Três textos publicados no Estadão de ontem e hoje estão intimamente relacionados, e demonstram como os americanos já estão voltando pelo caminho que nós aqui ainda estamos percorrendo.
O primeiro é do colunista Fareed Zakaria, publicado ontem, conclamando os democratas a prestarem mais atenção a pautas que realmente fazem a diferença na vida das pessoas e a deixarem de lado os “pronomes neutros”, a imigração ilegal, a demonização da polícia e outras pautas que interessam a minorias minúsculas e irritam uma parcela significativa da população que, de outra forma, estaria disposta a votar nos democratas.
O segundo texto é da Economist, traduzido hoje no Estadão, defendendo exatamente a mesma ideia.
O terceiro texto é de Luiz Sérgio Henriques, acusando a “extrema-direita” brasileira de atacar “valores seculares da modernidade”. Sob esse rótulo, sabemos que se abrigam exatamente as mesmas ideias que Zakaria e a Economist estão agora conclamando os liberais americanos a colocarem em segundo plano para terem alguma chance eleitoral.
Aqui no Brasil, a sorte de nossa esquerda é ter um Lula, e não um Biden, liderando a agenda. Lula pode ser tudo, menos politicamente correto. Isso que Zakaria e a Economist estão defendendo, Lula sabe de velho. Se fosse depender de intelectuais como Luís Sérgio Henriques, Bolsonaro não teria com que se preocupar, venceria todas as eleições com os pés nas costas.
Hoje fui apresentado ao termo “positividade tóxica”. Seria mais ou menos como desfilar o seu otimismo e alto astral diante de um povo que só faz sofrer.
Fiquei preocupado. Que outras atitudes estariam, de alguma forma, microagredindo as pessoas? Com o objetivo de prestar um serviço de utilidade pública, resolvi então criar esta PÁGINA DA PROBLEMATIZAÇÃO.
Na PÁGINA DA PROBLEMATIZAÇÃO vocês poderão checar se determinadas palavras são adequadas ou se, por outro lado, podem, de alguma maneira que nos passa despercebida, significar uma ofensa a uma minoria ou classe social.
Como vai funcionar? Muito fácil. Você posta uma frase nos comentários, e eu respondo com a problematização. Pode ser qualquer frase. Veja alguns exemplos:
Sua frase: Bom dia!
Minha resposta: Só pode ser um bom dia pra você, que pertence a uma elite privilegiada.
Sua frase: Gosto de macarrão.
Minha resposta: Sim, entendi o seu preconceito contra alimentos de matriz africana.
Sua frase: Minha avó usa dentadura.
Minha resposta: Muito triste você humilhar quem não pode comer direito porque não tem o privilégio de poder comprar uma dentadura.
Acho que deu para entender. Fica aqui, então, o convite para conhecer e usar esta PÁGINA DA PROBLEMATIZAÇÃO. A área de comentários está de portas abertas para as frases microagressoras dos amigos.
O economista Joel Pinheiro da Fonseca escreveu ontem, na Folha de São Paulo, artigo, para dizer o mínimo, polêmico. O seu inteiro teor vai a seguir. Volto a seguir.
Vou começar concordando com o articulista: a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Como todo direito, está limitado pelo direito alheio. Assim, não é permitido usar a liberdade de expressão para caluniar ou difamar alguém, por exemplo. Faço algumas considerações sobre os limites da liberdade de expressão no artigo Redes Sociais e Poder Político.
Se Joel Pinheiro está correto em sua premissa inicial, o restante de seu artigo escorrega a toda velocidade em direção ao abismo. Vejamos.
Em sociedades democráticas, o problema do respeito pelo direito alheio já foi resolvido há tempos: há um sistema judicial que serve para julgar o balanço entre os direitos dos indivíduos, segundo uma regra escrita, chamada lei. Assim, por exemplo, se alguém se sente atingido por algo que alguém falou ou publicou, tem à disposição a justiça para resolver o assunto.
Mas não é a este tipo de crime a que Joel Pinheiro se refere. O articulista aponta crimes contra a saúde pública, de racismo, contra a comunidade LGBT, de machismo, de fanatismo religioso e de desigualdade social.
Bem, alguns desses crimes apontados são tipificados pelo código penal brasileiro. Por exemplo, racismo. Ou preconceito contra pessoas de orientação homossexual, recentemente equiparado ao racismo pelo STF. Há crimes contra a saúde pública também, como quando, por exemplo, um médico atua sem as devidas licenças. Crimes de machismo, fanatismo religioso ou de desigualdade social ainda não foram tipificados, para desespero daqueles que querem um mundo melhor.
