Um cafezinho com Putin

A decisão de aderir ou não ao estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI) é soberana. Países democráticos, como EUA, Israel e Índia, e não democráticos, como China e Rússia, não aderiram. Cada qual deve ter os seus motivos.

O Brasil aderiu em 2002, no apagar das luzes do governo FHC, e os governos posteriores do PT tiveram mais de 13 anos para rever esse posicionamento. Não o fizeram, provavelmente porque não viram motivo para tal, inclusive do ponto de vista de soberania.

Lula agora lança a possibilidade de “desadesão” ao TPI. O motivo não é uma questão de soberania teórica. Nada disso. Trata-se de algo muito prático: poder receber Vladimir Putin em solo brasileiro sem precisar ordenar a sua prisão, obedecendo ao mandato emitido pelo TPI. Um motivo muito nobre, sem dúvida. Afinal, não é todo dia que se pode receber um estadista desse naipe.

Acho que Lula não vai morrer desse susto: desde que as tropas de Putin invadiram a Ucrânia, de fevereiro para março de 2022, o presidente da Rússia só se arriscou a sair de seu país para visitar ex-repúblicas soviéticas, além do Irã. Então, fica difícil imaginar Putin pegar um avião para pousar em Brasília. Lula deve (ou deveria) saber disso. Perdeu a oportunidade de dar uma resposta evasiva, sabendo que muito dificilmente teria que enfrentar o problema de verdade.

De qualquer forma, Lula entregou de graça (mais uma vez) a sua queda por governos não democráticos. Uma coisa é sair do TPI porque há o entendimento de que fere, de alguma forma, a nossa soberania. Outra bem diferente é sair do TPI para poder tomar um cafezinho com Putin no Planalto. A democracia é, sem dúvida, coisa muito relativa.

Putin lança o programa Mais Soldados

O governo cubano está indignado. Parece que Moscou está pescando em águas cubanas para recrutar soldados para a guerra. O que a reportagem chama de “tráfico”, na verdade, não passa de uma relação comercial: Putin mitiga o seu problema de recrutamento de cidadãos russos, enquanto os cubanos têm a oportunidade de ganhar uns trocos e, com alguma sorte, voltar para casa após o fim do contrato. Uma relação ganha-ganha. A não ser para o governo cubano.

No programa Mais Médicos do governo Dilma, o “tráfico” de cubanos era oficializado, e o governo cubano ficava com a parte do leão dos salários de seus cidadãos. Esse sim era um arranjo que interessava aos dirigentes da ilha de Fidel. Agora, Putin atravessou o intermediário, e está tratando diretamente com a mão de obra. Putin gasta menos e os cubanos recebem mais. Todo mundo sai satisfeito, menos o governo cubano, que denuncia o “tráfico de pessoas” e afirma não ter nada a ver com a guerra.

Pelo jeito, Putin terá que estabelecer o programa Mais Soldados e pagar mais caro, se quiser continuar contando com a prestimosa ajuda dos recrutas cubanos.

A guerra anti-ocidente de Putin

Terminei de ler um livro que ganhei de presente de aniversário: “The Man Without a Face: The Unlikely Rise of Vladimir Putin”, da jornalista russa Masha Gessen.

A foto abaixo é da última página, um posfácio escrito após a primeira edição.

Ela começa se referindo a um discurso de Barack Obama na NATO, em março de 2014, após a invasão da Crimeia. Obama afirmara que não acreditava em uma nova guerra fria, porque Putin não liderava um grupo de nações e tampouco representava uma corrente ideológica.

Masha afirma que Obama estava enganado. Putin se achava liderando uma missão civilizacional contra o decadente Ocidente. Tratava-se sim de uma guerra também ideológica.

Agora, atenção: esse posfácio foi escrito em abril de 2014. Ela afirma que Putin iria ter ainda muitas vitórias e causar muitas baixas antes que os líderes ocidentais percebessem o risco da transformação de Putin de um burocrata em um líder de uma cruzada pelos valores anti-ocidentais. Premonitório.

Não é à toa que Putin, quando aparece em público, é para falar dos valores conservadores. É esta cola que dá a liga a tudo o que a Rússia vem fazendo. A Ucrânia foi invadida porque ameaçou entrar definitivamente na órbita ocidental. E não estamos falando somente da OTAN, mas da União Europeia. A questão é: qual a fronteira final dessa guerra?

O fim de Putin ou o fim do mundo?

