Olhe o mundo ao seu redor. Olhe com atenção. Enumere as coisas que você vê. Enumere as coisas que você usa no seu dia-a-dia. Responda:
- Quantas dessas coisas você fez com as suas próprias mãos?
- Quantas dessas coisas foram feitas por indivíduos solitários (artesãos)?
- Quantas dessas coisas foram feitas por pequenos grupos de indivíduos, organizados em pequenas empresas?
Sou capaz de apostar que a sua resposta seja zero, ou algo muito próximo, para estas três perguntas. O mundo ao nosso redor é produzido por grandes empresas. Grandes empresas são organizações que congregam muitas pessoas, cada uma realizando um trabalho muito específico.
Adam Smith, no início do seu “A Riqueza das Nações”, destaca a diferença entre o que ele chama de “nações selvagens” (o que hoje chamaríamos de subdesenvolvidas) e “nações civilizadas” (as que hoje seriam as economias desenvolvidas):
“Entre as nações selvagens de caçadores e pescadores, todo indivíduo que está apto para trabalhar está mais ou menos empregado em algum trabalho útil, e procura prover, tão bem quanto possa, as necessidades e conveniências da vida, para si próprio, para sua família ou tribo, seja ele muito velho, ou muito novo para caçar ou pescar. Estas nações, entretanto, são tão miseravelmente pobres que, às vezes, são reduzidas à necessidade de eliminar ou, pelo menos, abandonar suas crianças, seus idosos e aqueles afetados por doenças, a perecer pela fome, ou serem devorados por bestas selvagens.
Entre as nações civilizadas, ao contrário, apesar de um grande número de pessoas não trabalhar de maneira alguma, muitas dessas pessoas consomem a produção equivalente a dez vezes, frequentemente a cem vezes o trabalho daqueles que produzem; mas a produção do trabalho de toda a sociedade é tão grande, que todos são abundantemente atendidos; e um trabalhador, mesmo o mais baixo e mais pobre, se ele é frugal e trabalhador, pode aproveitar uma parcela muito maior das necessidades e conveniências da vida que seria possível para qualquer selvagem obter.”
Tenha em mente que Adam Smith escreve este texto no final do século XVIII. Portanto, suas categorias e linguajar podem causar um pouco de estranheza, como quando, por exemplo, ele chama as nações mais atrasadas de “selvagens”. É a forma da época. Mas o centro da ideia de Adam Smith é que as nações desenvolvidas conseguem, de alguma forma, ser mais produtivas que as nações menos desenvolvidas. Nas nações menos desenvolvidas, apesar de todos trabalharem mais, a produtividade é muito baixa, e a produção não é suficiente para todos. Já nas nações desenvolvidas, mesmo que nem todos trabalhem, a produção é tão abundante, que sobra conforto até para os trabalhadores mais pobres.
Ao longo do livro, Adam Smith vai desenvolvendo esta ideia, começando justamente pelo conceito de empresa: várias pessoas trabalhando em conjunto, com a especialização de tarefas. Smith demonstra que a produtividade aumenta exponencialmente quando existe organização do trabalho.
Olhe novamente à sua volta. Praticamente tudo o que você vê e usa no dia-a-dia é fruto do trabalho de uma extensa cadeia de produção, formada por trabalhadores organizados em torno de grandes empresas. Graças a isso, podemos usufruir de um nível de conforto simplesmente inimaginável para nossos ancestrais de, digamos, 200 anos atrás.
Para que tudo isso seja possível, são necessárias ao menos duas coisas:
- A genialidade do indivíduo que inventa novas coisas ou novas formas de fazer as mesmas coisas e
- A genialidade do indivíduo que consegue organizar o trabalho de outros indivíduos da forma mais produtiva possível.
Uma coisa não existe sem a outra. Quantas pessoas geniais não existem no mundo, e que morrem anônimas com suas geniais invenções nas gavetas de suas casas? E, claro, o contrário também é verdadeiro: não existe empresa que fabrique algo que antes não tenha sido inventado.
Se o papel do inventor parece indubitavelmente muito precioso, o papel do CEO de uma empresa já é um pouco mais polêmico. Esta é uma percepção comum: por que o salário do manda-chuva tem que ser 20, 50 ou até 100 vezes maior do que o salário de quem realmente põe a mão na massa e produz?
Vou fazer uma outra pergunta antes de responder a esta: quando a Wal Mart começou suas atividades (e o mesmo vale para McDonalds, Magazine Luiza, Microsoft, e todas as outras grandes empresas em que você possa pensar), havia milhares de outras lojinhas no mundo. Por que a Wal Mart se tornou a Wal Mart e outras lojinhas permaneceram outras lojinhas, ou morreram e deram lugar a outras lojinhas? Será porque os trabalhadores da Wal Mart, aqueles que põem a mão na massa, trabalhavam mais duro do que a média? Ou será porque o CEO da Wal Mart estava disposto a apostar em sua visão, e tinha liderança para fazer com que outros o seguissem em sua visão?
