A “sensibilidade social” que concentra renda

Segundo o IBGE, o Brasil contava com 107,6 milhões de pessoas no mercado de trabalho ao final do 2o trimestre deste ano. Destes, somente 36,8 milhões trabalhavam no setor privado com carteira assinada. Se descontarmos os 12,2 milhões empregados no setor público, temos 58,6 milhões de pessoas desempregadas ou empregadas informalmente.

Sem medo de errar, esses 36,8 milhões de brasileiros (34,2% da força de trabalho) pertencem à elite do mercado de trabalho no país: certamente têm média salarial mais alta, contam com planos de saúde e, este é o foco aqui, se aposentam antes e com benefícios mais altos do que a média dos brasileiros.

Ocorre que esses benefícios são pagos pelas empresas que registram seus funcionários em carteira. O mais pesado desses benefícios é a contribuição previdenciária, que deve ser bancada, em grande parte, pelas empresas. Obviamente, quem está familiarizado com o conceito de “total cash” sabe que este custo, no final, é contabilizado pela empresa como o custo total do funcionário, tanto faz se esse dinheiro foi para o bolso do funcionário ou para bancar a sua previdência no futuro.

A desoneração da folha é uma fórmula mágica que permite diminuir o “total cash” pago ao funcionário sem diminuir um real dos seus benefícios. Obviamente, a conta só fecha se alguém suplementar esses benefícios no futuro. Adivinha? Isso mesmo: os benefícios previdenciários dos funcionários com carteira assinada serão pagos também por aqueles que não têm carteira e pelos desempregados, via impostos adicionais ou taxas de juros maiores, fruto de uma dívida pública maior.

Portanto, quando os empresários do setor apelam à “sensibilidade social” do presidente para que sancione a desoneração, trata-se de uma falácia: a desoneração é uma medida de concentração de renda, na medida em que beneficia os funcionários mais bem colocados no mercado de trabalho, às custas dos menos bem colocados. Isso sem falar que a relação entre diminuição de custo do emprego com o aumento do número de empregos é para lá de incerta, o empresário pode simplesmente embolsar a diferença.

Enfim, este é só mais um caso em que a “preocupação social” é usada para defender medidas que concentram renda. O Brasil é pródigo nesse tipo de coisa. E o nosso presidente, criado no meio sindical, só tem olhos para os direitos dos trabalhadores que pertencem ao aquário da CLT. Com esse mindset, seria uma surpresa se a desoneração não fosse sancionada.

O custo do homem-hora brasileiro

O problema não é nem o risco de ver a reforma da Previdência sendo revogada. A chance disso acontecer é zero.

O problema é o número de homens-hora gastos para desenhar e discutir um “projeto alternativo”. Homens-hora que poderiam estar sendo empregados em atividades úteis para o país, mas serão dedicadas a fazer cafuné em um fetiche da esquerda.

Lupi, vale lembrar, foi recentemente agraciado, juntamente com a irmã da Marielle Franco, com um cargo de conselheiro da metalúrgica Tupy, nas duas vagas reservadas ao BNDES. O ministro da Previdência, portanto, já exerce a sua habilidade de ganhar salário sem fazer nada de útil também na iniciativa privada. Na Tupy, ao menos, não vai gastar homens-hora da empresa em iniciativas sem pé nem cabeça.

Desigualdade de renda, um problema sociológico

Reportagem de ontem informa que a desigualdade de renda permanece mesmo naqueles municípios onde há grande investimento público. Estou estupefacto: quer dizer então que a desigualdade não se resolve na base da canetada governamental? Quem diria…

No meu livro Descomplicando o Economês há uma tabela com os dez países menos desiguais e os dez países mais desiguais do mundo em termos de índice de Gini. Adivinha em qual dessas tabelas o Brasil está.

O mais incompreensível é que isso aconteça mesmo com uma boa parte dos gastos do governo sendo direcionados para a assistência social, a começar da Previdência, passando por educação e saúde, até chegar no Bolsa Família turbinado. Por que, afinal, depois de décadas de políticas social democratas de distribuição de renda, o nosso índice de Gini não se mexe em relação à média global? Por que continuamos a ser um dos países mais desiguais do mundo?