Depois de 7 meses de guerra, com seu exército perdendo territórios e tendo que mobilizar reservistas, Putin decidiu trucar a Ucrânia e a aliança ocidental que a apoia, anexando politicamente territórios ucranianos. A ameaça de Putin é de que, sendo estes territórios agora russos, qualquer tentativa da Ucrânia de retomá-los significaria uma agressão ao próprio território russo, o que autorizaria o Kremlin a usar “armas nucleares táticas” no confronto.

Pode-se dar o adjetivo que se queira, “tático”, “estratégico” ou “arrasa quarteirão”, o fato é que o uso de armas nucleares mudaria a guerra de patamar. Por outro lado, sem o seu uso, a anexação significa zero: a Ucrânia continuará lutando pela reconquista desses territórios como se nada tivesse acontecido. Portanto, a anexação somente faz sentido se for para escalar a guerra.

No entanto, essa anexação mostra que a mão de Putin é fraca, para continuar na linguagem do truco. Gritou truco sabendo que o adversário tem uma mão mais forte, mas na confiança de que não terá culhões para utilizá-la. Essa mão chama-se “admissão da Ucrânia na OTAN”. Uma vez que uma arma nuclear seja detonada em território ucraniano, este é o próximo movimento óbvio da aliança ocidental, de modo que a Rússia estaria às voltas com uma guerra direta contra os Estados Unidos e seus aliados europeus.

Dentre os possíveis desdobramentos do uso de uma arma nuclear, Putin certamente está contemplando essa hipótese. As outras duas são os EUA fazerem cara de paisagem e continuarem a dar o mesmo apoio de sempre à Ucrânia como se nada tivesse acontecido, ou forçar a Ucrânia a celebrar um acordo de paz nos termos russos. Qualquer dessas duas hipóteses significaria dizer que o uso de ”armas nucleares táticas” é admissível para atingir objetivos geopolíticos. Já vejo Xi Jiping esfregando as mãos, mas não só ele. Como essa admissão parece impensável, creio que a hipótese do ingresso da Ucrânia na OTAN é a mais plausível.

O problema é que Putin pode até ter a mesma avaliação, mas está acuado com uma mão fraca. E, ao contrário do truco, não terá a possibilidade de jogar outra mão. Por enquanto, a anexação é só um grito de truco. Se a Ucrânia continuar a lutar pelos seus territórios anexados, terá gritado um “seis”. Putin decidirá então se prefere correr do jogo ou gritar um “nove” desesperado, usando armas nucleares. Caberá então à aliança ocidental decidir se corre ou grita um “doze”, admitindo a Ucrânia na OTAN e lutando diretamente contra a Rússia, o que seria certamente o fim de Putin. Neste caso, o máximo que poderemos fazer é rezar para que não seja também o fim do mundo.

Melhor puxar um banquinho para esperar sentado

O indiano Raghuram Rajan, ex-presidente do BC indiano e ex-economista-chefe do FMI, dá uma entrevista muito boa hoje no Valor. Destaquei o trecho abaixo porque representa uma boa parte do otimismo (ou seria melhor dizer “fio de esperança”) que nos resta: a esperança de que os oligarcas deponham Putin para preservarem as suas fortunas, alvos das sanções ocidentais.

Rajan sopra um ar gélido sobre a chama da esperança, ao dizer que Putin, assim como qualquer líder autocrata, legitima a própria existência dos oligarcas. Ou seja, ao derrubar Putin, esses oligarcas estariam dinamitando a própria estrutura que os sustenta. A entrada de outro dirigente, autocrata ou não, significaria começar o jogo do zero, o que torna o futuro imprevisível para esses oligarcas. Assim, entre perder uma parte de sua fortuna ou a sua legitimidade, a escolha é óbvia.

Mas Rajan deixa ainda uma fresta aberta na porta da esperança: os movimentos de massa, que poderiam forçar a troca do regime. Na medida em que mais soldados russos morrem em uma campanha que não faz sentido, seria cada vez mais provável uma insurreição da população, o que presumivelmente levaria à queda de Putin.

Lamento ter que eu mesmo soprar um ar gélido sobre essa outra chama de esperança de Rajan e de muita gente. Há pouco tempo, escrevi a resenha de um livro que descreve o regime de terror de Stálin, Sussurros, do historiador britânico Orlando Figes. Um dos capítulos narra a Grande Guerra Patriótica, nome pelo qual ficou conhecida a 2a Guerra na União Soviética. Neste capítulo, Figes descreve como os soldados russos tiveram contato com a chamada “civilização ocidental” na medida em que suas tropas foram avançando pela Alemanha, e como esse contato fez “cair a ficha” das mentiras contadas pelo regime a respeito de seu próprio bem-estar e da produtividade de seus campos. Em certo momento, houve a esperança de que esse seria um catalisador para a mudança do regime, pois os soldados voltavam falando sobre tudo o que viram e reclamando do governo de maneira aberta.

