STF: o autoritarismo por trás das boas intenções

Esse editorial é de extrema importância. Não somente porque aponta inutilidade da ação do Supremo (chamada de “utopia”), mas porque, principalmente, dá parcialmente nome aos bois, acusando o STF de pretender substituir a política. Volto a esse “parcialmente” mais à frente.

Já comentei aqui sobre a pretensão do recém-empossado presidente do Tribunal máximo do país, Luis Roberto Barroso, de transformar a Corte em Guia Genial doa Povos. A expressão que utilizou foi “empurrar a história”. O STF deveria usar seu poder para “empurrar a história” na direção correta.

Não há como negar que essa ideia tem um apelo especial. Por exemplo, é comum encontrar pessoas que acham que a nossa Constituição deveria ser escrita por uma “Comissão de Notáveis”, que teriam o dom especial de escrever uma Carta “certa”, e não essa joça que foi parida por políticos venais há 35 anos. Essa ideia de que haveria um grupo especial de seres humanos que resolveriam todos os nossos problemas é reconfortante. O único problema é que se trata de uma ideia autoritária, palavra que faltou no editorial.

Por trás de todo o seu discurso democrático, Luis Roberto Barroso tem uma ideia autoritária do papel do STF. Como bem aponta o editorial do Estadão, sua pretensão é substituir a política, o embate de posições a respeito das várias questões nacionais. O STF seria esse “coordenador-mor” do país, na feliz expressão do editorialista. Sempre, claro, com a boa intenção de “empurrar a história” na direção correta.

No caso específico, a Suprema Corte definiu a situação dos presídios como um “estado de coisas inconstitucional”. Claro, sem dúvida. Assim como se constituem “estados de coisas inconstitucionais” as submoradias, o analfabetismo (incluindo o funcional), as filas ultrajantes no SUS, a falta de saneamento básico etc etc etc. Para todos esses problemas nacionais, que aviltam a dignidade humana, o STF vai exigir “planos” do Executivo, com prazo certo e a serem homologado pelos supremos?

Recentemente, o ministro Alexandre de Moraes determinou que o Executivo elaborasse um “plano” para lidar com a população sem-teto. Fazer planos é a coisa mais fácil. O papel aceita tudo. O problema sempre está em colocar o plano em prática e medir seus resultados. Os ministros do STF vão também acompanhar a execução dos planos? Com que estrutura? Se não forem cumpridos, qual será a punição? Impeachment? Essa moda de “mandar fazer planos” parece mais uma forma de parecer preocupado com os problemas nacionais do que efetivamente trabalhar para resolvê-los.

O problema fundamental do país é a sua pobreza. Se o Brasil tivesse a renda per capita, digamos, da França, com certeza haveria mais recursos para manter presídios dignos. Com recursos escassos sendo disputados a tapa no Congresso, não deveria surpreender que reste muito pouco para os presídios. E não há sentença judicial que resolva.

Quer o judiciário ajudar a resolver o problema? Trabalhe na direção de aumentar a segurança jurídica no país. A insegurança jurídica é um dos principais pontos do chamado Custo Brasil, que diminui a produtividade e impede o país de crescer. Mas os luminares do Supremo preferem “empurrar a história” com sentenças inócuas.

Isso é política

Qual a diferença entre o PL das fake news e a PEC da reforma tributária? Ambos tiveram amplo apoio do governo, inclusive com liberação de verbas, e o trator de Arthur Lira funcionando a todo vapor. No entanto, o PL das fake news, que precisava de maioria simples para a sua aprovação (257 votos) foi engavetado, ao passo que a PEC da RT foi a votação e recebeu nada menos do que 382 votos. Qual a diferença?

A diferença é o teor da lei que estava sendo discutida. Por incrível que possa parecer, o Congresso é o lugar onde se aprova leis, e o seu conteúdo importa. No caso da PL das fake news, havia uma carga ideológica grande, envolvia valores como liberdade de expressão, e o seu conteúdo era ruim mesmo, inviabilizando o funcionamento normal das redes sociais no Brasil, como tive oportunidade de comentar aqui. Já no caso da PEC da RT, apesar de todo o esforço bolsonarista de lhe atribuir um caráter ideológico (seria a ante-sala do comunismo, nada menos que isso), trata-se de um texto técnico e político, que envolve a forma de tributar no Brasil. Assim, o texto, com todas as demasiadas exceções previstas, foi levado a votação e conseguiu convencer 382 deputados.