Mas o problema não é exatamente a questão da tipificação penal. Fosse assim, o articulista gastaria o seu verbo pedindo modificação no código penal. Mas não é disso que se trata. A justiça de um regime democrático não é suficiente para fazer justiça. É preciso ir além.
Neste ponto, reproduzo o parágrafo que é chave para entender a ideia do articulista: “É uma visão ingênua —embora nada inocente— acreditar num debate público idealizado, em que o que importa são argumentos. Na realidade, opiniões refletem os conflitos de poder da sociedade, mal disfarçados por construtos teóricos”.
Fica claro que Joel Pinheiro quer criminalizar a opinião, nada menos. A opinião seria apenas um instrumento de poder, e o debate de ideias apenas uma forma de disfarçar o exercício do poder por parte de grupos dominantes. Não haveria um legítimo debate de ideias entre iguais, mas somente manipulação, visando à manutenção do status quo.
Joel Pinheiro exemplifica o que quer dizer sem dar nome aos bois (o que não deixa de ser um sinal de covardia), ao fazer referência ao artigo de Antônio Risério sobre o racismo de negros contra outras raças. Segundo o articulista, “Quando um branco questiona consensos estabelecidos da pauta antirracista, isso não é liberdade de expressão, é racismo”, pois “Alguns buscam a igualdade e o bem comum; outros, manter seus interesses e privilégios”. Assim, fica o mundo dividido entre “bons” e “maus”, e não há como haver debate de ideias legítimo entre esses dois grupos.
Já escrevi sobre esse artigo de Antônio Risério por ocasião do manifesto dos jornalistas da Folha, que também tinha como objetivo interditar a livre circulação de ideias. Comentei, na ocasião, que a tese do racismo estrutural é uma interpretação possível da história, longe de ser uma verdade esculpida nas tábuas dos 10 mandamentos. Trata-se de um “consenso estabelecido da pauta antirracista” apenas entre aqueles que concordam com a tese. Mas Joel Pinheiro explícita aquilo que está somente sugerido no manifesto dos jornalistas: quem não concorda com a tese está interessado apenas em “manter seus interesses e privilégios”.
Neste ponto, devemos ser gratos a Joel Pinheiro. Confesso que é o primeiro artigo absolutamente claro sobre a natureza do movimento politicamente correto. Por trás da capa da virtude de recorte vitoriano, que aponta o seu dedo imaculado para todos os podres do mundo, existe uma vocação autoritária, explicitada na interdição ao debate de ideias. Consensos são fabricados deixando de fora aqueles que não concordam. Assim fica fácil.
Todos os regimes autoritários, sem exceção, buscam “o Bem”. Para isso, calam a voz dos dissidentes, que sabotam a marcha para “um mundo melhor possível”. O bravo articulista, sem receio de seguir na estrada que abriu, chega às últimas consequências do seu raciocínio: seria preciso escolher um “comitê de notáveis”, para “julgar previamente artigos, podcasts ou vídeos que possam ter conteúdo problemático”. Há que se reconhecer a coragem de Joel Pinheiro em levar às últimas consequências a sua tese. Desconfio que seus pares, apesar de poderem concordar totalmente com ele, lamentarão tamanho grau de transparência, que desnuda, como nunca antes, a verdadeira natureza dos monopolistas do bem.
Como nota cômica, fico imaginando esse “comitê de notáveis” (pagos pelo Estado, por suposto, ainda que o articulista não tenha entrado nesse nível de detalhe) tendo que avaliar milhares de artigos escritos diariamente. Haja leitura dinâmica!
Confesso que a ideia do “comitê de notáveis” me seduz, principalmente quando leio artigos como este. Estivesse eu em um comitê deste tipo, daria bola preta para Joel Pinheiro.
Escrevo este Post Scriptum depois de ouvir que este texto seria irônico. Se assim o for, peço publicamente desculpas a Joel Pinheiro e parabenizo-o por expor, de maneira brilhante, o absurdo a que pode levar a cultura do politicamente correto.
Qualquer texto irônico deve pressupor que o leitor conheça as convicções do autor, de modo que o texto seja reconhecido como o oposto de suas convicções. E, para que funcione, o texto precisa ser, ele todo, irônico. Não faz sentido colocar premissas em que o autor acredita e depois desmoraliza-las com as suas consequências. Obviamente, o tal “comitê de notáveis” é uma ideia de tal modo absurda, que deveria soar o alarme da ironia, assim como a forma como o autor se refere à Folha. Ocorre que esse texto veio logo em seguida a um manifesto de jornalistas que pedem justamente isso, que a Folha funcionasse como uma espécie de “comitê de notáveis”, barrando artigos não alinhados. E o manifesto dos jornalistas não foi irônico. Assim, para alguém que não acompanha de perto a produção de Joel Pinheiro, a hipérbole do “comitê de notáveis” se perdeu no raciocínio construído de maneira bastante alinhada com a agenda hoje dominante.
