação das elites”, Clara impede a geração de empregos na construção, aumento de renda para a incorporadora, aumento de patrimônio para os outros moradores do prédio, aumento de IPTU para a prefeitura. Quer dizer, a esquerda e seu discurso anti-elite convive e fomenta distorções que também concentram renda. E muito.

Os autores descrevem as elites que criam valor como aquelas que aumentam o bolo, enquanto as elites que extraem valor são aquelas que aumentam a sua fatia no bolo. Essa definição faz lembrar a luta pela distribuição de uma renda que não existe. Na verdade, trata-se da luta entre diferentes elites em busca de aumentar a sua fatia do bolo.

Vejamos, a seguir, como o índice mede a capacidade que as elites têm de criar ou extrair valor da sociedade.

Metodologia

Como identificar elites que criam valor para a sociedade e elites que extraem valor da sociedade? Os autores do estudo dividem essa capacidade em dois sub-índices: Valor e Poder.

O sub-índice Valor mede a capacidade das elites de criarem valor para a sociedade, por um lado, ou de extraírem valor da sociedade, por outro. Já o sub-índice Poder mede o potencial de extração de valor. Quanto mais poder as elites possuem, mais valor podem extrair da sociedade. Portanto, quanto mais poder as elites têm, menor a sua qualidade. Esse conceito é interessante, porque parte do pressuposto de que, tendo poder, as elites irão necessariamente extrair valor da sociedade. Isso, em geral, é verdade. Uma notável exceção é Cingapura, primeiro lugar no ranking, em que a elite tem muito poder, mas usa, digamos, “para o bem”, ou seja, para criar valor para a sociedade. Veremos isso mais adiante.

Cada um desses dois sub-índices é medido em duas dimensões: a dimensão política e a dimensão econômica. As esferas política e econômica são o palco onde as elites exercem o seu poder de criar ou de extrair valor para e da sociedade.

O quadro a seguir resume a relação entre os dois sub-índices e as duas esferas, e os itens medidos em cada combinação, chamados pelos autores de Pilares, com seus respectivos pesos no índice:

Vejamos a seguir o que significa cada um desses 12 pilares (entre parênteses, a nomenclatura em inglês). Estes 12 pilares são medidos através de 72 indicadores dos mais diversos. Para mais detalhes sobre como estes indicadores são usados, recomento verificar o trabalho diretamente aqui.

Poder Político

  • Regras do Estado (State Capture): mede a concentração de poder dentro Estado.
    • Medidas: Corrupção política, Mobilidade Social, Descentralização política, Descentralização administrativa, Globalização política, Índice do Poder Feminino, Resposta do governo às mudanças.
  • Regulação dos negócios (Regulatory Capture): mede o poder de grupos de interesse de capturarem as regras que regem os negócios, formando monopólios ou oligopólios de fato.
    • Medidas: Qualidade institucional, Capitalismo de compadres, Risco de expropriação, Proteção a acionistas minoritários, Facilidade para descumprir regras.
  • Regulação da mão de obra (Human Capture): mede o poder dos funcionários públicos de capturar as regras para o seu próprio benefício.
    • Medidas: Taxa de sindicalização, Participação dos funcionários públicos no total dos empregados, Poder dos acordos coletivos, Índice de escravidão, Desigualdade de gênero.

Poder Econômico

  • Dominância do setor econômico (Industry dominance): medida pelo grau de diversidade da economia. Quanto menos depender de um ou dois setores econômicos, menos o país estará sujeito a políticas extrativistas.
    • Medidas: Top 3 setores exportadores como % do PIB, Top 3 setores como % do PIB, Índice de complexidade econômica, Top 3 setores como % do valor agregado.
  • Dominância da firma (Firm dominance): medida do grau em que poucas companhias dominam a economia de um país.
    • Medidas: Lucratividade das 10 maiores empresas, Pequenas e médias empresas por habitante, Exceções a leis antitruste, Riqueza dos bilionários como % do PIB, Valor de mercado das top 10 empresas como % do PIB, Receitas das top 3 empresas como % do PIB, Receitas das top 30 empresas como % do PIB, Concentração bancária.
  • Destruição criativa (Creative destruction): termo emprestado de Schumpeter, mede a capacidade de inovar.
    • Medidas: Turnover das empresas listadas em bolsa em 15 anos, Turnover das empresas listadas em bolsa em 3 anos, Empreendedorismo, Investimento em venture capital, Pesquisa e Desenvolvimento em % do PIB, Barreiras para start-ups, Novas firmas por habitante, Término de firmas por habitante.

