Joaquim Barbosa não serve

O sociólogo Jessé Souza defende, em artigo de hoje, a indicação de um jurista negro para a vaga a ser aberta pela aposentadoria de Ricardo Levwndowski. Mas, ele deixa claro, não pode ser qualquer negro. Precisa ser um legítimo defensor das “causas populares”, e não exercer o cargo para replicar o racismo, travestido de “luta contra a corrupção”. Uma clara alusão a Joaquim Barbosa, primeiro negro a alcançar a suprema corte e estrela máxima do processo do Mensalão.

Alguém como Joaquim Barbosa, apesar de seu exemplo de superação e de suas ideias à esquerda (como ficou claro em suas tentativas de candidatar-se à presidência) não serve. Barbosa cometeu a heresia das heresias, que foi condenar a cúpula do PT por corrupção. E isso seria “reproduzir o falso moralismo das elites brancas”. Foi o suficiente para ser merecedor do fatwa do movimento negro politicamente engajado.

Assim como Bolsonaro tinha o seu “negro de estimação” (assim como o seu índio e o seu gay), Lula também conta com um movimento que, acima de tudo, está ali para defender o “partido das causas populares”, mesmo que isso signifique compactuar com o crime, revestindo-o de belas teorias. No fundo, os negros e outras minorias se deixam usar na pura e simples política partidária.

Pode-se argumentar que a luta contra o racismo é, antes de mais nada, uma luta política. Portanto, para combatê-lo, é preciso engajar-se. Justo. O problema está em confundir o engajamento político com o apoio a determinado partido, como se partido e “causas populares” se confundissem. Joaquim Barbosa, ao condenar a cúpula do PT, não estava sendo racista. Estava cumprindo a lei. Se isso o descredencia para o cargo que ocupou aos olhos de certo movimento negro, fica clara a natureza desse movimento.

Até as últimas consequências

O economista Joel Pinheiro da Fonseca escreveu ontem, na Folha de São Paulo, artigo, para dizer o mínimo, polêmico. O seu inteiro teor vai a seguir. Volto a seguir.

Vou começar concordando com o articulista: a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Como todo direito, está limitado pelo direito alheio. Assim, não é permitido usar a liberdade de expressão para caluniar ou difamar alguém, por exemplo. Faço algumas considerações sobre os limites da liberdade de expressão no artigo Redes Sociais e Poder Político.

Se Joel Pinheiro está correto em sua premissa inicial, o restante de seu artigo escorrega a toda velocidade em direção ao abismo. Vejamos.

Em sociedades democráticas, o problema do respeito pelo direito alheio já foi resolvido há tempos: há um sistema judicial que serve para julgar o balanço entre os direitos dos indivíduos, segundo uma regra escrita, chamada lei. Assim, por exemplo, se alguém se sente atingido por algo que alguém falou ou publicou, tem à disposição a justiça para resolver o assunto.

Mas não é a este tipo de crime a que Joel Pinheiro se refere. O articulista aponta crimes contra a saúde pública, de racismo, contra a comunidade LGBT, de machismo, de fanatismo religioso e de desigualdade social.

Bem, alguns desses crimes apontados são tipificados pelo código penal brasileiro. Por exemplo, racismo. Ou preconceito contra pessoas de orientação homossexual, recentemente equiparado ao racismo pelo STF. Há crimes contra a saúde pública também, como quando, por exemplo, um médico atua sem as devidas licenças. Crimes de machismo, fanatismo religioso ou de desigualdade social ainda não foram tipificados, para desespero daqueles que querem um mundo melhor.

Mas o problema não é exatamente a questão da tipificação penal. Fosse assim, o articulista gastaria o seu verbo pedindo modificação no código penal. Mas não é disso que se trata. A justiça de um regime democrático não é suficiente para fazer justiça. É preciso ir além.

Neste ponto, reproduzo o parágrafo que é chave para entender a ideia do articulista: “É uma visão ingênua —embora nada inocente— acreditar num debate público idealizado, em que o que importa são argumentos. Na realidade, opiniões refletem os conflitos de poder da sociedade, mal disfarçados por construtos teóricos”.

Fica claro que Joel Pinheiro quer criminalizar a opinião, nada menos. A opinião seria apenas um instrumento de poder, e o debate de ideias apenas uma forma de disfarçar o exercício do poder por parte de grupos dominantes. Não haveria um legítimo debate de ideias entre iguais, mas somente manipulação, visando à manutenção do status quo.

