O enigma da popularidade

Ontem e hoje li várias análises de um fenômeno que mesmerizou a oposição a Bolsonaro: a melhora de sua popularidade no DataFolha. Afinal, como pode o presidente do país que lidera mundialmente a lista de mortes por coronavírus, em meio à recessão mais brutal de toda a história (a recessão de Dilma foi maior, mas espalhada por 2 anos, não 2 meses), além de atacar a democracia, a Amazônia, a Ciência, as mulheres, os negros, os LGBTs, os ateus, o bom, o belo e o justo?

De todos esses assuntos, vou me ater às duas primeiras questões (doença e economia), pois são os elementos novos que, todos esperavam, iriam lançar Bolsonaro no 5o círculo do inferno da impopularidade.

Sobre a epidemia. Para analisar o fenômeno, precisamos procurar entender a percepção. Para que um governante de um país pobre pudesse ser irremediavelmente ligado às mortes, seria necessário ver gente morrendo nas ruas, nas casas, sem tratamento nos hospitais. Com exceção talvez de Manaus no início da pandemia, isso não aconteceu em lugar nenhum. Poucos devem ter morrido por falta de atendimento. Sendo assim, a única possível culpa do governante é não ter tomado medidas para evitar o contágio. E é disto que os a analistas mesmerizados acusam o governo.

Ora, em um país pobre (reitero o adjetivo) as pessoas simplesmente não têm poupança para ficar em casa sem trabalhar. O discurso do presidente, para grande parte da população faz mais sentido. Não estou aqui entrando na seara do certo ou do errado, estou tratando de percepções. Mesmo entre aqueles que tiveram entes queridos morrendo por conta da doença, isso vai ser colocado na conta de Deus, não de Bolsonaro. Afinal, o que o presidente tem a ver com a vida e a morte?

Ainda no campo das percepções, a cobertura jornalística de qualquer fenômeno vai cansando com o tempo. No início, é tudo novidade, os fatores surpresa, espanto, indignação, trabalham a todo vapor. Com o tempo, no entanto, aquele “produto” jornalístico vai perdendo relevância. Quando 1.000 mortes por dia são reportadas por dois, três meses seguidos, começa a ser um novo normal. Li em algum lugar que a população se acostumou com a tragédia. Sim, assim como se acostumou com as 50 mil mortes violentas por ano, também um recorde mundial. O ser humano tem uma incrível capacidade de se adaptar à realidade.

(Abre parênteses: nesse quesito de “acostumar-se”, entram também as notícias da rachadinha e dos cheques na conta da primeira dama. Me faz lembrar um cartoon em que um mágico, no seu primeiro truque da noite, tira uma baleia azul de dentro da cartola. Aquilo deixa todos os espectadores extasiados. No truque seguinte ele tira um coelho, depois faz um truque com cartas, e os espectadores começam a vaiar e ir embora. A baleia azul é o Petrolão – aliás, essa semana o “doleiro dos doleiros” assinou um acordo com o MP se comprometendo a devolver 1 bilhão (!!!). 72 mil na conta da primeira-dama? Sério? Querem que o brasileiro médio preste atenção nisso? Fecha parênteses)

O segundo aspecto é a economia. Sim, a recessão é brutal. Mas os 600 reais do corona voucher foram mais que suficientes para compensar a perda de renda agregada da população. Por mais que suficiente quero dizer que a renda SUBIU ao invés de cair. Que impopularidade resiste a isso? Pode-se perguntar porque então, se a renda subiu, as pessoas não ficaram em casa. A resposta me parece simples: porque a renda continua baixa. Somos um país pobre, lembra?

Uma pandemia que é só mais uma desgraça no mar de desgraças que é a vida do brasileiro pobre, um programa do governo que enche o bolso desse mesmo brasileiro. Não me parece tão difícil assim entender a recuperação de popularidade do presidente. Mas a reação dos “analistas” e “especialistas” tem sido raivosa. Em praticamente todo lugar, acusam o brasileiro de ser imoral. Isso mesmo, imoral. Li em algum lugar que o percentual de pessoas que acham o governo ótimo/bom/regular é o mesmo percentual que não obedeceu às normas de distanciamento social, sugerindo que coincidem no desprezo pela vida humana. Bela forma de analisar a realidade. Assumir superioridade moral certamente não leva a bom porto, como pode experimentar o PT e como agora está experimentando o bolsonarismo, que está tendo que engolir o centrão. Mas isso é tema para outro post.

