Desigualdade de renda, um problema sociológico

Reportagem de ontem informa que a desigualdade de renda permanece mesmo naqueles municípios onde há grande investimento público. Estou estupefacto: quer dizer então que a desigualdade não se resolve na base da canetada governamental? Quem diria…

No meu livro Descomplicando o Economês há uma tabela com os dez países menos desiguais e os dez países mais desiguais do mundo em termos de índice de Gini. Adivinha em qual dessas tabelas o Brasil está.

O mais incompreensível é que isso aconteça mesmo com uma boa parte dos gastos do governo sendo direcionados para a assistência social, a começar da Previdência, passando por educação e saúde, até chegar no Bolsa Família turbinado. Por que, afinal, depois de décadas de políticas social democratas de distribuição de renda, o nosso índice de Gini não se mexe em relação à média global? Por que continuamos a ser um dos países mais desiguais do mundo?

Os economistas Gustavo Loyola e Marcelo Nery arriscam algumas hipóteses. Loyola afirma que investimentos públicos muitas vezes não são direcionados para aliviar as necessidades dos mais pobres, como educação e saúde, mas para construir equipamentos para os mais ricos, como aeroportos. Já Nery chama a atenção para o fato de que a mesma mão que dá o Bolsa Família retira o benefício através dos impostos indiretos. Ambos analisam facetas diferentes do mesmo problema: o poder das elites de manterem suas posições.

Seriam as elites brasileiras tão piores do que as de outros lugares do mundo a ponto de estarmos entre os 10 países mais desiguais do mundo? Não acho que seja assim. E aqui entra a minha tese sobre este assunto.

Se analisarmos o ranking da desigualdade de renda, vamos observar que os países menos desiguais, com índice de Gini menor que 0,3, estão no leste europeu (antigos satélites e repúblicas da União Soviética), alem sos países escandinavos e Japão. A seguir, com Gini entre 0,3 e 0,4, estão os países da Europa Ocidental. Com Gini entre 0,4 e 0,5, temos os EUA e os países mais desenvolvidos dentre os emergentes, como Chile. Por fim, com Gini acima de 0,5, temos os países mais desiguais do mundo, como os africanos e o Brasil-sil-sil. O que nos diz esse quadro?

Minha tese é a seguinte: o nível de desigualdade de renda tem mais a ver com a formação do país e a homogeneidade de seu povo do que com características econômicas. É mais uma questão sociológica do que econômica. Países escandinavos e do leste europeu são muito mais homogêneos do que os da Europa Ocidental, que receberam muito mais imigrantes. Além disso, o socialismo imposto de cima para baixo no leste europeu certamente teve o seu papel, em um movimento que dificilmente seria tolerado em países com tradição democrática.

Já os EUA, apesar de sua riqueza, têm a marca da escravidão, e um contingente imenso de imigrantes, o que o torna um ponto fora da curva dentre os países mais ricos. No entanto, levam uma vantagem sobre o Brasil, que também teve escravidão e imigrantes: nunca teve uma Corte, que criou a ideia da fidalguia. Nos EUA, há elites como aqui, mas não com a ideia de uma espécie de direito divino aos privilégios.

A discussão sobre a reforma tributária é um laboratório sociológico nesse sentido. As elites se agarram aos seus privilégios, como por exemplo, a OAB pressionando para que os escritórios de advocacia continuem a ter tributação especial. No Brasil, o imposto sobre consumo (a mão que tira o que a outra mão deu) é proporcionalmente muito maior em relação ao imposto sobre a renda do que em países onde as elites têm menos poder. Aqui, a própria previdência social beneficia os mais ricos, ao privilegiar os trabalhadores com carteira assinada, além dos funcionários públicos. Aliás, a reforma da previdência foi também um laboratório que revelou o quanto as elites são capazes de preservarem seus privilégios, caminhando apenas milímetros na direção de uma distribuição mais justa da renda.

Somos um país pobre e desigual. A pobreza é um problema econômico, que se resolve com mais crescimento. Já a desigualdade é um problema sociológico, que só se resolve se e quando as elites políticas e econômicas decidirem que enough is enough e assumirem a sua responsabilidade.

PS.: quem são as elites? Resposta: as elites são sempre os outros.