No entanto, como sabemos, Stálin continuou a governar o país com mão de ferro até a sua morte, em 1953. E uma revisão do stalinismo somente ocorreu em 1956, quando Kruschev se sentiu suficientemente seguro para implantar o seu próprio regime. Ou seja, somente 11 anos depois do “desmascaramento” das mentiras do regime. Ocorre que um regime de força dispõe de instrumentos de terror para lidar com esse tipo de pressão. Agora mesmo, Putin está prendendo ativistas, censurando redes sociais e contando a sua própria história nos telejornais. Para quem tem curiosidade sobre como uma única pessoa pode tornar refém um país inteiro durante anos, sugiro a série documental da Netflix, Como se Tornar um Tirano.

Portanto, quem espera que Putin caia para resolver o problema da guerra na Ucrânia, talvez seja melhor puxar um banquinho e esperar sentado.

Não há saída não humilhante

Essa história de que o governo russo agora admite não derrubar Zelensky é tão crível quanto as promessas de que não haveria invasão, mesmo acumulando tropas nas fronteiras. Putin realmente estaria satisfeito com um pedaço de papel assinado por Zelensky abrindo mão da adesão à OTAN? E, se fosse somente pelas províncias russas orientais, não precisaria ter ocorrido uma invasão de grandes proporções, vide Crimeia.

E falta um ator na mesa de negociações: os EUA. Estariam Biden e seus aliados dispostos a abrirem mão das sanções na hipótese de Zelensky topar abrir mão da OTAN sob a mira de uma baioneta? A Rússia voltaria normalmente ao convívio das nações depois de ter conseguido o seu objetivo usando a sua máquina de guerra contra uma nação soberana? No momento em que os países ocidentais assumiram um lado no conflito, amarraram o seu destino a esse lado e fazem parte da guerra. Não à toa, Putin considerou as sanções como um ato de guerra.

Posso estar enganado, mas acho que estamos em uma situação em que não há saída não humilhante para nenhum dos lados. Putin não consegue voltar ao status quo anterior somente com uma promessa nas mãos, assim como é difícil que Biden e seus aliados levantem as sanções sem que Putin volte ao status quo anterior. Por outro lado, não há guerra sem vitoriosos e derrotados. Portanto, um dos lados vai ceder no final. Ainda não está claro quem vai ceder e quando, e as consequências do novo arranjo para o futuro.

Você compraria um carro usado deste homem?

Na batalha das narrativas sobre a guerra na Ucrânia, ganhou força na esquerda uma que coloca a culpa do conflito, adivinha, nas costas dos Estados Unidos.

A narrativa é mais ou menos a seguinte: depois da dissolução da União Soviética, estavam os russos quietos no seu canto, lambendo as feridas do orgulho ferido por terem sido rebaixados de superpotência para mercado emergente, quando os Estados Unidos, do nada, levam a OTAN até o quintal dos russos. Estes, sentindo-se ameaçados, desenharam uma linha vermelha na Ucrânia e, quando esta ameaçou juntar-se também à aliança ocidental, não restou outra alternativa a Putin do que ocupar o país vizinho. Que, by the way, historicamente faz parte da Rússia, como deixou claro o mandatário russo.

Para reforçar a imagem, perguntam, no melhor estilo xeque-mate, como os EUA reagiriam se o México fosse aliado da Rússia e esta colocasse mísseis nucleares ao longo do Rio Grande, a poucos minutos das grandes cidades americanas. A conclusão, óbvia, é que os Estados Unidos não deixariam a coisa chegar neste ponto, e invadiriam o México para evitar que isso acontecesse.

O que dizer?

Bem, essa narrativa seria uma versão crível dos fatos se tivesse alguma lógica. Para entender por que se trata de uma versão discutível dos fatos, é preciso voltar um pouco no tempo. Mais especificamente, para 1949, quando a OTAN é constituída.