Valor Político: reflete as decisões que canalizam ou desviam recursos da inovação e dos setores que criam valor.

  • Renda distribuída para a sociedade (Giving income): mede como o governo maneja as finanças públicas de modo a prover bens públicos (educação, saúde, etc).
    • Medidas: Subsídios e transferências como % das despesas, Redistribuição regional como % do orçamento, Expectativa de permanência na escola, Gastos em serviços públicos como % do PIB, Resposta a pandemias, Segurança contra Covid-19.
  • Renda extraída da sociedade (Taking income): mede como o governo coleta renda da sociedade.
    • Medidas: Alíquota de imposto das empresas, Diferença entre alíquota de imposto sobre o capital e sobre a renda, Taxa de homicídio, Concentração de renda entre os 10% mais ricos, Descentralização fiscal, Receita fiscal como % do PIB, Mortos em guerra por habitante.
  • Renda “não merecida” (Unearned income): mede a renda extraída de recursos não ganhos com produção; por exemplo, a dependência de commodities ou o tamanho da dívida pública, que é um empréstimo sobre o futuro.
    • Medidas: Propensão à doença holandesa, Controle estatal de empresas, Performance ambiental, Dívida pública como % do PIB.

Valor econômico: mede diretamente o Valor Criado (ou Extraído) dos 3 mercados da economia.

  • Produtos & serviços (Producer rent).
    • Medidas: Liberdade de comércio exterior, Barreiras à entrada de novos negócios, Investimento Estrangeiro Direto como % do PIB, Barreiras ao Investimento Estrangeiro Direto, Índice de globalização, Gastos com saúde como % do PIB, Abertura para negócios.
  • Mercado de capitais (Capital rent).
    • Medidas: Taxa neutra de juros, Inflação, Apreciação da moeda, Demanda por ouro como % do PIB, M&A como % do investimento.
  • Mercado de trabalho (Labor rent).
    • Medidas: Taxa de desemprego, Participação da força de trabalho sobre o total da população, Diferença entre o salário real e o aumento da produtividade da mão de obra, Razão de dependência (trabalhadores/não-trabalhadores), Taxa de desemprego dos jovens, Diferença salarial entre gêneros.

Análise dos Resultados

O ranking final pode ser visto na tabela a seguir:

O ranking é dado pela coluna EQx. Além disso, podemos observar o ranking pelos sub-índices Poder e Valor. No caso do ranking de Poder, quanto maior o score, menor é o poder que as elites têm de extrair valor. E, no caso do ranking de Valor, quanto maior o score, maior é o Valor criado pelas elites para a sociedade.

Vimos anteriormente que, no critério dos autores, o score de Valor vale 2/3 da pontuação final, enquanto o score de Poder vale 1/3. A lógica dessa ponderação é de que, no final do dia, o que importa é o Valor criado. O Poder serve para potencializar o Valor extraído. Assim, mesmo que as elites concentrem muito Poder, se não usarem esse Poder para extrair Valor da sociedade, está valendo.

Para fazer uma análise mais sistemática dos resultados, vamos usar o gráfico a seguir, que relaciona Valor com Poder:

Os autores dividem os países em quatro grupos, a depender de sua colocação nesse gráfico (os quadrantes são divididos pelas medianas das séries, de modo que temos metade dos pontos acima e metade abaixo, metade à esquerda e metade à direita):

  • Elites Competitivas (quadrante verde – alta geração de Valor e baixo Poder de extração): é a situação que mais se assemelha a um livre mercado. Este quadrante é caracterizado por elites altamente inovadoras e lucrativas que chegam ao topo em ciclos curtos de rápida sucessão. As disputas entre as elites produzem uma infinidade de bens públicos, incluindo desenvolvimento econômico e humano. As possibilidades tecnológicas são aproveitadas e o crescimento econômico de longo prazo é maximizado e limitado apenas pela capacidade de inovação do ser humano.
  • Elites Ilustradas (quadrante azul – alta geração de Valor e alto Poder de extração): são elites poderosas que dominam a economia política. Essas coalizões dominantes, no entanto, abstêm-se de extração de Valor apesar de sua capacidade de extraí-lo. Ao contrário, optam por gerenciar modelos de negócios que criam Valor. Nesse quadrante, as elites são muito poderosas e, no entanto, criam Valor substancial.
  • Elites Rentistas (quadrante vermelho – baixa geração de Valor e alto Poder de extração): países com economias neste quadrante são caracterizados por elites poderosas e altamente dominantes, que consolidaram modelos de negócios de extração de Valor. Tendo capturado as alavancas do Poder e superado a resistência das forças produtivas, as elites desenham instituições que favorecem os seus modelos de negócios às custas de não-elites cada vez mais desmoralizadas e que têm pouco incentivo para investir em atividades de criação de Valor.
  • Elites em Luta (quadrante amarelo – baixa geração de Valor e baixo Poder de extração): neste quadrante, uma miríade de diferentes agentes de baixo Poder procuram extrair Valor, em um ambiente de ausência de modelos de negócio de geração de Valor. Este é um modelo instável, que conta com elites extrativistas, mas que ainda não conquistaram Poder. Grupos emergentes se engajam em disputas por posições dominantes, que lhes permitirão moldar as instituições que irão, por fim, proteger seus modelos de negócios no futuro.

