Márcio Bittar, o senador que pariu a jenial ideia de usar precatórios para bancar o Renda Brasil, pergunta onde estava o mercado nos governos do PT.
Eu respondo: estava no mesmo lugar em que esteve no final de 2018. Ou seja, acreditando nas promessas do governo. Até o momento em que deixou de acreditar.
O mercado não é um Deus. O mercado somos todos nós. O mercado não é onisciente, ele acredita em promessas, até o momento em que deixa de acreditar. Não adianta criticar o mercado, pedir patriotismo, essas coisas. O dinheiro é covarde, vai buscar o primeiro abrigo que encontrar ao menor sinal de fumaça. Mulheres e crianças ficam por último. É assim.
O governo pode ouvir o que “o mercado” está tentando dizer, ou pode continuar em sua desabalada carreira rumo a lugar nenhum. O mercado é apenas o termômetro que mede a febre. A infecção está em outro lugar.
Imagine um país onde o Judiciário fosse ágil o suficiente para colocar rapidamente na cadeia bandidos e empresários sonegadores que podem pagar bons advogados, e para, também rapidamente, obrigar os governos a pagarem os precatórios que devem. Sim, teríamos um país onde o tal “Império da Lei” não seria apenas uma bonita expressão sem sentido prático.
É isso o que o lobby pela prisão somente após o trânsito em julgado quer? Obviamente que não. O que querem é ampliar o escopo do projeto para juntar forças suficientes para derruba-lo todo, inclusive na área criminal, que era o escopo original. Moro sabe disso, e por isso defendeu o projeto apenas em seu escopo inicial.
O projeto irá à votação assim, e provavelmente será derrubado, inclusive com a ajuda do próprio governo, que não quer ser obrigado a pagar precatórios depois de decisão em 2a instância.
Ao derrubar a prisão após a condenação em 2a instância, o STF interpretou bem a vontade do parlamento e do executivo, juntando-se aos que viram as costas para os cidadãos que pagam seus impostos em dia e procuram viver de acordo com a lei. Quando Dias Toffoli, depois de dar o seu voto de Minerva pela prisão somente após o trânsito em julgado, sugeriu ao Congresso mudar a lei, sabendo, obviamente, que isso não iria acontecer. Porque o tal “Império da Lei” não está no DNA do país do jeitinho.
Há alguns dias, publiquei um post sobre projeto de José Serra com o objetivo de desconsiderar o pagamento de precatórios como pagamento de dívidas. Segundo Serra, o precatório não seria uma dívida, porque o Estado paga quando pode, não tem uma data de vencimento, o que caracterizaria uma “dívida de verdade”. Brinquei até, dizendo que ia transformar todos os impostos que devo ao Estado em “precatórios”, e ia pagar quando eu “pudesse”.
Pois bem. Agora ficou clara a intenção de Serra: ajudar seu correligionário, o prefeito de São Paulo. A cidade bateu no teto do endividamento pelo critério de desembolso, e o pagamento dos precatórios da cidade comem uma boa parte desse limite. Solução? Dizer que pagamento de precatórios não é pagamento de dívida, e a mágica acontece: abre-se espaço para mais endividamento.
Serra, como economista, deveria saber que dinheiro não tem carimbo. Se o município desembolsa recursos para pagar precatórios, o dinheiro sai do caixa da prefeitura, qualquer que seja o nome que se dê a esse dinheiro. Essa discussão bizantina faz lembrar os embates sobre se a Previdência tinha déficit ou não: dependendo de como se carimbava receitas e despesas, a Previdência aparecia com déficit ou superávit. O que não mudava em nada o quadro de pura e simples falta de dinheiro.
A defesa que Serra faz dessa “reclassificação” dos precatórios lembra o “gasto é vida” de Dilma Rousseff. Aliás, Serra não passa de uma Dilma de calças em matéria macroeconômica. Ou vice-versa. Segundo Serra, o novo endividamento serviria para atender a tantas necessidades importantes da vida das pessoas. Nenhuma palavra sobre cortar gastos com salários, previdência, subsídios. Isso tudo é muito difícil. Mais fácil é reclassificar os precatórios e fazer mais dívida.
As necessidades da “vida das pessoas” são, por definição, infinitas. É como tentar colocar o mar em um buraco escavado na areia. Governos populistas vão aumentando gastos, aumentando, sempre prometendo atender todas as necessidades da vida das pessoas. É óbvio que isso não tem fim. Ou melhor, tem: o desastre fiscal que vivemos hoje, responsável pela maior recessão da história. Poderia ter terminado em hiperinflação também.
Se o projeto de Serra passar, aumentaremos ainda mais a dívida da cidade. Até, daqui a poucos anos, bater no teto novamente. Em algum momento, haverá um limite. E a solução será uma combinação entre corte de gastos e aumento de impostos. Prepare o seu bolso.
Gostei dessa definição de moratória do Serra. Penso em adotar.
Por exemplo: meu IR não tem data de vencimento. Não fiz um acordo com meu credor para pagar em determinada data. Vou dizer: preciso desse dinheiro para pagar saúde e educação dos meus filhos. Portanto, vamos estar adiando isso aí.