A Europa vinha de uma guerra terrível em várias dimensões. Havia uma unanimidade em torno da ideia de que era necessária uma estrutura militar permanente que prevenisse que algo semelhante ocorresse novamente. O diagnóstico é que o militarismo nacionalista, concretizado na ascensão nazista na Alemanha, precisaria ser evitado a todo custo. Para isso, duas coisas eram necessárias: uma presença militar norte-americana permanente no continente europeu e uma maior integração europeia em torno de ideias democráticos. A presença norte-americana foi uma quebra de paradigma, pois os EUA sempre resistiram muito a sair de seu casulo, tendo sua entrada na 2a guerra sido feita a fórceps. E a ideia de uma integração europeia com suporte em uma aliança militar era nada mais do que uma rendição ao fato de que boas intenções somente se concretizam na base da, digamos, dissuasão militar.

O estabelecimento da OTAN se precipita em 1949, quando a União Soviética testa a primeira bomba nuclear. Os EUA não eram mais a única potência nuclear, e os europeus ficam alarmados. Este é um primeiro fato importantíssimo para entender o que vem a seguir. Os europeus (no caso, Bélgica, Dinamarca, França, Islândia, Itália, Luxemburgo, Holanda, Noruega, Portugal e Reino Unido) não buscam a União Soviética como aliada, mas os Estados Unidos. Parece uma escolha óbvia e natural, mas não é. A União Soviética foi aliada dos Estados Unidos e Reino Unido contra a Alemanha. Mas aquela aliança havia sido circunstancial; a União Soviética tinha um regime completamente alienígena ao espírito da aliança militar que se estava formando. É bom sempre ter isso em mente quando analisamos os acontecimentos que se seguiram desde então: não estamos falando de dois polos opostos e equivalentes. Não. De um lado temos uma aliança eminentemente defensiva, que tem como objetivo evitar o ressurgimento do militarismo nacionalista e suportar a integração do continente europeu em torno de ideias democráticos. Do outro, temos uma ditadura sanguinária, que tem como objetivo implementar o regime comunista a ferro e fogo, e que não tem pudor em usar o peso da máquina estatal contra seus próprios cidadãos para atingir seus objetivos. Portanto, não se tratava de dois polos opostos simétricos, cada um buscando seus próprios interesses, com se tanto fizesse que o mundo, hoje, fosse dominado pelos Estados Unidos ou pela União Soviética.

A OTAN, portanto, foi formada com os objetivos de evitar uma escalada militarista nacionalista e promover a integração europeia, aos quais foi acrescentado um terceiro objetivo: fazer frente à agressividade (agora nuclear) da União Soviética. Este terceiro objetivo acabou por ser o dominante nos anos seguintes, até 1991, quando a União Soviética desaparece. Mas é bom ter em mente os dois primeiros objetivos quando nos determos sobre os acontecimentos pós-1991.

A história segue e, em 1955, a Alemanha Ocidental adere à OTAN, o que leva a União Soviética a estabelecer, em seguida, o Pacto de Varsóvia, a união militar da URSS com seus satélites. Sim, aqui temos uma reação da União Soviética a uma ação dos Estados Unidos. Mas, para entender esse movimento da OTAN, é preciso voltar um pouco no tempo, para 1945, quando se encerra a 2ª Guerra. As potências aliadas dividem a Alemanha em 4 zonas administrativas, cada uma delas controladas, respectivamente, por Estados Unidos, Reino Unido, França e União Soviética. Com o passar do tempo, foi ficando claro que os países democráticos estavam de um lado e a União Soviética estava do outro. Em 1949, dois países surgiram no lugar da antiga Alemanha: a Alemanha Ocidental, correspondente à ocupação de Estados Unidos, Reino Unido e França, e a Alemanha Oriental, correspondente à ocupação da União Soviética. A Alemanha Ocidental, sob o comando de Konrad Adenauer, percebendo o risco de um enclave soviético em sua fronteira (a Alemanha Oriental), solicitou a admissão na OTAN. Portanto, a admissão na OTAN veio em resposta à presença ameaçadora de uma potência nuclear não confiável em suas fronteiras. Este mesmo tipo de raciocínio servirá como base para os pedidos de admissão pela OTAN dos antigos membros do Pacto de Varsóvia e das antigas repúblicas soviéticas anos depois. Tudo se resume na palavra CONFIANÇA. Voltaremos a isso mais à frente.