Uma frase, dois erros

Em uma breve frase com duas afirmações, Lula conseguiu cometer dois erros. Não, não é possível aumentar o mínimo acima da inflação e não, aumentar o mínimo acima da inflação não é a melhor forma de fazer distribuição de renda. Vejamos.

A primeira afirmação é mais fácil de rebater. O aumento do salário mínimo afeta diretamente as contas da Previdência, que já enfrentam déficit considerável. Sendo a principal conta dos chamados gastos obrigatórios, qualquer aumento acima da inflação automaticamente comprime os gastos não obrigatórios, em um regime de teto de gastos (que, até segunda ordem, ainda é o regime fiscal brasileiro). Uma eventual mudança do regime fiscal poderia abrir espaço para aumentos reais (acima da inflação), mas o duro será convencer os credores (insensíveis por natureza) de que a dívida brasileira é sustentável.

A segunda afirmação já envolve outro nível de argumentação. Em primeiro lugar, é preciso saber se o aumento real do salário mínimo promove distribuição de renda. E, em promovendo, se seria a melhor forma de fazê-lo.

A intuição parece indicar que, de fato, melhorando a remuneração dos mais pobres, estaremos melhorando a distribuição de renda. Afinal, se os mais pobres ganham mais, a sua renda será maior em relação ao todo, e esta é a definição de distribuição de renda.

Bem, nem sempre os efeitos econômicos de medidas governamentais seguem a nossa intuição. Este é um caso. Aliás, investindo uma pouco mais na lógica do que na intuição, concluiríamos que, se dependesse somente de uma canetada do governo, não haveria país “desigual” no mundo. Aliás, não haveria país pobre no mundo. Obviamente, não deve ser assim.

O fato é que, no longo prazo, os salários dependem da produtividade do trabalhador. Pode Jesus Cristo descer na Terra e decretar um salário mínimo de R$ 5.000. Se a produtividade do trabalhador não for suficiente para pagar a conta, das duas uma: ou o trabalhador aceita receber menos “por fora”(trabalho informal), ou as empresas simplesmente deixam de existir por absoluta inviabilidade econômica (desemprego).

Os que defendem o estabelecimento de um salário mínimo maior acreditam que, mesmo que induza alguma informalidade, serve como uma espécie de referência para os salários, induzindo aumentos reais nas faixas de renda mais baixas e, portanto, melhorando a distribuição de renda. Por exemplo, um artigo do professor Ricardo Carneiro, da Unicamp, apresenta como evidência a diferença do salário mínimo em relação ao salário médio de países que têm distribuição de renda melhor que a brasileira, como se fosse o estabelecimento do salário mínimo maior que tivesse levado à melhor distribuição de renda, e não o oposto, dada a produtividade maior do trabalhador de países mais desenvolvidos.

De maneira geral, os artigos acadêmicos a respeito do tema mostram resultados inconclusivos. Por exemplo, artigo publicado no IPEA, que faz um levantamento da literatura, chega a essa conclusão.

Mesmo naqueles que mostram algum efeito positivo do aumento real do salário mínimo sobre a distribuição de renda, uma parte relevante desse efeito vem justamente do reajuste das aposentadorias, não do mercado de trabalho. Além disso, é sempre bom lembrar que, mesmo efeitos positivos podem ter vida curta, se a produtividade do trabalhador não acompanhar o aumento do SM. Ou seja, o efeito pode ser positivo em determinada janela, mas pode desaparecer em uma janela posterior.

Este é o fato geral. Especificamente no Brasil, o cenário é agravado pelo peso do salário mínimo nos gastos do governo (Previdência). Então, as consequências inflacionárias do desequilíbrio fiscal podem, inclusive, causar uma piora da distribuição de renda no longo prazo.

Mesmo assumindo algum efeito positivo sobre a distribuição de renda, o fortalecimento de programas sociais parece ser mais efetivo para este fim do que mexer com o SM, pois 1) não introduz um artificialismo no mercado de trabalho, o que acaba por prejudicar a alocação de capital no longo prazo e 2) tem efeito de expansão fiscal muito mais limitado.

Lula insiste na valorização real do SM porque seus viés sindicalista vê o governo como o braço forte que fará pender a balança do capital x trabalho em direção a este último. O problema é que a realidade econômica se impõe, e o voluntarismo do governo acaba cobrando o seu preço. Sempre.