Por mais que se tenha uma visão do Congresso como um grande balcão de negócios (e é mesmo), ainda assim a política tem o seu papel. Há coisas inegociáveis, como demonstrou a PL das fake news. E há coisas que, com as devidas adaptações, (e haja adaptações no texto dessa PEC), é possível negociar. Só fica à margem de negociações quem quer se manter puro em seu reino de virtude. Mas esse reino não pertence a este mundo, onde as coisas são decididas, como demonstraram os 382 votos de ontem. Isso é política.

Democracia antisséptica

Já contei essa história, mas vou contar novamente, porque tem muita gente nova por aqui.

Na época das eleições de 2014, eu tinha um colega de trabalho que era originário do interior da Bahia. Durante a campanha, ele foi visitar a família, e voltou contando que viu um carro de som percorrendo as ruas da pequena cidade, com o locutor informando a população que Aécio Neves, se eleito, iria acabar com o Bolsa Família. Não precisa de zapzap pra espalhar feiquenius.

Ainda naquela campanha, um filmete que ficou famoso mostrava a comida sumindo da mesa de uma família pobre, caso a proposta de autonomia do Banco Central, defendida por Marina Silva, fosse aprovada.

Isso se chama discurso político. No mundo ideal de Pedro Doria, no entanto, não há espaço para o discurso político. Na democracia de Pedro Doria, os candidatos devem passar pelo escrutínio das agências verificadoras de fatos, que definirão o que pode e o que não pode ser dito. É a democracia da censura do bem.

Pedro Doria, no entanto, também faz um discurso político. Sua afirmação de que Bolsonaro tem “uma máquina publicitária exclusivamente baseada na mentira” não passaria pelo filtro de uma agência verificadora de fatos. Aliás, a menção ao grupo de Zap dos empresários bolsonaristas é bem significativa: precisamos tomar cuidado com o que escrevemos até em grupos fechados. Essa é a democracia segundo Pedro Doria.

Os candidatos “democratas” (Lula, Ciro e Tebet) precisam, segundo Pedro Doria, reagir à desinformação. Como se fossem paladinos da verdade e do bem, e não políticos que lançam mão, o tempo inteiro, de narrativas que não passariam pelo crivo de agências verificadoras. Acho Bolsonaro um pulha (pra escrever um adjetivo aceitável nesse espaço família). Mas de quem tenho realmente medo é desses paladinos do bem, que querem construir uma democracia antisséptica, onde a política não tem vez.

A fábula do articulador político

Neste curto artigo, Carlos Pereira faz picadinho da fama de Lula como grande articulador político, aquele que pode liderar um ”presidencialismo de conciliação”, no dizer do economista Nilson Teixeira. Mais uma fábula não suporta a luz fria da análise política. O que restará no final?

Dou a mão à palmatória

Escrevi o post “Caiu a ficha” pouco menos de 3 meses após a posse de Bolsonaro. Foi uma epifania, quando uma realidade se faz clara diante dos olhos: Bolsonaro não iria negociar com o Congresso.

Foram muitas as críticas que vinha recebendo de bolsonaristas quando sugeria que ele talvez devesse conversar com os parlamentares para empurrar sua agenda. Enfim, fazer política.

Mas “fazer política” era sinônimo de “fazer negociata”, e isso Bolsonaro jamais faria.

Bem, eu errei, dou minha mão à palmatória. Acreditei nos bolsonaristas e, nos 3 cenários que tracei no post, em nenhum deles previ o que aconteceu ontem no Congresso. Pouco menos de 2 anos depois, Bolsonaro e a fina flor do Centrão estão umbilicalmente ligados.

Bolsonaristas-raiz estão chateados? De maneira nenhuma! Tudo sempre é parte de um “grande plano” para implementar a agenda do bolsonarismo, o que quer que isso signifique.

Chateado estou eu, por ter feito uma análise política porca e ter sido humilhado pelos fatos. Peço desculpas aos meus leitores.

Política e oportunismo

É simplesmente muito difícil acreditar que um presidente eleito com mais de 57 milhões de votos, razoavelmente popular, com uma legião de fãs capazes de comprar brigas nos mais diversos fóruns e arenas, aliado de uma penca de igrejas neopentecostais, não tenha conseguido arrumar 500 mil brasileiros dispostos a apoiá-lo na formação de um partido. Muito improvável. Esse partido não saiu porque Bolsonaro não quis. Fez corpo mole. A questão é: por que?