Quando um texto irônico precisa ser acompanhado de um “just kidding”, é porque o autor, por algum motivo, deu margem a que se fizesse outra interpretação. Claro que, ao escrever, o autor confia na inteligência do leitor. Mas o leitor precisa estar municiado de informações para interpretar corretamente o texto. E, neste caso, se o texto for realmente irônico, eu não estava.
Por fim, mesmo na hipótese do texto irônico, nada do que escrevi no post se perde, a não ser as críticas ao autor. Pelo contrário: se o texto for irônico, o autor se junta às críticas colocadas no post.
A Economist repercute uma pesquisa interessante, realizada pelo instituto Ipsos, por encomenda do Kings College de Londres. 23 mil pessoas foram questionadas em 28 países. A pergunta era a seguinte (tradução livre minha):
“Algumas pessoas pensam que se deve ter cuidado ao falar com ou sobre pessoas de diferentes origens ou condições. Outras pensam que muitas pessoas simplesmente se ofendem muito facilmente. Onde você se situa nessa escala?”
A escala vai de 0 a 7, sendo 0 se você acha que o mundo está muito chato e toda essa onda de politicamente correto é um porre e 7 se você acha que as pessoas precisam ser respeitadas em seus sentimentos e se devemos tomar cuidado com as palavras usadas.
O resultado está no gráfico abaixo, para alguns países selecionados pela Economist, o Brasil incluído.
Com base nesse gráfico, fiz o seguinte cálculo: subtraí o percentual de notas 6 e 7 do percentual de notas 0 e 1. Escolhi essas notas porque mostra mais convicção nas duas pontas do espectro. Fiz um outro gráfico, onde os resultados mais positivos indicam povos que acham que o mundo está ficando muito chato e resultados negativos indicam povos politicamente corretos.
O Brasil ficou entre os países mais politicamente corretos. Curiosamente, e esta é uma característica para a qual a Economist chamou a atenção, pessoas de países mais democráticos tendem a ser menos politicamente corretos, enquanto pessoas de países mais autoritários tendem a ser mais politicamente corretos, o que pode estar ligado, segundo a revista, ao fato de as pessoas simplesmente terem mais cuidado ao falar, de modo geral. Na verdade, a Economist faz a correlação com a liberdade de imprensa, o que vem a dar na mesma.
Coluna do Globo lista 10 palavras que todo mundo deve deixar de usar em 2020. Na verdade, são 14 no total.
Repare no tempo verbal: “deve”. Trata-se de uma ordem, não de uma sugestão. Está determinado pela polícia da linguagem.
Algumas até fazem sentido, outras são ridículas. Mas não é esse o ponto. A questão é que há preconceitos do bem e preconceitos do mal. O especial do Porta dos Fundos, por exemplo, não mereceu reparos por parte da polícia da linguagem. Nesse caso, trata-se de liberdade de expressão.
Nessa linha, também criei uma lista de “palavras proibidas”, procurando proteger grupos que não alcançaram a proteção da polícia da linguagem oficial. São exemplos:
– Alemão: essa forma de chamar as pessoas que nasceram na Alemanha na verdade é uma ofensa aos loiros, que sofreram a infância inteira sendo chamados de alemães. O morro do Alemão deve passar a chamar-se Morro do Germânico.
– Magrela: essa forma de se referir às bikes é preconceito contra os magros
– Papai-com-mamãe: o que parece ser uma inocente forma de denominar algo simples ou fácil, na verdade é preconceito contra casais que só fazem sexo em casa.
– Automóvel: apesar do “auto” significar “automático”, a palavra soa alto, uma ofensa aos baixinhos. Vamos usar carro.
– Supermercado: coloca em posição de inferioridade os mercadinhos de bairro, que devem ser respeitados como expressão da cultura nacional. Mercado é mercado, não importa o tamanho.
– Azul: uma ofensa ao amarelo. A partir de agora, tudo é bege.
Infelizmente não tenho o domínio da língua como o Eduardo Affonso, que poderia pensar em muitos outros exemplos de palavras e expressões que parecem inocentes só na superfície e devem ser evitadas.
O eleitor vota no fanfarrão só para tirar um sarro da cara dos adultos – João Pereira Coutinho
Em 2016, pouco antes da eleição de Donald Trump, dizia-me um colega universitário: “Detesto Trump. Mas, se eu fosse americano, teria votado nele”.