Mais um mecanismo de concentração de renda

Gosto de ler os artigos de Eugênio Bucci. Normalmente saio deles com os argumentos para defender as ideias justo opostas às defendidas pelo professor da ECA-USP. Não foi diferente desta vez. O assunto de hoje é a cobrança de mensalidades nas universidades públicas, especificamente as estaduais paulistas, onde ele ganha parte do seu sustento.

Para surpresa de zero pessoas, o articulista defende a gratuidade total dessas universidades. Fui ler o artigo de coração aberto, com o objetivo sincero de garimpar pelo menos um argumento que fizesse sentido. Saí, como é usual nos artigos de Bucci, de mãos vazias. Vejamos.

O primeiro argumento é conhecido: a universidade, com as leis de cotas, está deixando de ser elitista. Segundo Bucci, nada menos que 51,7% dos alunos matriculados neste ano vieram de escolas públicas. Ora, compreendo que o articulista, sendo de humanas, possa ter alguma dificuldade em fazer essa conta, mas isso significa que 48,3% dos alunos ainda vêm de escolas particulares. Portanto, uma parcela relevante do corpo discente seria elegível, segundo o critério do próprio articulista, a pagar alguma mensalidade.

O segundo argumento é mais sociológico. Refere-se a uma teórica “segregação” entre alunos pagantes e não pagantes dentro da universidade. Em primeiro lugar, essa potencial segregação é somente uma teoria, carece de comprovação empírica (e não faltam exemplos de faculdades privadas com bolsas integrais, que poderiam ser usadas como “campo de prova” da teoria). Em segundo lugar, o argumento da segregação poderia ser usado contra o próprio sistema de cotas. Afinal, há, hoje, duas portas de entrada na universidade pública, uma para alunos de escolas públicas e outra para alunos de escolas privadas. A “segregação” já está posta, e se vale para o pagamento de mensalidades, vale também para as cotas.

O terceiro argumento, na verdade, já é, em si, um contra-argumento. O articulista menciona que universidades públicas podem sim cobrar mensalidades, e cita exemplos dos EUA. Obrigado, Bucci, por nos lembrar disso.

O quarto argumento está no objetivo da cobrança. Segundo o articulista, cobrar mensalidades ”não vai resolver nada”. O custo da pesquisa acadêmica é tão alto, que a cobrança de mensalidades se torna irrelevante. Por isso, segundo Bucci, as “escolas mais renomadas” estão caminhando para um modelo “tuition free” e buscando outras fontes de receitas. Este é o típico argumento “tudo ou nada”: se as mensalidades não podem pagar tudo, então que não se cobre nada. Trata-se de um argumento falacioso, que ignora como os problemas são resolvidos na vida real. Não existem “balas de prata”, o que existe são pequenos progressos em direção à solução, e a cobrança de mensalidades de quem pode pagar é só um deles.

Engatando no argumento anterior, Bucci cita o exemplo do MIT, que estaria caminhando, em algumas de suas faculdades, para o modelo de ”tuition free”.

Bem, existe um detalhe nada irrelevante aqui: a fonte principal de recursos do MIT é o seu endowment de 27 bilhões de dólares. Considerando uma retirada de 3% ao ano, que é uma estimativa conservadora para o rendimento real estimado de longo prazo nos EUA, temos cerca de 800 milhões de dólares por ano para sustento da universidade. Isso significa mais de 4 bilhões de reais ao câmbio de hoje. Para comparação, o orçamento anual da USP é de 7,5 bilhões de reais. Portanto, o funding para bolsas é fundamentalmente privado, não público, ainda que possa haver fundos públicos para financiar pesquisas específicas. Portanto, usar o MIT como exemplo de como a USP deveria continuar sendo gratuita para todos com funding público só pode ser desinformação ou má-fé.

Todos esses argumentos servem para esconder a iniquidade da gratuidade universal. Bucci fala como se o funding para manter a universidade fosse uma espécie de dádiva divina. Não. O “endowment” das universidades públicas é formado por “doações compulsórias”, também conhecidas como impostos. Funciona assim: toda vez que um pobre compra um quilo de arroz no supermercado do bairro, uma parte desse dinheiro vai para o “endowment” que paga 100% dos tuitions de alunos que fizeram escolas particulares e que poderiam pagar pela sua educação superior. Este é mais um entre tantos mecanismos de concentração de renda no país. Que seja defendido com unhas e dentes por campeões morais como Eugênio Bucci, para quem a renda a ser distribuída é sempre a dos outros, é só mais um sinal de que a agenda de redistribuição de renda no país tem um longo caminho a percorrer.