Os economistas Gustavo Loyola e Marcelo Nery arriscam algumas hipóteses. Loyola afirma que investimentos públicos muitas vezes não são direcionados para aliviar as necessidades dos mais pobres, como educação e saúde, mas para construir equipamentos para os mais ricos, como aeroportos. Já Nery chama a atenção para o fato de que a mesma mão que dá o Bolsa Família retira o benefício através dos impostos indiretos. Ambos analisam facetas diferentes do mesmo problema: o poder das elites de manterem suas posições.

Seriam as elites brasileiras tão piores do que as de outros lugares do mundo a ponto de estarmos entre os 10 países mais desiguais do mundo? Não acho que seja assim. E aqui entra a minha tese sobre este assunto.

Se analisarmos o ranking da desigualdade de renda, vamos observar que os países menos desiguais, com índice de Gini menor que 0,3, estão no leste europeu (antigos satélites e repúblicas da União Soviética), alem sos países escandinavos e Japão. A seguir, com Gini entre 0,3 e 0,4, estão os países da Europa Ocidental. Com Gini entre 0,4 e 0,5, temos os EUA e os países mais desenvolvidos dentre os emergentes, como Chile. Por fim, com Gini acima de 0,5, temos os países mais desiguais do mundo, como os africanos e o Brasil-sil-sil. O que nos diz esse quadro?

Minha tese é a seguinte: o nível de desigualdade de renda tem mais a ver com a formação do país e a homogeneidade de seu povo do que com características econômicas. É mais uma questão sociológica do que econômica. Países escandinavos e do leste europeu são muito mais homogêneos do que os da Europa Ocidental, que receberam muito mais imigrantes. Além disso, o socialismo imposto de cima para baixo no leste europeu certamente teve o seu papel, em um movimento que dificilmente seria tolerado em países com tradição democrática.

Já os EUA, apesar de sua riqueza, têm a marca da escravidão, e um contingente imenso de imigrantes, o que o torna um ponto fora da curva dentre os países mais ricos. No entanto, levam uma vantagem sobre o Brasil, que também teve escravidão e imigrantes: nunca teve uma Corte, que criou a ideia da fidalguia. Nos EUA, há elites como aqui, mas não com a ideia de uma espécie de direito divino aos privilégios.

A discussão sobre a reforma tributária é um laboratório sociológico nesse sentido. As elites se agarram aos seus privilégios, como por exemplo, a OAB pressionando para que os escritórios de advocacia continuem a ter tributação especial. No Brasil, o imposto sobre consumo (a mão que tira o que a outra mão deu) é proporcionalmente muito maior em relação ao imposto sobre a renda do que em países onde as elites têm menos poder. Aqui, a própria previdência social beneficia os mais ricos, ao privilegiar os trabalhadores com carteira assinada, além dos funcionários públicos. Aliás, a reforma da previdência foi também um laboratório que revelou o quanto as elites são capazes de preservarem seus privilégios, caminhando apenas milímetros na direção de uma distribuição mais justa da renda.

Somos um país pobre e desigual. A pobreza é um problema econômico, que se resolve com mais crescimento. Já a desigualdade é um problema sociológico, que só se resolve se e quando as elites políticas e econômicas decidirem que enough is enough e assumirem a sua responsabilidade.

PS.: quem são as elites? Resposta: as elites são sempre os outros.

Tic-tac

O Estadão estampa como sua manchete principal um fenômeno que vem chamando a atenção: o crescente número de jovens vivendo na casa dos pais, ou mesmo dos avós.

Há muitas explicações, mas todas se resumem a uma só: renda disponível.

Coincidentemente, o economista Luís Eduardo Assis escreve artigo sobre a necessidade de uma nova reforma da Previdência.

Em 2022, o déficit da Previdência foi de R$ 375 bilhões, sendo 28% do setor público e o restante do setor privado. Detalhe: apenas 8% dos beneficiários trabalharam no setor público. Coincidentemente, a manchete da Folha hoje chama a atenção para o valor da aposentadoria dos militares.