Joel Pinheiro exemplifica o que quer dizer sem dar nome aos bois (o que não deixa de ser um sinal de covardia), ao fazer referência ao artigo de Antônio Risério sobre o racismo de negros contra outras raças. Segundo o articulista, “Quando um branco questiona consensos estabelecidos da pauta antirracista, isso não é liberdade de expressão, é racismo”, pois “Alguns buscam a igualdade e o bem comum; outros, manter seus interesses e privilégios”. Assim, fica o mundo dividido entre “bons” e “maus”, e não há como haver debate de ideias legítimo entre esses dois grupos.

Já escrevi sobre esse artigo de Antônio Risério por ocasião do manifesto dos jornalistas da Folha, que também tinha como objetivo interditar a livre circulação de ideias. Comentei, na ocasião, que a tese do racismo estrutural é uma interpretação possível da história, longe de ser uma verdade esculpida nas tábuas dos 10 mandamentos. Trata-se de um “consenso estabelecido da pauta antirracista” apenas entre aqueles que concordam com a tese. Mas Joel Pinheiro explícita aquilo que está somente sugerido no manifesto dos jornalistas: quem não concorda com a tese está interessado apenas em “manter seus interesses e privilégios”.

Neste ponto, devemos ser gratos a Joel Pinheiro. Confesso que é o primeiro artigo absolutamente claro sobre a natureza do movimento politicamente correto. Por trás da capa da virtude de recorte vitoriano, que aponta o seu dedo imaculado para todos os podres do mundo, existe uma vocação autoritária, explicitada na interdição ao debate de ideias. Consensos são fabricados deixando de fora aqueles que não concordam. Assim fica fácil.

Todos os regimes autoritários, sem exceção, buscam “o Bem”. Para isso, calam a voz dos dissidentes, que sabotam a marcha para “um mundo melhor possível”. O bravo articulista, sem receio de seguir na estrada que abriu, chega às últimas consequências do seu raciocínio: seria preciso escolher um “comitê de notáveis”, para “julgar previamente artigos, podcasts ou vídeos que possam ter conteúdo problemático”. Há que se reconhecer a coragem de Joel Pinheiro em levar às últimas consequências a sua tese. Desconfio que seus pares, apesar de poderem concordar totalmente com ele, lamentarão tamanho grau de transparência, que desnuda, como nunca antes, a verdadeira natureza dos monopolistas do bem.

Como nota cômica, fico imaginando esse “comitê de notáveis” (pagos pelo Estado, por suposto, ainda que o articulista não tenha entrado nesse nível de detalhe) tendo que avaliar milhares de artigos escritos diariamente. Haja leitura dinâmica!

Confesso que a ideia do “comitê de notáveis” me seduz, principalmente quando leio artigos como este. Estivesse eu em um comitê deste tipo, daria bola preta para Joel Pinheiro.


Escrevo este Post Scriptum depois de ouvir que este texto seria irônico. Se assim o for, peço publicamente desculpas a Joel Pinheiro e parabenizo-o por expor, de maneira brilhante, o absurdo a que pode levar a cultura do politicamente correto.

Qualquer texto irônico deve pressupor que o leitor conheça as convicções do autor, de modo que o texto seja reconhecido como o oposto de suas convicções. E, para que funcione, o texto precisa ser, ele todo, irônico. Não faz sentido colocar premissas em que o autor acredita e depois desmoraliza-las com as suas consequências. Obviamente, o tal “comitê de notáveis” é uma ideia de tal modo absurda, que deveria soar o alarme da ironia, assim como a forma como o autor se refere à Folha. Ocorre que esse texto veio logo em seguida a um manifesto de jornalistas que pedem justamente isso, que a Folha funcionasse como uma espécie de “comitê de notáveis”, barrando artigos não alinhados. E o manifesto dos jornalistas não foi irônico. Assim, para alguém que não acompanha de perto a produção de Joel Pinheiro, a hipérbole do “comitê de notáveis” se perdeu no raciocínio construído de maneira bastante alinhada com a agenda hoje dominante.