O quadro desolador do Estado de Bem-Estar brasileiro

Estou lendo Contas Públicas no Brasil, um livro organizado por Felipe Salto e Josué Pellegrini, com artigos escritos pelos maiores especialistas em políticas públicas no Brasil.

O capítulo sobre benefícios sociais, escrito por Pedro Jucá Maciel e Guilherme Ceccato, é muito esclarecedor, para não dizer estarrecedor.

Em primeiro lugar, os autores medem o tamanho dos “gastos sociais” no Brasil, incluindo,transferências diretas às famílias (aposentadorias, BPC, bolsa família etc) e gastos diretos com com saúde, educação, cultura e saneamento, incluindo os funcionários públicos dessas áreas. Em 2018, de todas as despesas do governo central, cerca de 70% foram para as rubricas de “gastos sociais”. Ou seja, cerca de 30% das despesas são queimadas para sustentar a própria máquina governamental.

Em seguida, os autores fazem uma comparação internacional a respeito da efetividade do governo na função de distribuir renda, tanto do lado da tributação (distribuição justa da carga tributária) como das transferências diretas do governo para a população (aposentadorias, seguro desemprego, BPC, bolsa família etc). Essa efetividade é medida pela melhora do índice de Gini após a tributação/distribuição. O índice de Gini, como sabemos, mede a desigualdade de renda: quanto mais próximo de 1, mais desigual é a distribuição, quanto mais próximo de zero, menos desigualdade temos.

O Brasil, antes dos impostos, tem Gini de 0,58 (dados de 2017). A média dos países da OCDE é de 0,47. Os autores atribuem essa diferença ao grau de acesso à boa educação, que já separa no berço ricos e pobres. Os mais pobres nos países da OCDE teriam acesso à educação mais semelhante aos mais ricos, explicando a diferença inicial. Até aqui, nenhuma novidade.

O interessante vem agora. Depois da cobrança de impostos e das transferências governamentais, o Gini médio dos países da OCDE cai para 0,31, enquanto o Gini do Brasil cai para 0,47. Ou seja, os países da OCDE conseguem reduzir seu Gini em 0,16, ao passo que o Brasil reduz o seu Gini em apenas 0,11. Isso acontece mesmo ajustando-se pelo tamanho da carga tributária de cada país. Em outras palavras, o estado brasileiro é menos eficiente do que a média da OCDE na sua função redistributiva.

Os autores dão alguns exemplos que ajudam a entender o problema. Por exemplo, o imposto sobre o consumo, que tributa horizontalmente, é maior no Brasil do que nos países da OCDE, ao passo que o imposto sobre a renda, que é progressivo, tem aqui as menores alíquotas, além de contar com muitas isenções. Outro exemplo: de todas as transferências diretas, 30% vão para os 10% mais pobres, enquanto na média dos países da OCDE, este número é de 70%. Isso acontece por conta dos benefícios da previdência, que tem regras generosas para os trabalhadores formais, deixando os informais dependendo de transferências menores, como bolsa família e BPC.

Enfim, a desigualdade brasileira é uma realidade irrefutável. Claro que o crescimento econômico é desejável e mitigaria o problema da pobreza, mas há muito o que se fazer também em termos de redistribuição sem necessariamente aumentar a carga tributária. O problema, como sempre, é mexer na renda do “andar de cima”, em que nos incluímos todos os que frequentam essa página. Apontar o dedo para ”os políticos” ou “para as corporações de funcionários públicos” é fácil. Difícil é aceitar receber menos aposentadoria ou pagar mais imposto de renda.

PS.: Reconheço que não é nada animador topar pagar mais imposto para um estado como o brasileiro. Trata-se de um bom motivo para manter o status quo.

O capital empoçado dos bilionários

Manchetes como essa abundaram na imprensa depois do tombo das empresas de tecnologia. Os bilionários ficaram mais pobres. O tom é de mal disfarçada satisfação.