Observe que, de maneira geral, os países encontram-se nos quadrantes verde (Elites Competitivas) ou vermelho (Elites Rentistas). Alguns encontram-se na fronteira, constituindo-se em casos interessantes.

Por exemplo, as elites em Cingapura e África do Sul detém praticamente o mesmo Poder de extração de valor. No entanto, o modelo de negócios em Cingapura cria muito mais Valor do que na África do Sul. As elites em Cingapura detêm muito mais Poder de extração do que outros países com modelos de alta criação de Valor. Seria um exemplo de Elite Ilustrada, que não usa o seu Poder para extrair Valor da sociedade, pelo contrário. Já as elites da África do Sul detêm muito menos Poder de extração do que outros países com modelos de baixa criação de Valor. Ou seja, apesar de não ter elites com alto Poder de extração, o país não consegue criar modelos de criação de Valor. Seria um exemplo de Elites em Luta, grupos em busca de uma posição de dominância para perpetuarem o modelo de negócio de baixa criação de Valor.

Como estão as elites brasileiras?

As elites do Brasil, assim como de vários outros países pobres, encontram-se no quadrante vermelho. Ou seja, são elites rentistas, que usam o seu Poder para extrair Valor da sociedade. Mas mesmo dentro desse quadrante vermelho, há diferenças significativas entre os países. As elites de Botswana, por exemplo, com um modelo de negócios que cria mais Valor, estariam mais próximas de serem elites ilustradas do que o Brasil, cujas elites estariam mais próximas do modelo sul-africano, de Elites em Luta.

Vamos detalhar um pouco mais onde estão os problemas brasileiros, em comparação com seus pares. Para isso, vamos explorar os detalhes do índice, isto é, os seus pilares, e verificar como as elites brasileiras se saíram em cada um deles.

Nesta tabela, mostramos a nota do Brasil em cada um dos pilares, a média de todos os países também em cada um dos pilares e o z-score, ou seja, quão distante está o Brasil da média, considerando o desvio-padrão dos resultados de todos os países em cada um dos pilares e nos sub-índices.

Podemos observar que o país se sai mal principalmente no sub-índice Valor, que tem peso maior na ponderação (2/3). Os pilares que mais nos puxam para baixo (considerando o z-score) são o Mercado de Trabalho, Produtos e Serviços e Renda Extraída. Vamos lembrar quais são os índices que compõem cada um desses pilares.

No caso do pilar Mercado de Trabalho, temos, por exemplo, o índice de desemprego, a diferença entre o salário real e a produtividade da mão de obra (basta lembrar do nível do salário-mínimo vis a vis o nível de preparo médio do trabalhador brasileiro) e o desemprego dos mais jovens.

No pilar Produtos e Serviços, temos, por exemplo, abertura comercial (o país é um dos mais fechados do mundo) e barreiras à entrada de novas firmas.

Por fim, no pilar de Renda Extraída, temos taxa de homicídio (uma das mais altas do mundo), descentralização fiscal e carga tributária (a mais alta do mundo emergente).

Pode ser difícil relacionar cada um desses índices com a extração de valor por parte das elites. São consequências tão indiretas, que não ligamos uma coisa com a outra. Mas, segundo os autores do estudo, tudo tem a ver com a forma como o poder político e econômico é organizado em cada país. Consideremos, por exemplo, o índice de homicídios, que puxa para baixo o pilar Renda Extraída. Lembremos que, neste pilar, medimos como o governo extrai renda da sociedade.