Quando um texto irônico precisa ser acompanhado de um “just kidding”, é porque o autor, por algum motivo, deu margem a que se fizesse outra interpretação. Claro que, ao escrever, o autor confia na inteligência do leitor. Mas o leitor precisa estar municiado de informações para interpretar corretamente o texto. E, neste caso, se o texto for realmente irônico, eu não estava.

Por fim, mesmo na hipótese do texto irônico, nada do que escrevi no post se perde, a não ser as críticas ao autor. Pelo contrário: se o texto for irônico, o autor se junta às críticas colocadas no post.

Quando a ideologia é elevada à categoria de verdade, é o fim do livre debate de ideias

Jornalistas da Folha de São Paulo fizeram chegar ontem aos editores do jornal um manifesto contra a publicação de artigos que, segundo estes jornalistas, estariam a minimizar o problema do racismo no Brasil. A gota d’água teria sido um artigo do antropólogo Antônio Risério, que defende a tese de que a pauta identitária estaria levando (ou, no mínimo, ignorando) o racismo de pretos em relação a outras raças.

Assim como os jornalistas fizeram questão de afirmar no início de seu manifesto, também eu não pretendo aqui entrar no mérito da questão do racismo em si, pois não tenho conhecimento suficiente sobre o assunto. Mesmo porque, o ponto fundamental do manifesto não é o racismo, mas o livre debate de ideias.

Nesse sentido, o ponto-chave do manifesto é o trecho abaixo, em que os jornalistas comparam a negação do chamado “racismo estrutural” à negação do Holocausto. Da mesma forma que a Folha não dá espaço a negacionistas do Holocausto, também não deveria dar espaço para os negacionistas do “racismo estrutural”.

Este é um tema que me é especialmente caro por motivos familiares. Sempre que alguém usa o exemplo do Holocausto para defender alguma tese, já me ponho alerta, aí vem bobagem. Não foi diferente dessa vez.

O paralelo é simplesmente descabido. O Holocausto é uma verdade histórica comprovada. Há inúmeras provas documentais de sua existência. O paralelo cabível seria um artigo que, por exemplo, negasse a escravidão. Houve escravidão, assim como houve Holocausto, ponto. Isso está no mesmo plano de conhecimento que nos diz que a Terra é redonda. Por isso, a Folha também não dá espaço para terraplanistas em suas páginas.

Por outro lado, pode-se discutir (e se discute até hoje) o papel dos alemães, dos europeus em geral e dos próprios judeus no Holocausto. O extermínio premeditado de judeus em câmaras de gás foi culpa apenas de Hitler, dos nazistas em geral, de todo o povo alemão ou de todos os europeus? Qual o grau de culpa dos próprios judeus nessa história? Cada historiador terá a sua tese, trata-se de campo aberto para o debate de ideias. Mas nenhum historiador negará a realidade do Holocausto em si.

Ao comparar as críticas a teses como “racismo estrutural” e “racismo reverso” com a negação do Holocausto, o que querem os jornalistas da Folha é a elevação da tese à categoria de verdade histórica absoluta. Aqueles que refutam a tese estariam, nada menos, sendo negacionistas.

A tese do “racismo estrutural” é uma leitura possível da realidade, e o artigo de Antônio Riserio somente chama a atenção para possíveis falhas e consequências da tese. Tenho certeza que as páginas da Folha estão abertas a qualquer um que queira refutar o ponto de vista do antropólogo. Somente em sociedades totalitárias existe apenas uma interpretação possível dos fatos históricos.

Os jornalistas da Folha (e não estão sozinhos) estão de tal maneira imersos em seu mundo ideológico, que confundem suas teses de estimação com verdades absolutas. Dessa forma, misturam os fatos históricos com suas interpretações. Sem perceberem, a comparação com o Holocausto, ao invés de funcionar como uma espécie de cheque-mate contra os editores da Folha, serviu para desnudar o mundo mental em que vivem os autores do manifesto.

O não californiano para as cotas

Por motivos profissionais, fui à Coreia uma vez. Estava em uma reunião em um grande banco, e o diretor da área de investimentos estava fazendo uma exposição. Em determinado momento, não lembro o contexto, ele afirma que o país havia acabado de passar uma lei, proibindo as escolas de funcionarem após as 22:00 hs. Quis confirmar a informação, dado o sotaque, e ele confirmou: sim, 22 hs, porque havia escolas que funcionavam além desse horário. Pensei com meus botões: o Brasil não tem a mínima chance. Era 2010.