Estes R$ 375 bilhões são cobertos com impostos e dívida pública, e referem-se apenas ao rombo na esfera federal. Para termos uma ideia de ordem de grandeza, o Fundeb, que reúne o montante destinado a custear o ensino básico, reunirá estimados R$ 264 bilhões este ano, sendo R$ 226 bilhões de Estados e municípios e o restante do governo federal. Ou seja, o rombo da Previdência na esfera federal é maior do que todo o dinheiro gasto no ensino básico brasileiro.

Segundo estudo da Cepal, mencionado por Assis, o Estado brasileiro gasta 6,1 vezes mais com nossos idosos do que com os nossos jovens, contra média global de 2,4 vezes. Trata-se, como diz o economista, de escolha política legítima e, como qualquer escolha política, traz as suas consequências. Uma delas é a tendência de os jovens cada vez mais permanecerem morando com os mais velhos por falta de renda.

Sim, precisaremos de uma nova reforma da Previdência. A anterior foi tímida, e a conta simplesmente continua não fechando. Tic-tac-tic-tac.

Democracia ou ditadura tecnocrática?

Interessante o sistema político francês. O presidente, se não tem apoio do Congresso para uma medida, pode decretar a medida sozinho. Esse poder pode ser usado uma vez a cada sessão parlamentar, a não ser em assuntos de finanças e Previdência, como é o caso.

Macron foi eleito com 59% dos votos. Mesmo assim, não parece democrático que decida, sozinho, os destinos da nação. Que o berço do Iluminismo e da separação de poderes tenha um dispositivo desse tipo parece, no mínimo, estranho.

Neste caso, até concordo com o mérito da questão. Mas não é esse o ponto. O povo, representado pelos parlamentares, pode não concordar, e tem o direito de não aprovar e colher, depois, os frutos de suas decisões. Em 2011, os gregos aprenderam uma lição amarga sobre os limites das finanças públicas, e parece que os franceses também querem passar pela mesma experiência. Não parece justo que um só homem prive os franceses desse tipo de experiência.

A ditadura tecnocrática parece ser o melhor regime, quando concordamos com suas decisões. No caso, somente 26% dos franceses concordam com Macron, segundo pesquisas. Os 74% que não concordam com ele estão tecnicamente errados. Mas quem se importa? A democracia é o regime em que a maioria detém o sagrado direito de errar.

30 anos. E os novos velhos problemas

Ontem, como parte da pesquisa para escrever meu próximo livro, assisti a um Roda Viva de dezembro de 1993, com o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. Além de ser engraçado ver jornalistas como Miriam Leitão, Carlos Alberto Sardemberg e Celo Ming 30 anos mais jovens, foram vários os aspectos interessantes do programa, alguns servindo como parâmetro para os desafios que temos hoje. Vejamos.

– É curioso ver como aqueles jornalistas experimentados não conseguiam entender a lógica da URV, unidade de conta que entraria em vigor 3 meses depois. Enquanto os jornalistas tentavam entender como seria o “dia D” da entrada do novo padrão monetário, FHC tentava explicar que não haveria “dia D”. Ao contrário dos planos econômicos anteriores, o governo não determinaria nada, a não ser o valor do salário mínimo em URV. O resto seria livremente pactuado entre os agentes econômicos, o que era uma novidade de difícil entendimento, por fugir completamente à lógica de um Estado interventor na atividade econômica.

– Também é curioso notar como todas as cifras eram denominadas em dólares. Era a confissão implícita do fracasso monetário brasileiro. Quando até o próprio ministro da Fazenda expressa os números do orçamento nacional em uma moeda estrangeira, é que a moeda virou uma peça de ficção. Isso é inimaginável hoje em dia, e uma grande prova de quanto evoluímos neste aspecto.

– O plano Real tinha três etapas, sendo que a primeira era alcançar um “equilíbrio fiscal” das contas públicas. FHC afirmava que, sem essa primeira etapa, a introdução da URV e, depois, do próprio Real, seriam inviáveis. Para tanto, havia um pacote de ajuste a ser aprovado no Congresso, no valor de US$ 22 bilhões. Segundo dados do FMI, o PIB brasileiro, no final de 1993, era de US$ 430 bilhões. Ou seja, o déficit estimado era de aproximadamente 5% do PIB! Hoje, estamos tentando zerar um déficit que, este ano, deve ser algo em torno de 2% do PIB. A tarefa parecia bem mais complexa do que é hoje. Mas, não é bem assim por três motivos: acurácia dos números, carga tributária e flexibilidade do orçamento. É o que veremos nos três itens a seguir.

