Ontem, escrevi um primeiro post sobre Pelé, ainda tomado pela emoção. Foi um texto intimista, com recordações pessoais. Hoje, dedicar-me-ei a escrever uma análise mais racional sobre o fenômeno Pelé.
O que define um craque? Certamente as suas habilidades, mas não só. Um artista de circo bem treinado conseguiria, por exemplo, fazer mais embaixadinhas do que Pelé, provavelmente com mais graça e beleza. Sim, o craque precisa ser hábil na arte, mas trata-se de requisito longe do suficiente.
Quando moleques jogam bola na rua, a primeira coisa que fazem é dividir os times. Normalmente são os dois melhores que escolhem os times e, alternadamente, selecionam os jogadores. O critério? Aqueles que, no entender de quem está escolhendo, vão ajudar a vencer a partida. Este é o critério de qualquer seleção: vencer. Um artista de circo pode ser muito habilidoso com a bola, se não conseguir colocá-la dentro da rede, de nada adianta.
Quem já teve a oportunidade de assistir a algum documentário com uma coleção de gols do Rei, certamente notará o seu foco total no objetivo do jogo: o gol. Pelé era um predador 100% focado na sua presa, a rede adversária. A maior parte dos seus gols foram feios, feitos do jeito que dava. Mas, mesmo nos gols de placa, a plasticidade do gol era uma consequência não intencional do movimento para se atingir o objetivo. Se analisarmos cada golaço de Pelé, veremos que não há nenhuma firula a mais. Todo o desenho do lance é o necessário e o suficiente para fazer o gol. Pelé era a personificação da eficácia.
Além disso, o craque é capaz de modificar a realidade à sua volta. Em sua biografia de Steven Jobs, Walter Isaacson nos conta que as pessoas que conviviam com o fundador da Apple eram unânimes em dizer que Jobs tinha uma espécie de ”campo de distorção da realidade” em torno de si. Ele não só via o mundo de maneira diferente, mas o seu campo de distorção fazia com que o mundo ficasse diferente para os que conviviam com ele. No futebol, a mesma coisa: o craque parece cercado por uma espécie de “campo de distorção”, e é capaz de mudar a realidade do jogo de acordo com a sua vontade. As assistências de Pelé no gol de Jairzinho contra a Inglaterra, e nos gols de Jairzinho e Carlos Alberto contra a Itália, na Copa de 70, são exemplo desses lances em que os adversários ficam perdidos diante de uma realidade completamente diferente da que tinham só um segundo antes. O craque é aquele muda o jogo em um lance.
O conjunto dessas características não seria suficiente, no entanto, se não servisse para atingir o objetivo de qualquer time: títulos. Messi é um dos grandes do futebol mundial de todos os tempos, não há dúvida. Mas se não vencesse uma Copa do Mundo pela e para a sua seleção, ficaria abaixo de Maradona. O gol é o resultado da eficácia do jogador. O título é o resultado da eficácia do time. O craque é aquele que conjuga as duas coisas.
Mas essas características definidoras do craque estão presentes em outros jogadores de todos os tempos. O que faz, então, Pelé estar acima de todos eles? Sim, ele tem mais gols e títulos que qualquer um. Mas não me parece, aqui, que a realeza de Pelé se baseie exclusivamente nas estatísticas. Pelé já era chamado de rei do futebol muito antes dos 1.000 gols e dos três títulos mundiais. Há algo mais.
Esse algo mais se divide em duas partes, uma racional e a outra irracional. Comecemos pela racional: gestão de carreira. Instintivamente ou não, Pelé geriu sua carreira em campo também de maneira magistral. Despediu-se dos gramados no auge, evitando transformar-se em um “ex-jogador em atividade”, lamentável figura que frequentemente vemos desfilar pelos times brasileiros. A lembrança que guardamos é a melhor possível. Sua fase posterior, no Cosmos de Nova York, pode ser comparada mais à sua carreira como ator de filme do que como jogador de futebol.
A parte irracional refere-se a algo chamado “carisma”. É difícil definir o que vem a ser carisma, mas Pelé certamente contava com essa característica. De alguma maneira, seu rosto, seu sorriso, sua postura, a forma como falava e se comunicava, sua abertura franca aos fãs, tudo isso fazia um conjunto irresistível. Há figuras humanas que nos atraem e nem sabemos o porquê. Pelé é uma delas.
Esse, na minha opinião, é o conjunto de características que fizeram de Pelé o que ele foi. Surgirá outro igual? Provavelmente não. São muitas coincidências felizes em uma só pessoa. E, mesmo que surja alguém, a competição será sempre desleal, pois estaremos comparando a realidade atual, sempre sujeita à crítica, com uma lenda do passado, já purgada de todos os seus defeitos. Pelé seguirá inigualável, enquanto o futebol for o esporte mais popular do planeta.