Lembrei-me dessa passagem quando li a matéria abaixo.

Os californianos (!) resolveram rejeitar as cotas para minorias nas universidades, que existiram até 1996. “Como pode um Estado que elegeu Biden com uma votação de quase 70% rejeitar políticas afirmativas?”, parece se perguntar o atônito jornalista. Aparentemente, o lobby chinês foi forte: os asiáticos representam 40% dos alunos das universidades californianas, mas apenas 15% dos alunos do ensino médio. A relação dos latinos é quase o inverso.

O box lateral “explica” o resultado pela baixa representação negra na população da Califórnia, o que, obviamente, não explica nada. O problema de minorias marginalizadas na Califórnia claramente não é dos negros, mas dos latinos. Mas os latinos não têm a favor de si o “peso de consciência histórico”. Não foram escravizados, vieram para os EUA por livre e espontânea vontade. Portanto, que se virem, essa é a mensagem das urnas californianas.

O autor da matéria afirma que não há preconceito contra os asiáticos. Qual é o “lugar de fala” desse jornalista para afirmar uma enormidade desse quilate? Sugiro que assista ao filme “Gran Torino”, de Clint Eastwood (para mim, top 10 na história do cinema), em que ele faz um americano (ele mesmo emigrante irlandês) que não suporta seus vizinhos asiáticos. A Califórnia, nesse sentido, é um laboratório de meritocracia. Com exceção da população negra, que efetivamente teve seu “ponto de partida” prejudicado pela história da escravidão, praticamente todo o restante da população é formada de migrantes que tiveram que batalhar para encontrar seu lugar ao sol, lutando em desvantagem de condições com os migrantes que haviam chegado antes. No caso, os asiáticos simplesmente estudam mais que os latinos, como demonstra o episódio que contei no início.

E, antes que alguns se precipitem, esse resultado da Califórnia não quer dizer nada para o Brasil. São realidades completamente distintas, a começar pelo fato de que os negros têm muito menos acesso à educação básica de qualidade por aqui. Basta ver a coloração dos alunos em nossas escolas de elite. Além disso, as ações afirmativas mal começaram no Brasil, com cerca de 30 anos de atraso em relação aos EUA. O Brasil, definitivamente, não é a Califórnia.

Negros na Magazine Luiza: marketing ou preocupação social?

Resolvi escrever esse artigo não porque tenha uma ideia clara sobre o assunto, mas justamente porque não a tenho. Às vezes faço isso: escrevo artigos para ordenar minhas ideias sobre um determinado assunto. Escrever me ajuda a pensar.

A Magazine Luiza decidiu restringir seu próximo programa de trainees somente a candidatos negros. Cota de 100%.

Uma primeira observação: vou fazer referência aos negros e pardos simplesmente como negros, para a simplificação do texto e seguindo a tradição norte-americana. Nos EUA, basta ter um pingo de sangue negro para ser considerado negro. Não existem mulatos. Kamala Harris tem a mesma cor de pele de Joe Biden, mas é considerada negra por ter ascendência negra.

Vamos começar descartando algumas ideias, pelo bem do debate. A primeira é que a empresa está querendo somente se autopromover. Sim, trata-se do suprassumo do politicamente correto, causa repercussão positiva, mas podemos conceder que a sua direção esteja genuinamente preocupada com o destino da população negra e, por outro lado, a diversidade é um bem em si e também para os resultados da empresa.

Outra ideia que vamos descartar de cara é o problema da seleção em si. Quem é negro e quem não é? Trata-se de uma empresa privada e, como tal, tem total liberdade de adotar os critérios que melhor se adequam ao seu objetivo. Se será pela cor da pele ou autodeclaração ou descendência, isso é com a empresa. Não cabe falar em “injustiça” porque se adotou critério A, B ou C. A empresa emprega quem ela quiser, com os critérios que achar melhor.

Uma terceira ideia que vamos descartar é a questão socioeconômica. Sabemos que não somente negros têm dificuldade em chegar aos programas de trainee das grandes empresas, muitos brancos também estão à margem desses processos de seleção. Mas não há como negar que há uma grande intersecção entre descendência negra e situação socioeconômica. A intersecção não é 100%, mas é suficientemente grande. Ao privilegiar a população negra, se está também atendendo à questão socioeconômica. Não é 100% justo, mas, novamente, a empresa não está buscando 100% de justiça, está buscando diversidade racial. Tenhamos sempre este objetivo em mente.