Tenho um amigo que me confidenciou nessa semana que acha muito errado essa concentração de riqueza nas mãos de poucos e tantos passando fome. Que esse dinheiro, ao invés de ficar empoçado, deveria ser colocado para trabalhar ou, no mínimo, para mitigar o sofrimento dos mais pobres.

Esse meu amigo é economista e trabalha no mercado financeiro, então não faz o estereótipo do estudante de sociologia maconheiro, que vive de ditar regras de como o mundo seria melhor se os outros fizessem a sua parte. Por isso, acho que o seu ponto de vista talvez seja compartilhado, de maneira menos ou mais envergonhada, por outras pessoas que, sinceramente, não entendem como bilhões se acumulam nas mãos de tão poucos e ninguém faz nada a respeito disso. Assim, resolvi escrever este post, como uma resposta estruturada ao meu amigo (nem sei se ele vai ler) e a todas essas pessoas.

Em primeiro lugar, a concentração de riqueza não é um fenômeno de hoje. Na verdade, esse problema já foi muito pior em um passado remoto, bem antes do capitalismo, quando reis e nobreza realmente concentravam a (pouca) renda produzida. O surgimento da classe média – largas fatias da população com renda média – é um fenômeno relativamente recente, contemporâneo ao surgimento do capitalismo. Portanto, estamos reclamando de barriga cheia. Aliás, como igualmente acontece em vários outros campos em que as conquistas civilizatórias são tomadas como direito divino, e não como o que são, conquistas que não seriam alcançadas sem a devida mobilização de capital físico e humano.

Aqui entra a segunda parte da resposta ao meu amigo: o capital dos bilionários não está “empoçado”, inerte, ocioso. Muito pelo contrário: este capital, assim como a poupança de cada um de nós, está investido. Grande parte da riqueza desses bilionários está investida em sua própria empresa. Ou seja, a sua riqueza é formada pelas ações de suas empresas. Essas empresas geram valor para a sociedade. Caso contrário, valeriam zero. O preço de uma ação é dado pelo valor agregado pela empresa percebido pelos investidores. Este valor é medido pelo lucro do empreendimento. As empresas estão no mercado disputando o capital dos poupadores. Os bilionários poderiam se desfazer de suas ações e investir em outros empreendimentos com mais futuro. No limite, poderiam comprar títulos do governo, que não têm risco. Aliás, esta é uma tentação grande para os investidores brasileiros, que têm à disposição títulos do governo que pagam uma das maiores taxas de juros do mundo. Por que arriscar?

Os bilionários tiveram a “sorte” de poder investir em suas próprias empresas logo no início, quando não valiam nada. Na medida em que a empresa foi crescendo, o capital investido foi se multiplicando. E a empresa só cresce se agrega valor para o seu cliente, a ponto de pagar os custos da operação e ainda gerar lucro. Caso contrário, vai habitar o populoso cemitério das empresas que não deram certo. Para cada Zuckerberg bilionário, há milhões de empresários que não foram para frente. Há um risco, e não é pequeno.

Mesmo o dinheiro que não está investido em suas próprias empresas não está ocioso. É investido em outras empresas ou em títulos do governo. Ou seja, servem para financiar as beneméritas ações que os governos fazem com o nosso dinheiro. Aliás, não deixa de ser curioso que os mesmos que demonizam os bilionários são normalmente aqueles que esperam que os governos mitiguem os sofrimentos dos mais pobres. Com que dinheiro? Ah sim, dos bilionários. Ou seja, esse dinheiro “empoçado” está servindo para financiar as ações dos governos.

Mas o que este meu amigo gostaria mesmo é de um imposto que fizesse um corte na fortuna desses bilionários, carreando esse dinheiro para os cofres do governo. Ou seja, ao invés de tomar emprestado via títulos públicos, esse dinheiro “a mais” seria confiscado via impostos. Claro que a linha de corte para a taxação dos mais ricos teria que ser mais alta do que a fortuna desse meu amigo, que certamente está entre os 1% mais ricos do Brasil. Afinal, ricos são sempre os outros. Mas digamos que essa questão da linha de corte fosse resolvida. O ponto é: qual seria a mágica para manter o espírito empreendedor, dado que o grande prêmio seria tomado pelo governo, e todos estariam destinados a serem classe média? Regimes socialistas tentaram fazer isso, com os resultados conhecidos.