Ter um partido dá muito trabalho. A vida partidária dá muito trabalho. Precisa coordenar, conversar, convencer, juntar pontos de vista diferentes. Não é a praia de Bolsonaro. Ele é um lobo solitário.

Poucos se lembram, mas na eleição de Maia para a presidência da Câmara em 2017, Bolsonaro concorreu e levou míseros 4 votos, ficando em último lugar. Perdeu para os votos em branco (5) e para Luiza Erundina (10 votos), a candidata com a segunda pior votação. Não fazia questão de ser muito popular entre seus pares.

Ocorre que um partido político é uma reunião de… políticos! Se a pessoa não se dá bem com políticos, não vai conseguir ter vida partidária. Essa foi sempre a vida de Bolsonaro.

Por isso, formar um partido nunca foi, de fato, a prioridade do presidente. Ele prefere encontrar outro hospedeiro, quer dizer, outro partido, para poder se candidatar à reeleição em 2022. Se fosse possível concorrer sem ter filiação partidária, Bolsonaro provavelmente nem faria questão de se filiar.

E o pior é que, a essa altura do campeonato, não dá nem para vender a imagem do paladino anti-politica, aquele que veio inaugurar uma nova era de decência contra o sistema podre e corrupto. Bolsonaro deve se filiar a um dos partidos do chamado Centrão, aquele que, se gritar, não fica um mermão.

Claro, sempre se pode pensar que tudo isso não passa de mais um lance genial do grande estrategista, em um xadrez 4D a que poucos têm acesso com suas mentes medíocres. Como não consigo alcançar o significado desses movimentos, tudo isso me parece não mais do que oportunismo.

PS.: antes que me perguntem, sim, prefiro políticos que fazem política. Em uma sociedade democrática, não há saída fora da política. O resto é autoritarismo.

Ideias politicamente viáveis

Estou cansado de ouvir que tal e qual proposta é inviável politicamente. Cortar salário de servidor não pode, é inviável. Cortar benefícios fiscais não pode, é inviável. Cortar aposentadorias não pode, é inviável. Nada é viável, tudo é muito difícil politicamente.

Exigem dos economistas soluções que sejam viáveis politicamente. Ora, para que então precisamos de políticos? Os políticos servem justamente para viabilizar politicamente as ideias certas. Se todas as ideias fossem “viáveis politicamente”, não precisaríamos de políticos, certo? Poderíamos ser dirigidos por tecnocratas com ideias politicamente viáveis, do agrado de todos.

Faz falta políticos com P maiúsculo. Faz falta um Churchill, que nos prometa sangue, suor e lágrimas, além da vitória. Faz falta uma Thatcher, que enfrenta mais de um ano de greve nas minas de carvão e dos servidores públicos. Faltam políticos com coragem para fazer a coisa certa. Sobram políticos covardes, que só reclamam da “inviabilidade política”. Mimimi.

Já privatizamos muitas empresas, mudamos a previdência dos funcionários públicos e dos trabalhadores da iniciativa privada, mudamos a CLT. Todos temas espinhosos que, quando tratados com habilidade política, foram resolvidos. Por que não continuar na direção certa? Por que não continuar na direção do aumento da produtividade e de um Estado que sirva o povo brasileiro e não suas corporações?

Não exija dos economistas soluções politicamente viáveis. Exija dos políticos que viabilizem politicamente as ideias econômicas corretas. Isso é o que vai evitar que o barco afunde. O resto é band-aid.

Restrição de poder

Em economia existe um negócio chamado “restrição orçamentária”, que significa mais ou menos o seguinte: você só pode gastar o dinheiro que você tem. Qualquer outro dinheiro terá que ser tomado emprestado. Trata-se de uma lei tão concreta quanto a lei da gravidade.

A esquerda costuma se insurgir contra esse negócio. No discurso da esquerda, é comum ouvir-se que basta “vontade política” para que o dinheiro surja com em um passe de mágica. Então, tudo é prioridade: saúde, educação das crianças, universidades, aposentadorias, tem que ter dinheiro pra tudo. A restrição orçamentária seria só uma desculpa daqueles que estão se locupletando com a situação, que não querem perder seus privilégios. Alguém com verdadeira “vontade política” colocaria as coisas nos seus devidos lugares. Vimos que, quando a esquerda chegou ao poder, não houve “vontade política” que fosse capaz de revogar a restrição orçamentária.