Existe uma quarta objeção, esta mais difícil de descartar, que se refere ao racismo reverso. Estaria a empresa fazendo discriminação contra brancos somente por conta da cor de sua pele? Esta discussão é mais difícil do que parece à primeira vista. Sim, diria o raciocínio lógico: afinal, se estou barrando pessoas por causa da cor de sua pele, estou praticando racismo. Mas a coisa não é assim tão simples. Os negros, no Brasil, ganharam a sua alforria no final do século XIX e foram competir em um mercado de trabalho dominado por brancos muito melhor preparados e capitalizados. Esse, digamos, vício de origem, perpetua uma condição inicial muito pouco favorável. Desta forma, barrar brancos não seria racismo, mas compensação histórica. Afinal, os negros é que foram escravizados, não os brancos. O Brasil sofreria do chamado “racismo estrutural”, onde as únicas vítimas do racismo seriam os negros, não os brancos. Portanto, não haveria racismo contra brancos.

Trata-se de um bom argumento, ainda que, como disse, de mais difícil aceitação. Afinal, seleção feita a partir da cor da pele é a própria definição de discriminação. Mas como, no Brasil, a única cor de pele que vem sendo discriminada há mais de 100 anos é a negra, vamos, no mínimo, acatar o argumento de que, se há discriminação reversa, ela é aceitável. Sigamos.

Vencendo esses argumentos iniciais, quero focar agora na efetividade da ação da empresa. Tendo como premissa de que se trata de uma boa ação, nada mais natural do que pensar em sua extensão. Para tanto, vamos imaginar dois cenários: o primeiro é a extensão espacial desse movimento e o segundo a sua extensão temporal.

No primeiro cenário, imagine por um momento que todas as grandes empresas do Brasil adotassem o mesmo procedimento. Universitários brancos não teriam espaço para trabalhar nessas empresas neste ano. Qual seria a reação? Provavelmente, esperariam o ano seguinte para se inscrever. Afinal, são essas empresas que pagam os melhores salários, e programas de trainee formam os dirigentes de amanhã. Nesse meio tempo, fariam bicos e estudariam mais. Perderiam um ano em suas carreiras, mas não seria um desastre.

O segundo cenário é mais interessante. Na extensão temporal, a Magazine Luíza tornaria permanente este critério. Aliás, por que somente por um ano? Um processo seletivo apenas está longe, muito longe, de resolver o problema da diversidade racial na empresa. Tornar este processo permanente garantiria este objetivo ao longo do tempo. A empresa o fará? Provavelmente não. E é com honesta tristeza que digo isso. A Luíza iria descobrir (se é que já não sabe) que restringir o processo a determinados grupos indefinidamente deteriorará a qualidade de seus quadros. E isso não por falta de capacidade dos negros, mas por falta de formação ao longo de uma vida. Não por outro motivo, este processo de seleção não considerará o domínio do inglês como fator de seleção. A dura realidade é que o problema vem lááááá de trás, da formação básica, e vai se acumulando com o tempo. Não se trata de dar uma chance que o negro vai mostrar o seu valor. A chance foi perdida na primeira infância, e recuperar depois disso é praticamente impossível. Em um mercado competitivo, esse gap de formação acaba pesando. Cotas em universidades e, agora, na admissão de empresas, são bandeides em uma fratura exposta. Ajudar sempre ajuda, mas está longe de resolver.

Parece que há estudos demonstrando que os estudantes admitidos por cotas têm performance semelhante aos que foram admitidos fora das cotas. É possível. A interação com pessoas de fora das cotas, que tiveram melhor formação ao longo da vida, certamente ajuda a desenvolver uma potencialidade que, de outra maneira, ficaria hibernando. Talvez um sistema de cotas na admissão das empresas funcionasse. Mas cota de 100% é outra coisa. Aliás, será interessante observar o que empresa fará no ano que vem. Se diminuir a cota, a mensagem que passará é de que não funcionou, ou que a política não é realmente sustentável. Acho que se colocou em uma armadilha.