Avançando no tempo, temos a queda do muro de Berlim em 1989 e a dissolução da União Soviética em 1991. A Federação Russa, ou simplesmente Rússia, passa a ser a herdeira da antiga União Soviética. Sob a liderança de Boris Yeltsin, a Rússia parece ter se tornado um país democrático e capitalista, o que fez com que Francis Fukuyama escrevesse, em 1992, o seu famoso ensaio “O Fim da História”, tomando como certa a vitória do regime democrático sobre o autoritário, e do capitalismo sobre o socialismo, para todos os efeitos práticos. Esta leitura, vista de hoje, parece um tanto ingênua, ainda que, de fato, até a China seja capitalista hoje em dia. Mas um mundo liderado por apenas uma superpotência benigna, em uma espécie de “pax americana”, parece uma visão cada vez mais distante da realidade.

Voltando. Todos sabemos em que direção as pessoas correram quando o muro de Berlim caiu. Da mesma forma, os antigos países do Pacto de Varsóvia procuraram correr para longe da esfera russa assim que puderam. Novamente: é interessante observar que países como Grécia ou Turquia, que faziam parte da OTAN desde 1952, não se interessaram em correr para o colo da Rússia. Mas Polônia, República Tcheca e Romênia correram para o colo dos Estados Unidos em 1999, sendo admitidas pela OTAN naquele ano.

Alguns podem se perguntar por que a OTAN não seguiu o mesmo caminho do Pacto de Varsóvia, e foi simplesmente desativada com o fim da União Soviética. Para entender por que isso aconteceu, é útil voltar lá no início do texto, e relembrar os objetivos fundantes da OTAN: evitar uma escalada nacionalista militar na Europa e suportar militarmente a integração europeia. Para entender por que estes dois objetivos ainda davam sentido à existência da OTAN, basta lembrar que a 2ª Guerra havia terminado há menos de 50 anos, e ainda estava viva na memória os seus horrores. Assim, a presença militar norte-americana no continente europeu e a adesão de mais países ao tratado ornava com os objetivos de manter a paz no continente. Como sabemos, o preço da paz é a eterna vigilância.

Nesse sentido, é digno de registro o estabelecimento, em 2002, de um Conselho OTAN-Rússia, em que a Rússia, já sob a direção de Putin, foi colocada em igualdade de condições com os outros membros da aliança para discutir questões de segurança. Este Conselho ainda existe formalmente, mas perdeu totalmente o seu sentido em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia. No site do Conselho, o último documento disponível é de 2013. De qualquer forma, fica claro que os objetivos da OTAN incluíam a cooperação com a Rússia, em busca da manutenção da paz no continente europeu.

A OTAN, em linha com seus objetivos, sempre deixou as portas abertas para o ingresso de novos membros. A pergunta, portanto, não é porque a OTAN (leia-se Estados Unidos) admitiu países do Pacto de Varsóvia em 1999 e antigas repúblicas socialistas em 2004. A pergunta correta é: porque esses países ESCOLHERAM fazer parte da OTAN.

Como mencionado acima, a palavra-chave é CONFIANÇA. No final do dia, tudo se resume a saber de quem você compraria um carro usado, de Putin ou de Biden. Não que Biden (ou Trump, ou qualquer outro ex-presidente norte-americano) seja pessoalmente mais confiável do que Putin. A questão são os pesos e contrapesos que só regimes democráticos maduros são capazes de garantir. Biden não é um ditador, assim como não foram nenhum dos seus antecessores (o que às vezes exaspera quem espera soluções “rápidas” para os problemas), de modo que a estrutura é mais confiável do que a estrutura russa de poder. É por isso, e somente por isso, que Letônia, Estônia, Lituânia e uma longa lista de países procuraram proteção no guarda-chuva da OTAN. Os ucranianos devem estar se lamentando não terem sido tão ágeis quanto seus antigos companheiros de União Soviética.

Da forma como está sendo contada a versão da “Rússia defendendo-se de uma ameaça ocidental” para justificar o ataque à Ucrânia, a coisa parece uma profecia autorrealizada: com medo da Rússia, os países da antiga União Soviética correram para a OTAN, o que fez com que a Rússia efetivamente atacasse, confirmando os receios que levaram os países do leste europeu a fazer o movimento que fizeram. Segundo essa versão, se esses países tivessem ficado no seu canto, Putin agora estaria se dedicando a fazer bolinhos de chuva e tricotando no Kremlin.

É esta parte da versão que não é crível. Putin nunca foi confiável. Semana passada, a Economist publicou artigo da primeira-ministra da Lituânia, Ingrida Simonyte, que chamou Putin de um “mentiroso patológico”. Segundo ela, ditadores só conhecem o idioma da brutalidade. Sim, a Lituânia pegou a boia salva-vidas da OTAN em 2004.

