A síndrome do “já que”

É somente óbvio que era questão de tempo para que o teto de gastos sofresse da síndrome do “já que”. Quem já fez reforma em casa sabe do que estou falando: estamos já encalacrados nos gastos, com a casa toda quebrada, e temos uma ideia que não estava no orçamento inicial. Então, pensamos: ”já que” está tudo quebrado e já gastamos tudo isso, por que não fazer mais esse gasto com essa nova ideia? Aquilo nos parece muito razoável, pois a comparação do novo gasto com o já incorrido parece irrelevante. E assim, de “já que” em “já que”, gastamos muito mais do que o orçamento inicial.

O piso da enfermagem é o mais novo na fila do “já que”. Antes tivemos o auxílio emergencial e as despesas com infraestrutura. Provavelmente teremos outras mais. Farmácia Popular, por exemplo. Ou merenda escolar. Ou Lei Paulo Gustavo. Procure na imprensa nas últimas semanas as denúncias sobre cortes de verbas e você verá os candidatos potenciais para a síndrome do “já que”. Basta ter um padrinho aguerrido no Congresso, como os enfermeiros tiveram a sorte de encontrar.

Claro que todas essas despesas são meritórias. Na verdade, custa-me crer que haja no orçamento alguma despesa que não o seja. Tudo o que nossos nobres presidente e deputados aprovam é para o bem da nação. Portanto, dizer que esses gastos não são meritórios chega a ser uma contradição em termos. Na verdade, os gastos não meritórios, como, por exemplo, as inúmeras e diversas vantagens dos funcionários públicos, estão inscritos nos chamados “gastos obrigatórios”, talhados em rocha mais firme do que a tábua dos 10 mandamentos. Nessas despesas ninguém mexe.

Uma lei orçamentária que sofre da síndrome do “já que” não pode ser levada a sério. Agora que aprendemos que fazer uma PEC é tão fácil quanto trocar de camisa, essas despesas meritórias certamente encontrarão guarida em nosso “orçamento”, qualquer que seja o próximo presidente. A conta? Bem, a conta será paga pela próxima geração, que herdará a dívida que fazemos hoje para pagar por esses gastos meritórios. Nossos filhos e netos se perguntarão, como nos perguntamos hoje, porque o país cresce tão pouco e a inflação é tão alta, aprofundando as desigualdades. Estamos hoje pagando as irresponsabilidades do passado. E a próxima geração pagará pelas nossas irresponsabilidades. E assim, de irresponsabilidade em irresponsabilidade, vamos construindo o país do futuro que nunca chega.

Empurrando a história

Barroso suspendeu liminarmente, em uma decisão monocrática, uma lei aprovada pelas duas casas do Congresso e sancionada pelo presidente da República. E, aparentemente, sua justificativa não se baseia em qualquer dispositivo constitucional, mas na possibilidade de “fechamento de vagas de enfermeiros”.

Obviamente não sou fã dessa lei. Creio que é o mercado que melhor decide sobre quanto um enfermeiro, ou qualquer profissional, deve ganhar. No caso, trata-se de um mercado competitivo, fragmentado, em que nenhum player empresarial domina a ponto de ter poder de barganha sobre os salários. Qualquer intervenção externa tende a afetar esse equilíbrio, levando, no caso, a demissões e/ou aumento de custos para os usuários.

Mas não é este o ponto aqui. Barroso atua, novamente, com base em suas “boas intenções”, ao invés de se ater ao texto da Lei Maior. Com base nesse entendimento, o salário mínimo deveria também ser revogado. O salário mínimo é um dos principais, senão o principal, motivo para o alto desemprego estrutural brasileiro e o grande grau de informalidade do mercado de trabalho. Assim como qualquer piso salarial artificial, o salário mínimo impede a contratação de uma mão de obra que não tem qualificação suficiente para produzir o tanto que custa. Não há lei que mude essa realidade, infelizmente.

Os políticos brasileiros são demagogos e não entendem as leis da economia. Por isso, produzem leis que, ao fim e ao cabo, prejudicam a população brasileira no longo prazo. Mas um STF voluntarioso não é a solução para este problema. Porque se hoje o ministro Barroso está “empurrando a história” para o lado com o qual eu concordo, amanhã poderá ser o contrário, como no caso do aborto, por exemplo. O ponto é que o Judiciário não pode substituir o Legislativo, seja a que título for.

PS.: podemos estar somente presenciando um jogo de cena, em que Legislativo e Executivo jogam para a torcida e o Judiciário assume o ônus de ser o “bad cop” da história, uma vez que não precisa de votos. Seria menos mal, mas não deixaria de ser um traço de brasilidade de nossas instituições.