Um terceiro cenário hipotético seria a adoção de cota de 100% todos os anos por todas as empresas. Seria o lógico a se fazer, considerando o problema a ser resolvido. É factível? Tem candidato para todo mundo? Receio que não. Como disse, o problema é muito anterior, e as empresas acabam sofrendo com o gap de formação que a população negra sofre desde os seus primeiros anos de vida. Além disso, e aí sim, a população branca estaria sendo alijada do processo para sempre, ou até que as “diferenças estruturais” desaparecessem, o que pode bem durar mais de uma geração. O que aconteceria com essa parcela da população? Certamente perderia o incentivo pela sua própria formação, uma vez que, por construção, a recompensa dos melhores empregos não estaria ao seu alcance. Teríamos uma deterioração generalizada da qualidade da mão de obra, pois a melhora da qualidade da mão de obra negra precisa vir da base, dos primeiros anos de vida, o que está longe de ser uma certeza.

Entendo que a iniciativa da Magazine Luíza é meritória em dois sentidos. No primeiro, coloca no horizonte da população negra a possibilidade de concorrer a uma vaga disputadíssima no mercado de trabalho. Normalmente, pessoas com baixo nível socioeconômico, negros incluídos, nem aventam essa possibilidade. “Não vou nem tentar, pois sei que não vou conseguir”, pensam. Um processo especificamente para negros abre uma janela de oportunidade na mente das pessoas-alvo que, de outra forma, não existiria.

O segundo mérito da iniciativa da empresa é chamar a atenção, de uma maneira bastante enfática, para um problema crônico brasileiro, a falta de diversidade em seus quadros diretivos. Um problema que não foi ela, nem nenhuma das grandes empresas, que criou. Na verdade, um problema estrutural de difícil solução.

Corro o risco de cair no lugar comum, mas enquanto não encararmos de frente o problema da formação das crianças independentemente da sua origem, estaremos enxugando gelo. Sim, ações afirmativas são excelentes, e devem ser feitas. Mas receio que o efeito para o marketing seja muito maior do que para a causa em si. Chama a atenção para o problema, mas está longe de o resolver. Melhor que nada. Mas precisamos de muito mais do que isso.

Racismo

Fernando Holliday foi chamado de “macaco de auditório” por um colega vereador.

Um outro colega vereador, Paulo Reis, do PT, negro como Holliday, afirma que o preconceito está na cabeça do ofendido.

Danilo Gentilli costuma dizer que a agenda da esquerda não trata do que se fala, mas de quem fala. Parafraseando, não se trata da ofensa, mas de quem é ofendido.

Lamentar é pouco

Estes são prints de mensagens que recebi de uma amiga ontem no WhatsApp. A linguagem é tão xucra, que até parece fake. Difícil imaginar alguém em pleno século XXI falando nesses termos.

Bolsonaro veio ontem a público lamentar a morte do capoeirista na Bahia e agressões desse tipo. Diz que não consegue controlar as ações de milhões de seguidores. É verdade, mas é muito pouco.

Bolsonaro, ontem, no Twitter, chamou Haddad de canalha ao condenar o candidato do PT pela disseminação de fake news. O ex-capitão sabe como ser contundente quando quer. Apenas “lamentar” é quase uma declaração de conivência, dado a forma como normalmente o candidato se comunica.

Até onde eu sei, racismo é crime no Brasil, e continuará sendo sob um governo Bolsonaro. O candidato deve deixar claro, muito claro, acima de qualquer suspeita, de que isso é verdade. E, para isso, precisa condenar atos desse tipo em termos muito, mas muito mais veementes, do que simplesmente “lamentar” é dizer que não tem nada a ver com isso.

Como assim?

Como assim “denuncia ação”???

A polícia tem o direito constitucional de interceptar e revistar qualquer cidadão na rua. Eu mesmo já fui parado e tive meu carro revistado perto de casa. Pensei: ainda bem que tem alguém aqui arriscando a vida para proteger a minha.

Esse mimimi precisa acabar se quisermos ter um país minimamente civilizado.

Quem é o racista?

Lula, ao comentar a crise financeira de 2008, disse que tinha sido criada pelos “brancos de olhos azuis”.

Trump proclamou o dia de Martin Luther King feriado nacional ao lado do sobrinho do grande líder das lutas pelos direitos civis dos negros.

Quem é o racista? Aquele que está do lado errado da História.