Jogadores de futebol, há milhares no mundo inteiro. Mas Messi, há um só. As pessoas vão ao estádio não para ver o Barcelona jogar. As pessoas vão ao estádio para ver Messi jogar. Os outros jogadores se esforçam, e suam a camisa durante os mesmos 90 minutos. O treinador, o massagista, o roupeiro, todos trabalham muito, até mais do que Messi. Aliás, Messi não jogaria sozinho, ele precisa dos seus companheiros e de toda a infra-estrutura do clube. Mas as pessoas vão ao estádio para ver Messi.
A GM não inventou o automóvel, mas Alfred Sloan fez da GM a maior fabricante de automóveis do mundo durante muitos anos. O Facebook não inventou as redes sociais, mas Mike Zuckerberg fez do Facebook a maior rede social do mundo. O Google não inventou os mecanismos de busca na Internet, mas Larry Page e Sergei Brin fizeram do Google o maior mecanismo de busca na Internet do mundo. Não foram os trabalhadores mais capacitados da GM, do Facebook ou do Google que fizeram dessas empresas as líderes de seus setores. Foram Sloan, Zuckerberg e Page/Brin. Se dependessem dos trabalhadores, todas essas empresas seriam do tamanho de seus talentos: lojinhas de esquina.
Assim como as “nações civilizadas” se diferenciam das “nações selvagens” pela forma como organizam a sua produção, as empresas de sucesso se diferenciam das lojinhas da esquina pela forma como organizam a sua produção. No caso dos países, entenda-se por “organizar a produção” todas as instituições que permitem o livre empreendimento e a acumulação de capital físico e humano ao longo do tempo. No caso das empresas, entenda-se por “organizar a produção” desde ter uma estratégia de longo prazo, até a habilidade de atrair e reter os melhores talentos.
– Mas Guterman, há muito CEO incompetente que ganha rios de dinheiro!
Sem dúvida. Assim como há muitos trabalhadores incompetentes que continuam ganhando os seus salários regularmente. Mas não confunda a fotografia com o filme. Ninguém consegue se segurar eternamente em uma determinada posição se não tiver o talento necessário. Isso vale tanto para CEOs quanto para trabalhadores. Quando se está iniciando na carreira, esta afirmação parece um pouco forçada. Depois que se vai ganhando experiência, vamos percebendo que as pessoas, cedo ou tarde, são “marcadas a mercado”.
Assim, chegamos ao cerne da questão: são poucas, muito poucas pessoas mesmo, que fazem a diferença no mundo. 1% é muito generoso. Provavelmente, estamos falando de 0,001%. Estes 0,001% agregam mais valor ao mundo do que os restantes 99,999%. Valor aqui, bem entendido, material. Não me ocupo aqui de outras dimensões, tão ou mais importantes. Para um filho, a mãe agrega muito mais valor do que qualquer outra pessoa no mundo. Para um aluno, o professor certamente agrega mais valor. Acho que já me fiz entender.
Sendo assim, parece ser natural que existam bilionários no mundo. E, em um segundo escalão, milionários. Estas pessoas, ou seus ascendentes, agregaram valor equivalente. E, na medida em que os benefícios criados por estas pessoas atingem cada vez mais pessoas em um mundo globalizado, não é de se estranhar que as fortunas sejam maiores do que no passado.
A concentração de renda, preocupação de 10 em cada 10 governantes na atualidade, não deveria causar espanto: é o resultado natural da lógica capitalista. Os governantes, com seu viés populista, querem vender a ideia de que todos podem ser iguais. E não podem. Nem em países comunistas isso aconteceu: a Nomenklatura contava com privilégios vetados ao povo em geral.
A única forma de diminuir a concentração de renda é diminuir a o gap entre a capacidade das pessoas. Programas sociais desacompanhados de melhoras substantivas na educação e saúde do povo somente diminuem o crescimento potencial do país (via aumento de impostos), sem melhorar em uma vírgula a concentração de renda. Programas como o Bolsa Família são meritórios na medida em que exigem uma contrapartida (manter os filhos na escola), diminuindo o gap educacional. O benefício em si pode ter efeitos conjunturais, passageiros, mas não estruturais.
Mas por mais que se diminua a diferença de capacidade produtiva entre as pessoas, o 0,001% sempre existirá. E é essencial que exista e seja muitíssimo bem remunerado. Caso contrário, a civilização, tal qual a conhecemos, não existiria.