O que realmente importa

Esqueçam as chamadas dos jornais sobre a última pesquisa Datafolha. O foco das manchetes foi sobre a possibilidade ou não de abertura de processo de impeachment, e o apoio ao ex-ministro Sergio Moro. Isso tudo importa quase nada.

O que importa, de fato, é a aprovação do governo. E essa continua no mesmo lugar que estava em dezembro/2019, última pesquisa Datafolha sobre a aprovação geral do governo Bolsonaro. Quatro meses atrás, a diferença entre ótimo/bom e ruim/péssimo estava em -6 pontos. Na última pesquisa, feita após o affair Moro e o desgaste com o Covid-19, a diferença estava em -5 pontos. Não mudou absolutamente nada.

Mas todos sabemos que a Datafolha é comunista. Vamos aguardar alguma pesquisa que seja idônea.

As condições para o impeachment

Complementando o meu post anterior.

Tivemos até hoje dois presidentes impichados. Nos dois casos, quatro elementos se fizeram presentes:

1) Algo que pudesse ser chamado de crime.

2) Uma recessão profunda.

3) Popularidade muito baixa.

4) Falta de apoio no Congresso.

Trata-se apenas de uma divisão para facilitar a análise, esses 4 fatores se entrelaçam e se causam mutuamente, um pode levar ao outro.

A respeito do primeiro item, lembre-se que não se trata de um julgamento jurídico, mas político. O “crime” pode ser qualquer coisa que seja razoavelmente entendida como crime, não precisa ter a precisão e robustez de um julgamento realizado em um tribunal. Como certa vez ouvi um político descrever, “se você está ao lado de um caixão fechado que fede a defunto, não precisa abrir para provar que o defunto está lá dentro”. Dilma e os petistas gastaram o gogó dizendo que impeachment sem crime é golpe. Quem decide se é crime ou não são os deputados.

No caso de Bolsonaro, se os outros três fatores se fizerem presentes, forjar uma assinatura eletrônica em documento oficial pode ser considerado crime. Esse, eu diria, é o fator menos importante, o mais fácil de arrumar.

Com relação à recessão, ela já está contratada. Bolsonaro tem o álibi do coronavírus, afinal a recessão não foi causada por políticas econômicas desastradas, como no caso de Collor e Dilma. Mas, se a recessão for muito prolongada, e se políticas populistas forem adotadas piorando a situação, essa percepção pode se reverter. Mas isso é mais para frente, não agora.

É para a popularidade que quero chamar a atenção. O gráfico abaixo é um levantamento que mantenho há anos, com base nas pesquisas de opinião do Ibope, Datafolha, CNI (que muda de instituto de pesquisas de vez em quando) e, mais recentemente, XP/Ipespe. Cada ponto é uma média desses institutos.

O gráfico mostra a “popularidade líquida”, ou seja, a diferença entre “ótimo/bom” e “ruim/péssimo” para a pergunta sobre a opinião do eleitor a respeito do governo. Podemos observar que os dois impeachments ocorreram quando a popularidade líquida atingiu a faixa dos -50/-60 pontos. Quatro presidentes atingiram este patamar, mas apenas dois foram impichados. Os dois que não foram contavam com a ausência da quarta condição para o impeachment: falta de apoio no Congresso.

Sarney e Temer se criaram dentro do Congresso, dominando todos os cordões da articulação política, de modo que conseguiram se manter no poder mesmo com a popularidade no subsolo. As condições econômicas sob Temer também ajudaram, pois o país estava se recuperando do desastre da era Dilma.

No caso de Bolsonaro, obviamente lhe falta este domínio do Congresso. A tentativa canhestra de cooptar agora deputados do Centrão é só uma demonstração disso. De modo que, o que lhe resta neste momento, é a popularidade.

Hoje, a popularidade líquida de Bolsonaro está em -14, um pouco desgastada com essa crise do corona. Quanto perderá com a saída do Moro? Precisamos aguardar as próximas pesquisas, mas não acho que irá ultrapassar, em um primeiro momento, algo como -25 ou -30. Trata-se de uma popularidade baixa, mas longe de permitir um movimento de impeachment. Pode ser que a recessão faça o resto do serviço, mas, como disse no post anterior, não vejo condições objetivas, hoje, para o sucesso de um processo de impeachment.

Mídia e popularidade

Pesquisa da XP mostra mais uma queda na popularidade de Bolsonaro. Pela primeira vez, os que avaliam o governo de forma negativa (ruim e péssimo) ultrapassaram os que avaliam o governo de forma positiva (bom e ótimo). Para se ter uma ideia, esse nível de aprovação é o mesmo do governo Dilma após os protestos de junho de 2013 e o de Lula no auge do mensalão. A diferença é que estamos com menos de 5 meses de mandato e não aconteceu nada. Absolutamente nada.