Para terminar, vou além: a concentração de capitais é benéfica para a sociedade. Somente a concentração de capitais permite que exista poupança. E somente com poupança é possível ter investimentos. Se todos tivessem somente o necessário para sobreviver, não haveria poupança, não haveria investimentos, não haveria novas empresas (que supõe colocar o capital em risco e, eventualmente, perdê-lo) e, no final, não haveria progresso.

O governo pode tentar substituir a poupança privada, investindo o dinheiro dos impostos. No entanto, conhecemos a eficiência desses investimentos. Portanto, é preciso ter sobra de capital privado para arriscar em novos empreendimentos. Não existe capital “empoçado”, ocioso, a não ser na cabeça de quem não conhece a dinâmica do capitalismo.

Um colchão por domicílio

Eugênio Bucci escreve hoje um artigo de comover o mais duro dos corações revolucionários. Eu ia destacar um trecho ou outro, mas resolvi reproduzi-lo por inteiro, pois se trata de uma peça única, sem costura.

O artigo trata da população de rua de São Paulo e aborda três aspectos: a glamourização de quem mora na rua, a eleição de culpados e a omissão dos “bons”.

A glamourização ocupa a maior parte do artigo. É de uma poesia que nos faz pensar se realmente aquelas pessoas necessitam de ajuda. São muito ordeiros, conversam como se estivessem em uma cidadezinha do interior e a moça é uma Cleópatra perdida na cidade grande. Temos muito a aprender com eles. Quase chegamos a pensar que a sua felicidade não merece ser interrompida.

No entanto, esse quadro idílico é abruptamente comparado com o gueto de Varsóvia. Sim, porque as situações são realmente muito comparáveis: lá, como aqui, temos um ditador que ordena arbitrariamente que famílias inteiras se mudem de suas casas para um determinado bairro. Reductio ad hitlerum detectado.

E quem seria esse ditador malévolo, que condena famílias inteiras à felicidade de morar na rua ou ao indizível sofrimento de viver em um gueto? (Eu realmente fiquei confuso com esse paradoxo). O suspeito de sempre: o sistema financeiro, que é o suco concentrado do capitalismo. Ah, esses hitlerizinhos que só pensam em seus lucros, gerando os sem-teto por algum processo não explicitado no texto. Nem precisa, porque está claro que o capitalismo é o mal.

O texto foi construído pelo articulista para arrancar suspiros dos seus pares em saraus regados por um bom vinho ao calor de uma lareira em uma casa alugada através do Airbnb em Campos do Jordão ou em um bar transado na Vila Madalena, onde, como sabemos, se tem a fórmula para acabar com todos os problemas do mundo: substituir o capitalismo selvagem por um outro mundo possível.

Aqui termina minha análise do texto e começa minha análise da situação. Como não sou poeta, a análise irá vazada em bullet points, como todo bom financista da Faria Lima faria:

– A população pobre vive nas periferias e nas favelas. O problema da população de rua extrapola a questão da pobreza, envolve drogas e doenças mentais. Está longe, muito longe, da glamourização que a esquerda faz da pobreza.

– A última informação que eu tenho, em conversa com uma assistente social da prefeitura, é que sobram vagas nos abrigos. Há uma relutância de dormir nesses abrigos por vários motivos. Não há como forçar as pessoas a deixarem as ruas. Qualquer iniciativa nesse sentido seria taxada pelos Buccis da vida como “higienização”. Já vejo um artigo comparando os abrigos a câmaras de gás.

– A esquerda normalmente torce o nariz para iniciativas, geralmente de cunho religioso, visando a mitigação dessa situação. Qualquer ação nesse sentido esconde a chaga do capitalismo e adia a verdadeira transformação da sociedade em um outro mundo possível. É preciso que essas pessoas continuem onde estão, de modo a lembrar a todos, o tempo inteiro, o quão cruel é o sistema em que vivemos.

– Por fim, meu usual suspeito para essa situação: pessoas como Bucci, que vivem do salário pago com o imposto cobrado dos descamisados, e que subsidia uma universidade para os filhos da classe média, para que estes aprendam como o sistema capitalista é perverso e, depois, escrevam artigos que arranquem suspiros do mais empedernido revolucionário.

