Um filme sobre o “mundo do delivery” causa comoção em Cannes. Corto meu dedo mindinho em solidariedade ao Lula Livre se encontrarmos alguém na plateia ou no júri de Cannes que nunca tenha pedido comida em casa ou um produto na Amazon.
Parece que o filme é comovente porque mostra cruamente o esgarçamento das relações familiares causado pela nova economia comandada por algoritmos. O protagonista, coitado, precisa fazer xixi em uma garrafa por pressão de tempo! Ok, bem-vindo ao mundo dos empreendedores! Ou o cineasta acha que aquele emprego estável, com todos os seus “benefícios sociais”, não foi fruto do trabalho insano de um empreendedor, que, muitas vezes, a maioria, sacrificou a própria família?
Sempre que leio esse tipo de reportagem fico me perguntando se esse pessoal realmente acha que “empregos estáveis, com horário definido e benefícios sociais” caem do céu ou são fruto da benevolência do Estado ou dos patrões. E que estes, recentemente, teriam decidido ficar maus como pica-paus e eliminado esses “empregos justos”, precarizando-os, para usar a palavra da moda, sob o olhar complacente de um Estado neoliberal.
Já disse isso aqui: nenhum entregador está obrigado a se filiar a nenhum aplicativo. Pode exercer a sua função de maneira independente, batalhando sozinho pelos seus clientes. Fica, assim, livre do “algoritmo opressor”. Se vai ter sucesso na empreitada, isso é outro problema.
Esse pessoal acha que essa “nova economia” surgiu porque o capitalismo é mau e está sempre procurando um modo de ferrar os trabalhadores. Não lhes ocorre que, se as empresas de entrega fossem obrigadas a equiparar os entregadores a funcionários estáveis, com limites de horas de trabalho e todos os benefícios do trabalho em carteira, o custo da entrega de uma pizza ultrapassaria o custo da própria pizza, inviabilizando o negócio. Teríamos o que vemos hoje em vários outros setores da economia: desemprego de qualidade, ou seja, pessoas com todos os direitos garantidos, mas desempregadas.
Com esse tipo de mentalidade predominando no campo democrata nos EUA e trabalhista no Reino Unido, não é à toa que Bernie Sanders lidere as prévias democratas e Jeremy Corbyn seja o líder dos trabalhistas britânicos. Desse jeito, brucutus como Donald Trump e Boris Johnson terão longa vida, pelo simples fato de não brigarem com a realidade.