Caí da cadeira. Ou quase. Ele explicou melhor: “Votaria nele só pelo prazer de criar confusão”. Registrei.
A partir daquele dia, nunca mais levei a sério as explicações clássicas para o chamado “populismo”. Sim, a crise econômica tem a sua importância. O desemprego também. E o medo do crime e da imigração irrestrita ajudam a festa.
Mas existe algo de infantil, de inconscientemente infantil, no eleitorado que gosta de votar no fanfarrão só para tirar um sarro da cara dos adultos.
É o momento “Apocalypse Now”, em homenagem ao coronel do filme que amava o cheiro de napalm pela manhã. Há muitos eleitores que votam como votam só para sentir esse cheiro de vitória.
Um simples palpite meu? Longe disso. Li recentemente um estudo publicado no Journal of Social and Political Psychology (ver pormenores técnicos no fim) no qual os pesquisadores avaliaram o impacto do “politicamente correto” na vitória de Trump. Por “politicamente correto”, entenda-se: a imposição de restrições comunicacionais para não ofender grupos, minorias etc.
Os autores concluem que o “politicamente correto” tem um impacto positivo no curto prazo: a “moralização” do discurso faz com que a maioria se adapte às expectativas da sociedade. Exemplo: “Trump? Que horror!” E depois vem a longa lista de vícios do homem (racismo, homofobia, misoginia, mau gosto capilar etc.).
O problema é que o “politicamente correto” tem resultados desastrosos no longo prazo. Isso se deve a uma reação emocional dos eleitores: cansados das restrições impostas pelos sacerdotes do “politicamente correto”, os indivíduos reclamam a sua liberdade e votam no candidato que nunca se submeteu aos ditames da polidez. Mesmo que esse voto seja contrário aos melhores interesses da democracia.
Por outras palavras: Donald Trump não foi eleito apesar dos seus defeitos. Ele foi eleito por causa deles. Quando o presidente americano afirmava, com típica soberba, que podia matar qualquer pessoa na 5ª Avenida e ser eleito na mesma, ele não exagerava.
Aliás, podemos dizer mais: quanto maiores os defeitos, maior o apoio. Isso explica o motivo por que Trump, depois de eleito, não adotou uma postura mais “presidencial”.
Essa metamorfose seria o suicídio de uma carreira triunfal. Seria tão absurdo como Coutinho (o jogador de futebol, não eu) dar um tiro no próprio pé.
Mas não é apenas o “politicamente correto” que leva muitos eleitores a experimentar o cheiro de napalm pela manhã. Desconfio que a “sinalização da virtude” também tem um papel relevante.
A primeira vez que encontrei essa expressão foi num artigo de James Bartholomew para a revista The Spectator, corria 2015. Argumentava o autor que “ser virtuoso” é diferente de mostrar aos outros que somos virtuosos.
Pessoas virtuosas nunca publicitam as suas qualidades. E a virtude, nelas, exerce-se por meio de gestos anônimos e até sacrificiais (cuidar de um familiar doente; alienar uma carreira de sucesso para ajudar os mais pobres etc.).
A “sinalização da virtude” é uma corrupção da verdadeira virtude. É mera exibição de “bons sentimentos” para ganhar aplausos (ou likes).
Para usar a linguagem da economia, a “sinalização da virtude” procura transformar a virtude em “bem posicional” —algo que nos distingue dos demais e que nos traz vantagens (simbólicas, sociais, econômicas etc.).
O problema, argumentava Bartholomew, é que os “bens posicionais” despertam a concorrência e levam os outros a tentar suplantar o que era exclusivo em nós.
Exemplo: aquela estrela milionária de Hollywood não está propriamente aterrorizada com Trump. Mas ela sente necessidade de sinalizar o seu horror pelo presidente, em termos cada vez mais elaborados, para se promover como defensora do “bem”.
Esse moralismo militante, onipresente e sufocante cria a atmosfera perfeita para que o napalm seja jogado na cara do establishment.
Dizem os eruditos que o século 21 será o século dos populismos. Talvez tenham razão. Mas, para explicar o fenômeno, não bastam as teorias habituais.
É preciso mergulhar na psicologia das massas para encontrar um velho ditado: na política, como na vida, há momentos em que é preferível perder um amigo a perder a piada.
P.S.: O estudo citado intitula-se “Donald Trump as a Cultural Revolt Against Perceived Communication Restriction: Priming Political Correctness Norms Causes More Trump Support”, de autoria de Lucian Gideon Conway III, Meredith A. Repkea e Shannon C. Houck (Journal of Social and Political Psychology, 2017, Vol. 5 (1), págs. 244-259)
João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.