Mas, afinal, o que tem o índice de homicídios a ver com a extração de renda? O vergonhoso índice de homicídios brasileiro é explicado de maneira diferente pela esquerda e pela direita. Pela esquerda, trata-se do resultado da má distribuição de renda, que leva à violência. Pela direita, é o resultado de instituições fracas, que não investigam, não julgam e não prendem de maneira eficiente. Tanto faz. Uma ou outra explicação levam à mesma conclusão: o homicídio representa a extração máxima de valor da sociedade, uma vida humana produtiva, resultado da ineficiência das elites. Este é o sentido.

Qual a solução? Existe solução?

Observemos novamente o gráfico de relação Valor vs. Poder.

O objetivo dos países é subir na escala da criação de Valor. Segundo a lógica do ranking, grande parte dos países alcançou sucesso porque suas elites são fracas, não conseguem extrair valor da sociedade (quadrante verde). Mas as elites brasileiras são menos extrativas que vários de seus pares, segundo os índices usados no estudo. Portanto, poderíamos ter modelos de negócios que criam mais valor para a sociedade. Botswana, Indonésia e Casaquistão, para citar 3 países com elites até mais extrativas do que a brasileira, contam com modelos de negócios que proporcionam maior criação de valor.

De qualquer forma, apesar de ser possível, o que nos mostra o modelo é que é mais difícil estabelecer modelos de criação de valor com elites mais extrativistas. Ou, inversamente, elites menos extrativistas levam quase que naturalmente a modelos de negócios que agregam mais valor para a sociedade (a África do Sul parece ser a única exceção a essa regra). Óbvio que estou aqui supondo uma relação de causa-efeito, da natureza do poder político para a criação de valor, e não vice-versa. Além disso, estamos analisando uma foto e não o filme. Não sabemos como essas características evoluíram no tempo. Mas essa relação de causa-efeito parece ser a mais intuitiva.

São muito úteis índices como o Doing Business, do Banco Mundial, que nos aponta caminhos para aumentar a produtividade da economia. No entanto, estas estruturas burocráticas não estão aí por acaso. Elas servem elites rentistas, que lucram e mantém suas posições ao extrair Valor da sociedade através dessas mesmas estruturas. Portanto, e é isso o que nos diz a Economia Política, a maneira de montar modelos de negócios que criam Valor para a sociedade é diminuir o Poder das elites de extrair Valor da sociedade.

A pergunta do milhão é: como diminuir o Poder das elites?

Minha crítica ao índice

A ideia de um índice de poder das elites é muito boa. Permite-nos uma outra visão sobre o problema de criação de valor nas sociedades, mudando o foco da operacionalização dessa construção de valor para um conceito de economia política que foca a gênese das estruturas que extraem valor da sociedade. Como mencionei no início, tira o foco do jabuti em si para a mão que colocou o jabuti na árvore.

Mas o índice, per se, não endereça soluções para o problema. Vou fazer um paralelo com o índice Doing Business. O Doing Business é um índice formado por vários quesitos que atrapalham a vida do empreendedor. O foco é na desburocratização. Portanto, para que um país melhore sua posição no ranking, basta endereçar diretamente os problemas apontados: número de dias necessários para abrir ou fechar uma empresa, enforcement de contratos, tempo para obter eletricidade etc. São critérios objetivos que, se melhorados, ajudam o empreendedor a criar valor.

O Ranking das Elites, por outro lado, é calculado usando-se como base medidas que não se relacionam diretamente com o Poder que essas elites detêm. Funcionam como o termômetro que mede a febre, mas não nos dizem nada sobre a doença em si. Por exemplo, o pilar Regras do Estado, dentro do Poder Político, é medido por 7 índices. Um deles é o nível de corrupção no governo. Certo, a corrupção é um sinal de captura do Estado pelas elites. Mas o que leva à corrupção? Se não tivermos um diagnóstico objetivo das causas últimas da corrupção governamental, de nada servirá ranquearmos os países dos mais aos menos corruptos. Claro, sempre se pode combater a corrupção e tentar melhorar a posição no ranking. Mas, como vimos no episódio da Lava-Jato, qualquer tentativa de combater a corrupção sem mudar as estruturas sobre as quais as elites exercem o seu poder é como enxugar gelo. Mudarão os personagens, mas a corrupção permanecerá como regra para se fazer negócios.

E é este diagnóstico, em minha opinião, que falta a este índice. Óbvio que não é fácil (e talvez não seja sequer possível), construir um índice de determinantes do Poder político das elites, e não somente um índice que mede as consequências desse poder político. Mas, se não for feito, o que obtemos (como é o caso) é mais um índice que tem alta correlação com renda per/capita, IDH, competitividade e outros índices de riqueza e produtividade.