A primeira reação é desqualificar a pesquisa. Afinal, a mídia está interessada em que este governo fracasse, e manipula essas pesquisas para mostrar o resultado desejado. No entanto, no caso, trata-se de uma pesquisa patrocinada pela XP, que não tem interesse em minar o governo, muito pelo contrário: o sucesso de seu negócio será tanto maior quanto mais o governo tiver sucesso em sua agenda.

A segunda reação possível também tem relação com a mídia. Afinal, com o bombardeio que a mídia tradicional vem fazendo, por ter perdido as verbas publicitárias do governo, não há popularidade que resista. O que dizer?

Em primeiro lugar, e menos importante, é o tal “corte de verbas para a mídia tradicional” que teria sido feita pelo governo. Trata-se de uma falácia. Em primeiro lugar, porque em qualquer lista dos principais anunciantes do país, somente a Caixa aparece de vez em quando. Então, qualquer corte de verbas não seria suficiente para “quebrar” uma Globo, por exemplo. Em segundo lugar, temos o discurso de cortes por parte do governo, mas números mesmo, ainda não vi. O que vi sim foi o bafafá em torno do anúncio do BB, que foi veiculado normalmente na mídia tradicional. Então, aparentemente está tudo normal.

Mas esse ponto da publicidade estatal é secundário. A falácia do argumento está na hipótese de que a mídia teria a capacidade de mudar a cabeça do brasileiro. Seríamos como que teleguiados da mídia. Achamos uma coisa, mas o editor do jornal acha outra, e nos convence a mudar de opinião.

Por que trata-se de uma falácia? Porque, por essa linha, teríamos que aceitar que o governo do PT não fez nada de errado, e fomos todos nós manipulados pela mídia para pensar mal do PT. Os petistas se referem à Globo como Globolixo até hoje, porque defendem essa tese. O que achamos?

Por trás dessa tese, está mal disfarçada uma hipótese de superioridade intelectual: a mídia faz a cabeça das mentes mais fracas, mas eu não me deixo enganar, sou mais esperto. Ok, assim é se assim lhe parece.

Veja, não estou negando que a mídia tenha uma agenda própria. Por exemplo, a Globo e toda a mídia tradicional está em campanha descarada pela reforma da previdência, o principal ponto da agenda econômica do governo. O meu ponto é outro.

As pessoas não são folhas em branco, onde a mídia escreve o que quer a seu bel prazer. As pessoas têm ideias e pensam certas coisas e procuram a mídia para confirmar suas ideias, rechaçando aquilo que não lhes agrada. É o que chamamos em finanças comportamentais de “viés de confirmação”. Em relação às “opiniões fortes” que as pessoas têm, a mídia não consegue influenciar, por mais que tente.

Mas existe uma zona cinzenta, onde as pessoas não têm ideias fortes, e onde as notícias podem sim influenciar opiniões. Vou dar um exemplo recente. O ministro da educação afirmou que iria cortar verbas das faculdades que fazem “balbúrdia” e o presidente chamou os estudantes que foram protestar de “ignorantes úteis”. Esses dois são fatos incontestáveis, a mídia não inventou, apenas noticiou. Quem não gosta do governo a princípio achou um absurdo, e quem é fechado com o governo vibrou com essas afirmações. Mas deixando de lado as torcidas organizadas, temos um pessoal no meio, que avalia o governo como regular, e que provavelmente se deixou influenciar por essas falas reverberadas de forma negativa pela mídia tradicional. Esse pessoal do meio não concorda nem discorda dessas falas, apenas pode ter ficado com a impressão de um governo que perde tempo com picuinhas ao invés de trabalhar. Provavelmente, essas falas ajudaram alguns que avaliavam o governo como “regular” a migrar para “ruim”.

Obviamente, a influência da mídia não é zero. Há sim alguma influência, principalmente sobre aquela parte das pessoas que não têm uma ideia firme formada sobre determinados assuntos. Mas é preciso não exagerar essa influência, a ponto de torná-la decisiva para a queda de popularidade de Bolsonaro. É necessário analisar o que está acontecendo. Varrer a coisa para debaixo do tapete da mídia não vai resolver os problemas. Na verdade, vai piorá-los. Foi o que tentaram fazer os petistas, quando a popularidade de Dilma despencou. Espero sinceramente que Bolsonaro não caia nessa armadilha.