Pois bem.

Temos um fenômeno semelhante na política. Vou chamá-lo de “restrição de poder”. A restrição de poder consiste no fato de que ninguém é capaz de exercer o poder sozinho. O poder deve sempre ser compartilhado. Em nosso arranjo constitucional, por exemplo, o poder Executivo é exercido pelo presidente e o poder Legislativo é exercido pelo Congresso, ambos legitimamente escolhidos em eleições que seguem determinadas regras. Nesse arranjo, o poder Executivo até sugere mudanças nas leis, mas quem tem a caneta para aprovas as leis é o poder Legislativo. Para que o poder Executivo consiga fazer aprovar as suas sugestões no Congresso, deve repartir o seu poder com os congressistas, os donos da caneta. É assim que funciona a “restrição de poder” no Brasil e em grande parte das democracias.

Há pessoas de muito boa vontade que se insurgem contra essa restrição. Para elas, bastaria “vontade política” para que a restrição de poder simplesmente desaparecesse. Bolsonaro encarnaria essa “vontade política”.

Não, a “restrição de poder” não vai desaparecer, assim como a “restrição orçamentária” não vai desaparecer. Existe restrição de poder inclusive em ditaduras. Que o diga Maduro, que precisa repartir o butim com os militares. Achar que “vontade política” irá isentar o Executivo de repartir o poder é uma ilusão. A mesma que acomete a esquerda quando ignora a “restrição orçamentária”.

O Centrão é o atual demônio da política brasileira, o conjunto de deputados que impede o governo de governar para o bem do Brasil. O curioso é que o Centrão não é oposição. Oposição é aquela parcela de deputados que não está disposta a negociar pedaços de poder em troca de apoio. Se o Centrão fosse oposição, não estaríamos perdendo nosso tempo discutindo. Não vejo ninguém protestando contra os 140 deputados do PT, PDT, PSOL. O alvo dos protestos é o Centrão. E por que?

Porque, por algum motivo, exige-se do Centrão apoio sem compartilhamento de poder. Mas isso vai contra a lei da “restrição de poder”. Não tem porque o Centrão votar com o governo se não é sócio do governo. Essa é a restrição. E não tem “vontade política” que dê jeito nisso.

Os desafios da política

Bolsonaro distribuiu hoje a seus grupos no WhatsApp um texto de origem anônima. A sua distribuição pelo Presidente da República só tem duas interpretações: ou ele está preparando um golpe, ou está preparando a sua renúncia.

Vamos começar pelo que o texto tem de correto: de fato, o Brasil (e o governo) é refém de “corporações com acesso privilegiado ao orçamento público”. “Políticos, servidores-sindicalistas, sindicalistas de toga, grupos empresariais bem posicionados nas teias do poder” formam o grupo que impede o Brasil de ser “governado de acordo com o interesse dos eleitores”.

Sim, o Brasil é refém de corporações, que defendem com unhas e dentes o seu quinhão no orçamento. Mas o texto, a partir daí, é de um primarismo político que mostra o quanto Bolsonaro, ao divulgá-lo, não está preparado para a tarefa que o povo lhe delegou.

Segundo o texto, “Bolsonaro provou que o Brasil, fora desses conchavos, é ingovernável”. Sim, o Brasil é ingovernável quando o presidente age como um imperador, desprezando o fato incontornável de que, em um país com mais de 200 milhões de habitantes, há pessoas que pensam de maneira diferente da sua e de seu grupo. O Congresso nada mais é do que o espelho da sociedade: multifacetado, com interesses divergentes, e que precisa de um norte comum para caminhar para uma meta. Xingar constantemente seus adversários e, pior, seus potenciais aliados, não fará o Brasil ser mais governável. O sectarismo nunca será a melhor forma de lidar com a diversidade.

Há bandidos no Congresso? Com certeza. Assim como há bandidos nas Forças Armadas, entre os médicos, entre os advogados, entre os professores, no mercado financeiro, enfim, em todo lugar onde há seres humanos. Há gente boa no Congresso? Com certeza também! Mas Bolsonaro não parece interessado nisso. Sua “nova política” é basicamente enviar o que acha correto ao Congresso, e que este carimbe a vontade do imperador. Se não o faz, é porque está defendendo interesses inconfessáveis.