Termino com uma música da Rita Lee que sempre me vem à mente quando leio artigos desse tipo:

“Me cansei de lero-lero / dá licença mas eu vou sair do sério / quero mais saúde / me cansei de escutar opiniões / de como ter um mundo melhor / mas ninguém sai de cima / desse chove-não-molha / eu sei que agora / eu vou é cuidar mais de mim” 🎶

Uma obra de muitas mãos

Esse imbróglio do ginásio do Ibirapuera me lembra o filme Aquarius. No filme, Sonia Braga faz o papel de uma viúva que se recusa a vender o seu apartamento para uma incorporadora, que quer usar o terreno para construir um prédio muito mais alto no lugar. É uma ode à resistência à especulação imobiliária.

O economista Samuel Pessoa escreveu à época um artigo antológico na Folha a respeito desse filme. Entre outras considerações, Pessoa lembra que a atitude da protagonista impediu a geração de muitos empregos na construção civil, além do desenvolvimento de atividades econômicas que gerariam mais impostos, que, no final da linha, poderiam ser usados para mitigar a situação de pessoas mais pobres. Tudo isso, em nome de uma resistência romântica ao “grande capitalismo”.

O Complexo do Ibirapuera está se deteriorando porque o poder público não tem recursos suficientes para mantê-lo. Ou melhor, tem, desde que retire de outras áreas da administração. A reportagem está cheia de aspas de ex-atletas e arquitetos, todos muito preocupados com o, digamos, ataque à nossa “memória esportiva”. Claro, os entrevistados provavelmente não dependem de um emprego na construção civil ou não usam escolas ou hospitais públicos. O projeto do governo do estado é construir uma arena esportiva nova e oferecer a área para a construção de um shopping center e um complexo de escritórios em uma das regiões mais valorizadas da cidade. A resistência vem de quem não depende dos empregos gerados pela iniciativa. Aqueles que dependem nem sabem que continuarão desempregados para que a nossa “memória esportiva” seja preservada.

A má distribuição de renda no Brasil é uma obra realizada a muitas mãos.

Enchendo os bolsos com consciência social

Não importa onde você leia uma análise da série Round 6. Pode ser positiva, negativa, focar no sucesso do audio-visual coreano ou na violência, pouco importa. Estará lá, indefectível, a alusão à “crítica ao capitalismo” ou à “desigualdade de renda”.

Se isto pode ser verdade para Parasita, está longe de sê-lo para Round 6. Na reportagem, os personagens são caracterizados como “desempregados em dificuldades financeiras”. Bem, não sei a que série o repórter assistiu. Na série a que eu assisti, o protagonista está super endividado porque é um tremendo de um preguiçoso irresponsável. A tal “sociedade capitalista” não marginalizou o sujeito. Ele se auto-marginalizou.

Ok, sem dúvida há um imenso fosso entre ricos e pobres, principalmente em sociedades onde alguns são tratados melhor do que outros pela lei. Por outro lado, tratar as pessoas como incapazes de melhorar suas próprias vidas através das suas escolhas livres, é falsear a realidade. Essa discussão sobre desigualdade de renda é um pouco como a questão do aquecimento global: todo mundo concorda que algo precisa ser feito, cobra dos governos alguma atitude, mas ninguém quer se mover um milímetro do seu lugar. O problema são sempre os outros.

O mais paradoxal nessas obras ditas de “crítica social” (a matéria cita também o filme Coringa) é que seu resultado prático final é concentrar ainda mais a renda nos bolsos dos seus produtores, no caso, a Netflix. A série Round 6 já vale quase US$ 1 bilhão, e os acionistas da empresa não devem estar reclamando. E se, como no caso, o dinheiro vem junto com uma “crítica social”, melhor ainda. Afinal, nada como ganhar dinheiro construindo um outro mundo possível.

Capitalismo na selva

Estudo patrocinado pela Natura mostra que o PIB das cadeias produtivas da “sociobiodiversidade” no Pará é 3 vezes maior que o PIB do próprio estado. Este PIB “oculto” não estaria sendo captado pelo IBGE porque o acesso aos produtores seria “muito difícil”, segundo a reportagem.