Como afirmei acima, este índice de qualidade das elites é útil por mostrar a mesma realidade de outro ângulo, e chamar a atenção para as causas últimas (causas políticas) da pobreza dos países. Mas precisa caminhar muito para servir como instrumento de mudanças.

Tente ficar tranquilo

A “proposta” de Boulos para o equilíbrio da previdência dos funcionários municipais ganhou as redes pela sua jenialidade única.

Para quem quer um pouco mais de informação a respeito deste importante assunto, este artigo de ontem do Pedro Fernando Nery é bem esclarecedor. Tente ficar tranquilo depois de lê-lo.

Não mexam no meu queijo!

A Reforma Tributária ainda vai ocupar muito espaço por aqui.

Não é de hoje que o setor de serviços está chiando com a proposta de reforma que está sendo discutida no Congresso. Há algum tempo, cheguei a comentar um artigo do ex-secretário da Receita, Everardo Maciel, que foi um dos primeiros a erguer o tacape.

Sim, a exemplo da Confederação Nacional dos Serviços, que defendeu a CPMF para fugir da reforma, também a OAB está pintada para a guerra.

Não é à toa: como diz Pedro Fernando Nery em seu tuíte, os advogados pagam pouco imposto, assim como médicos e outros prestadores de serviços. A reação do presidente da OAB só corrobora o tuíte.

O presidente da OAB sabe do que está falando: a carga tributária sobre os advogados e profissionais liberais em geral vai aumentar com a reforma. Como a carga tributária geral deve continuar onde está, outros agentes vão pagar menos impostos. Estes outros agentes são a indústria e, em menor medida, o comércio. E adivinha quem consome os serviços de advogados e quem consome os produtos da indústria e comércio? Pois é.

Estamos novamente falando de distribuição de renda. O presidente da OAB é o primeiro a se alinhar a causas nobres e populares, sempre defendendo os fracos e oprimidos da sociedade. Desde que não mexam com o dele.

O dia D do saneamento

Poucos dias podem se arrogar o título de divisor de águas, um marco entre o “antes” e o “depois”. Um desses dias certamente é amanhã, quando será votado (e, se Deus quiser, aprovado) o novo marco regulatório do saneamento. Este marco define metas de universalização dos serviços de água e esgoto e exige licitação para a contratação de empresas para a prestação desses serviços.

Há dois tipos de resistência a esse projeto, que dorme nas gavetas do Congresso há anos.

A primeira é aquela exercida pela esquerda jurássica, que defende que água é um bem essencial e que, portanto, não pode ser “mercantilizada”, capturada pelos interesses privados. Para esses dinossauros, cobrar tarifas pela água é o cúmulo do capitalismo selvagem. Defendem que o Estado seja o fornecedor do serviço. E quando confrontados com o fato de que o Estado não tem sido capaz de entregar o Nirvana, afirmam que outro mundo é possível, o que quer que isso signifique.

O fato é que o Brasil passou anos sendo governado por essa esquerda e, mesmo hoje, grande parte dos governadores do Norte/Nordeste são desses partidos da “garantia dos direitos básicos”. Coincidência ou não, são as regiões onde encontra-se o maior déficit nos serviços de saneamento.

Acho graça quando dizem que “as tarifas vão aumentar” por conta da privatização. Ora, a tarifa mais cara é aquela de um produto inexistente. O artigo de Pedro Fernando Nery mostra o alto custo de não se ter a universalização de um serviço tão básico. E o problema da tarifa mais alta pode ser facilmente resolvido através de subsídios para as famílias mais pobres, coisa já feita com a eletricidade e o gás, por exemplo. Mas nada disso resolve o problema ideológico. Esse não tem cura.

O segundo foco de resistência é muito menos poético mas é, de longe, o mais duro de vencer: o amor que os políticos têm pelas empresas estatais, que servem para abrigar seus correligionários, amarrar suas redes de lealdades e, como brinde, posar de benfeitores da população. Enquanto a resistência ideológica faz barulho mas tem pouca relevância, a resistência prática é a que fez esse projeto dormir em berço esplêndido durante anos. Chegamos a um ponto que não dá mais para adiar a solução desse problema que envergonha qualquer brasileiro decente, mas fazer esse pessoal largar o osso não é fácil.

Amanhã será um grande dia no Senado. Vamos torcer para que o Brasil dê finalmente um passo à frente nessa matéria.