Por exemplo, o autor do texto diz que “nem uma simples redução do número de ministérios pode ser feita. Corremos o risco de uma MP caducar e o Brasil ser OBRIGADO a ter 29 ministérios e voltar para a estrutura do Temer”. Ora, e quem disse que a estrutura proposta por Bolsonaro é a melhor para o País? Por que o Congresso precisa aceitar aquilo que emana do augusto panteão da justiça? Bolsonaro não negocia, não tenta convencer. Sua tarefa se dá por cumprida ao enviar o texto para o Congresso, este que cumpra o seu dever e aprove a vontade do imperador. E ai se não aprovar. Restará provado que o Congresso, em nome das corporações, “quer, na verdade, é manter nichos de controle sobre o orçamento para indicar os ministros que vão permitir sangrar estes recursos para objetivos não republicanos”.

Pois é. O Congresso quer manter nichos de controle sobre o orçamento. No que está muito certo. Os imperadores Pedro I e Pedro II tinham o controle sobre o orçamento, e só a muito custo o Congresso conseguiu avançar sobre este controle que, de outra forma, seria exercido de maneira ditatorial por uma única pessoa.

E se o Congresso tiver uma ideia melhor? Afinal, foram tão eleitos quanto Bolsonaro. Ou Bolsonaro é sempre “do bem” e o Congresso é sempre “do mal”? Conhecemos um partido que se colocava como a quintessência da virtude e vimos onde fomos parar. Há interesses corporativos? Com certeza! Assim como há interesses legítimos. Cabe a um estadista separar o joio do trigo, negociando, cedendo, procurando soluções de compromisso. Chamar todo mundo fora de seu grupinho de ladrão não ajuda em nada, para dizer o mínimo.

O autor do texto faz uma confusão dos diabos ao tentar provar que o Brasil é “refém” das corporações, independentemente da coloração ideológica do presidente. Cita como exemplo o fato de FHC ter “liberado” o câmbio dois meses depois de reeleito, mesmo tendo prometido segurá-lo. Ora, soltar o câmbio foi uma necessidade matemática, as reservas internacionais tinham simplesmente acabado! Em que a liberação do câmbio em 1999 ajudou as corporações? Mistério. Outro exemplo: “Lula foi eleito criticando a política de FHC, mas fez a reforma da previdência e aumentou os juros”. Ora, o que isso tem a ver com as corporações? Na verdade, a reforma da previdência de Lula desafiou as corporações do funcionalismo público (houve até invasão do Congresso). E o governo Lula, após ter aumentado os juros, voltou a diminuí-los para patamares abaixo dos vigentes no governo anterior, menos de um ano depois da posse. Aumentou os juros para agradar as corporações e diminuiu os juros também para agradar as corporações? Mais um exemplo: “Dilma foi eleita criticando o neoliberalismo, e indicou Joaquim Levy”. Bem, Dilma indicou Levy apenas 4 anos depois de sua primeira eleição. E o fez porque o dinheiro simplesmente acabou. Onde estão as corporações aqui?

A ideia do autor anônimo é de que todos os presidentes estão fadados a cometerem estelionato eleitoral, independentemente de sua coloração ideológica, porque pressionados pelas corporações, os verdadeiros donos do Brasil. Ora, esse é um argumento pueril. Significa que as corporações se contradizem ao longo do tempo (por exemplo, são a favor da reforma da previdência com Lula e contra a reforma da previdência com Bolsonaro) só para mostrarem quem realmente manda no Brasil, mesmo que seus interesses sejam contrariados. Não faz o mínimo sentido.

O autor do texto agradece a Bolsonaro por ter provado “de forma inequívoca que o Brasil só é governável se atender o interesse das corporações”. Bem, e daí? Qual a solução? Como sair dessa armadilha? Bolsonaro era a promessa de sairmos dessa armadilha, não a promessa de constatarmos que a armadilha existe. Se não tem jeito de sair da armadilha, como afirma o autor do texto, então Bolsonaro é o cara errado no lugar errado. Restam apenas duas saídas: virar a mesa ou desistir. Não há uma terceira.

Já vai tarde

O deputado Tiririca renunciou à vida pública. Anunciou que não vai concorrer a um terceiro mandato. Sai do Parlamento para voltar ao Circo.