Bem, não tive acesso ao tal estudo, não conheço a metodologia. Mas sei que PIB é a soma de tudo o que é vendido para as pessoas. Portanto, imagino que o que deve ter sido feito foi encontrar os produtos das tais cadeias de produção no Pará (açaí, castanha do Pará, palmito etc) à venda em todo o país e somar seu valor de venda. A reportagem menciona a pesquisa em mercados de outros estados. Portanto, a diferença entre este “PIB” e o PIB oficial seria a diferença entre o valor de venda desses produtos para outros estados e o valor da venda nos mercados desses outros estados. Além disso, como várias dessas comunidades não devem ser registradas, sua produção não aparece no PIB oficial.

Mas o que mais me chamou a atenção na matéria foi a declaração final da diretora da Natura. Segundo sua avaliação, essas cadeias “biodiversas” são um exemplo de como é possível gerar riqueza sem “concentrar renda” e “gerar desigualdade”. Quase caí da cadeira.

Antônio Seabra e Guilherme Leal, fundadores da Natura, são literalmente bilionários, estão entre os 100 indivíduos mais ricos do Brasil com certeza. Mesmo a tal diretora deve receber um salário que um produtor de açaí do Pará nunca jamais poderá imaginar um dia ganhar. A Natura é a prova viva de como qualquer atividade produtiva, por mais socioambiental que seja, concentra renda.

Quem me acompanha aqui sabe que não tenho absolutamente nada contra que empresários se tornem bilionários, muito pelo contrário. Se conseguiram, foi porque tiveram habilidade para criar valor para os seus clientes. Não fossem Antônio Seabra e Guilherme Leal, provavelmente grande parte da “riqueza” natural brasileira continuaria enterrada na floresta, e várias comunidades não teriam a sua fonte de renda. Portanto, os bilhões dos donos da Natura são muito merecidos.

O que não dá é patrocinar esse conto-de-fadas idílico, em que os “povos da floresta” e as “comunidades ribeirinhas” podem explorar as riquezas da natureza sem agredir o meio ambiente e, ainda assim, ganhar muito dinheiro. Quem ganha dinheiro é o empresário que transforma e leva esses produtos para quem está disposto a pagar por eles. O resto é narrativa para sair bem na foto.

O colo do pobre é onde sempre a coisa acaba

Qualquer sistema tributário justo deveria prever a mesma alíquota incidindo sobre cada real de valor agregado por uma atividade econômica, qualquer que seja a sua natureza. Se diferenciação houvesse, deveria existir para favorecer os consumidores de renda mais baixa. Este deveria ser o princípio de qualquer sistema tributário progressivo.

O setor de servidos está estrilando com os projetos de reforma de tributária que estão em estudos. A alíquota única significará aumento da carga tributária para as empresas desse setor e diminuição para as empresas do setor industrial. A conclusão é óbvia: se uma alíquota única prejudica o setor de serviços, isso só pode significar que o sistema atual privilegia esse setor.

Faz sentido continuar privilegiando o setor de serviços? Vejamos.

A Cebrasse, cujo presidente foi ouvido na reportagem, é uma central de sindicatos. Visitando seu site, podemos ter uma ideia da natureza das empresas representadas: escolas particulares, lava-rápidos, associações de dentistas e médicos, segurança privada, terceirização de mão de obra para condomínios, serviços para o transporte aéreo, empresas de turismo, pet shops, etc. Veja se nessa lista existe algum serviço consumido por favelados ou sertanejos do interior do Nordeste. Vale subsidiar esse setor?

Isso sem contar que uma parte relevante das empresas do setor estão no regime do Simples, o que já representa um senhor subsídio e que, infelizmente, não será tocado pela reforma. O choro é pelas grandes empresas do setor.

Em outro ponto da reportagem, o presidente da Confederação de Serviços defende a CPMF para desonerar a folha de pagamentos. Sempre uma solução para passar para o pobre a conta do serviço consumidos pelos mais ricos.

O presidente da Cebrasse diz que “a conta está estourando no colo” do setor. Sim, verdade. Chegou a hora de desonerar os produtos da cadeia de produção industrial e onerar os serviços consumidos preponderantemente pelos mais ricos. Chega de a conta estourar no colo dos mais pobres.

P.S.: eu trabalho no setor de serviços.