Alguém poderá dizer que é compreensível o temor das ex-repúblicas soviéticas, o que não é compreensível é que a OTAN tenha provocado o tigre com vara curta. Quem faz esse raciocínio não entende a lógica do nacionalismo militarista, justamente aquele que a OTAN tem como objetivo combater: a chance de surgimento de um regime doidivanas é tanto menor quantos mais países são agregados ao guarda-chuva militar. Não é à toa que, em seu site, a OTAN afirma que “está aberta a qualquer outra nação europeia em posição de implementar os princípios deste Tratado e de contribuir para a segurança da área do Atlântico Norte”.

A pergunta correta, portanto, é quem é a Rússia na fila do pão para impedir que a Ucrânia faça a sua adesão à OTAN. O raciocínio da guerra fria, de que o avanço da OTAN significa uma ameaça existencial à Rússia faz sentido somente na cabeça paranoica de um ditador tirânico. Que Putin pense assim, é compreensível. Que analistas ocidentais, movidos por um anti-americanismo atávico, comprem essa narrativa, é de chorar.

Os Estados Unidos e seus aliados não são anjos de bondade, todos têm os seus interesses e seus erros históricos. Isso é uma coisa. Outra coisa é colocar os regimes democráticos ocidentais no mesmo nível de confiabilidade da governança russa, como se se tratasse de uma simetria perfeita. Não é. A democracia tem muitos defeitos, mas, como dizia Churchill, é o pior regime com exceção de todos os outros. Isso inclui o autoritarismo russo, que não é confiável de maneira alguma.

Fact checking

“Em telefonema de 50 minutos…” e a reportagem é ilustrada com a imagem de Biden segurando um telefone, como se, naquele momento, os destinos da humanidade estivessem sendo decididos.

Falando sério, se eu segurasse o telefone desse jeito por 50 minutos, provavelmente teria uma cãibra que duraria até a próxima hecatombe nuclear. Aliás, alguém se lembra da última vez que falou ao telefone desse jeito? Fones de ouvido e viva-voz são invenções do século passado. E em um mundo trabalhando remoto, tenho certeza que a Casa Branca e o Kremlin podem fazer uma sessão pelo Zoom.

Então, porque raios o editor decidiu ilustrar a matéria com uma foto claramente fake, afirmando que Biden estava conversando, naquele momento, com Putin? Para agregar credibilidade à noticia. Afinal, Biden ao telefone mostra que o presidente realmente está falando com alguém. E esse alguém deve ser Putin, porque a Casa Branca assim informou.

O problema é que o tiro saiu pela culatra. Todos sabem que o telefone que liga a Casa Branca ao Kremlin é vermelho, não esse cinza sem graça. Fica, assim, desmascarada a tentativa de criar mais uma fake news. Nice try, Joe.

Continue seguindo essa página para mais facts checking.

Reunião histórica

“Reunião histórica”.

O que faz ser histórica uma reunião entre chefes de Estado? Algo que mude os rumos da História, por suposto. Talvez a reunião histórica paradigmática seja a que ocorreu em Yalta, na Crimeia, onde o mapa da Europa pós-guerra foi desenhado por Churchill, Roosevelt e Stálin. Entre URSS e EUA, a reunião entre Nixon e Brejnev que determinou a redução de arsenais nucleares pode ser considerada histórica.

Por que a reunião entre Biden e Putin será histórica? Segundo o jornal, porque Biden será “durão” e apresentará uma série de exigências a Putin: fim dos ciberataques, retiradas das tropas da Ucrânia e advertência sobre a interferência russa nas eleições americanas.

Já fico imaginando Biden e Putin frente a frente na mesa de negociações. Biden entrega a lista de exigências. Putin lê com atenção, arregalando o olho a cada linha. Pensa consigo: “putz, agora que meu amigo Trump deu lugar a esse Chuck Norris das relações internacionais, acho melhor começar a colaborar”.

Este é o sonho do jornalista engajado. Na realidade, vai acontecer mais ou menos o seguinte: Biden e Putin em lados opostos da mesa de negociações. Biden entrega a lista de exigências. Putin dá uma olhada de alto a baixo em mais ou menos 5 centésimos de segundos, entregando a folha a um assessor, que a coloca dentro de uma pasta preta. Com o poker face que Deus lhe deu, Putin pergunta em seguida: “anything else, Mr. President?”

Fim da reunião histórica.