Fez um discurso emocionado. Disse que tem vergonha dos deputados (mas não de todos, fez questão de não generalizar, mas já generalizando). Afirmou que sai de cabeça erguida, pois cumpriu com o seu dever, que foi o de votar pelo povo. Pediu aos deputados que pensassem mais no Brasil, no povo pobre, e não nos seus egos. Que deixassem de brigas e de rixas. Chegou a dizer que sua pobre mãe está internada em um hospital público, pois não tem plano de saúde! (Se o salário de deputado + o salário de artista nacionalmente conhecido não é suficiente para pagar uma Prevent Senior para a mãe, então estamos todos perdidos mesmo).

Tiririca foi eleito duas vezes para o Parlamento brasileiro, em ambas com mais de um milhão de votos. Não estou na cabeça de quem votou nele, mas imagino que tenha sido, principalmente, porque estava cansado dos políticos tradicionais, e Tiririca era uma piada bem adequada para o Congresso que temos. Alguns, inclusive, podem ter pensado que, não sendo um político tradicional, poderia, quem sabe, “fazer algo pelo povo”.

Este foi, aliás, o mote do discurso de despedida de Tiririca: ele fez algo pelo povo, povo este esquecido pela maior parte dos parlamentares.

Se eu fosse escolher um exemplo de discurso demagógico, seria este. Discurso de quem não entendeu como funciona a política e acha que tem a solução de todos os problemas do país: basta “não pensar em si mesmo e pensar no povo”.

Certa vez, ouvi Mario Covas dizer que se orgulhava de sua condição de Político. Assim mesmo, com P maiúsculo. O que é um Político? O que é a Política?

Política é a arte da conciliação de interesses divergentes.

Veja: se em uma casa, dentro de uma família, muitas vezes é difícil fazer convergir a opinião sobre um programa a se fazer, sobre o que comer, enfim, sobre tantas coisas, imagine em grupos maiores. Imagine, enfim, em um país, com tantas cabeças com ideias diferentes. E isso porque, em uma casa, não há democracia: pai e mãe mandam, ainda que, com sabedoria, possam escutar os filhos.

Em uma democracia, é preciso se chegar a maiorias. Para isso, o formato consagrado é a existência de um Parlamento, eleito diretamente pelo povo. Estes são os representantes que refletirão as diversas ideias do que é bom ou ruim para o povo.

Tiririca acha que fez um bom trabalho simplesmente porque compareceu a todas as sessões e sempre votou “a favor do povo”. Não entendeu nada. Fazer política não é o mesmo que trabalhar em uma fábrica, onde o operário padrão não falta e encaixa uma peça na outra com perfeição. Fazer política é procurar juntar uma maioria em torno de suas ideias. Conversar, discursar, propor, compor. Estar de corpo presente e apertar um botão nas votações é a menor parte desse trabalho.

Tiririca, na verdade, fraudou o voto que recebeu. Seu único discurso no Parlamento foi este último, em que anunciou sua saída da vida pública. Saída de um lugar onde nunca verdadeiramente entrou. Pois nunca foi um Político com P maiúsculo. Foi somente um puxador de votos, papel a que se prestou com prazer.

Sua pretensão de ter votado sempre com o povo é a mesma de todos os parlamentares: todos acham que estão votando pelo povo. Na verdade, todo mundo acha que suas ideias são as melhores. E é para isso que existe o Parlamento: para o embate entre as melhores ideias de todo mundo. Pretender ser o único que votou sempre “pelo povo” é quase uma pretensão messiânica.

Claro, há bandidos, pessoas ruins. Como as há em qualquer ramo profissional. É da natureza humana. Somos homens, não anjos. A solução para isso não é apelar para que “esqueçam seu ego” e “façam algo pelo povo”. Isso é pedir um super-homem, coisa que não se pede em outras profissões. Coisa que só existe como pretensão em regimes totalitários.

Não melhoraremos a qualidade do Parlamento com super-homens ou com anjos. A solução passa por consertar a estrutura de incentivos perversos vigente. Quanto mais estatais e ministérios e cargos de confiança houver, maior será o toma-lá-dá-cá. Quanto menos dessas sinecuras houver, menor será a atração para políticos que querem se locupletar.

Tiririca se coloca como o homem humilde que tentou fazer alguma coisa pelos pobres, mas foi triturado pela máquina. Na verdade, foi um embuste, um cacareco que se levou a sério, mas não estava minimamente preparado para fazer Política. Já vai tarde.