– Um dos jornalistas lembrou que o ex-ministro Dilson Funaro esteve ali, no mesmo programa, afirmando que havia sido enganado quando lhe afirmaram que o déficit havia sido zerado. Na verdade, Funaro não havia sido enganado. É que ninguém sabia mesmo qual era o déficit naquela barafunda das contas públicas brasileiras, em que a inflação e ralos dos mais diversos tipos e tamanhos contribuíam para a zona. Talvez a coisa tivesse melhorado um pouco nos anos seguintes, mas é duvidoso afirmar que havia uma compreensão completa do orçamento como temos hoje. Então, provavelmente, FHC deve ter colocado um coeficiente de segurança nos números. Tanto que, em determinado momento do programa, Celso Ming questiona o montante com base em algumas premissas, e FHC sai pela tangente.

– Perguntas dos telespectadores (por fax!) chegavam, e a maioria versava sobre o aumento de impostos do pacote. Nesse momento, FHC afirma que o brasileiro não quer pagar imposto para manter os serviços públicos que reivindica, e que a carga tributária no Brasil era baixa: 18% do PIB no nível federal, 4% do PIB nos níveis sub-nacionais. Como sabemos, o ajuste fiscal brasileiro, desde então, foi feito por aí: a carga tributária saiu de 22% para os atuais 34% do PIB. E, mesmo assim, ainda rodamos com déficit. O que demonstra que as necessidades do Estado brasileiro sempre aumentarão e ultrapassarão a capacidade do mesmo Estado de arrecadar impostos. Hoje, a saída adotada por FHC de aumentar a carga tributária parece ser mais difícil, mas não impossível.

– FHC citou dois grandes números importantes em sua entrevista: 20% das despesas do governo eram com pessoal e 20% eram com aposentadorias. O governo ainda gastava 40% do seu orçamento com outros itens obrigatórios e tinha somente 20% de espaço para gastos discricionários. Segundo FHC, esses 20% eram muito pouco espaço para o governo fazer suas políticas, de modo que o pacote fiscal incluía algum nível de desvinculação de receitas. Pois bem: esses números hoje são os seguintes: os mesmos 20% para os funcionários públicos, 45% para aposentadorias, 30% para outros gastos obrigatórios e 5% para gastos não obrigatórios. Não por outro motivo, a primeira coisa que fez o governo Lula foi aprovar um pacote de gastos adicionais de R$ 200 bi, pois aqueles 5% não dão para nada. Hoje, o orçamento público é absolutamente engessado, e a questão das aposentadorias vai somente piorar ao longo do tempo, comendo uma parte cada vez mais relevante dos impostos pagos. A situação, hoje, é muitas vezes pior do que na época de FHC.

O Plano Real foi apenas o início, não o fim, do processo de estabilização. Várias iniciativas foram realizadas para recolocar as contas públicas nos eixos, desde o fechamento dos bancos estaduais, passando pelas grandes privatizações até a LRF e o estabelecimento de um comitê de política monetária independente. Voltamos para trás na disciplina dos entes sub-nacionais e não avançamos em outros pontos, como o equacionamento da previdência (a reforma foi muito pouco, muito tarde). A inflação, que servia para fechar as contas que não fechavam, parece domada. Mas, se não pactuarmos uma forma de financiar o orçamento, é questão de tempo para que volte. Primeiro, devagar. Depois, de repente.

Balanço da economia no governo Bolsonaro

Chegando ao fim dos 4 anos de governo Bolsonaro, farei uma retrospectiva de seu governo do ponto de vista de políticas econômicas. Dividirei os eventos em positivos e negativos, de acordo com minha exclusiva e particular avaliação.

Eventos positivos:

– Reforma da Previdência: talvez a maior realização deste governo, a reforma da Previdência havia sido já “amaciada” durante o governo Temer, que não conseguiu levar adiante por conta do episódio Joesley. O governo Bolsonaro teve o mérito de retomar a discussão e conseguir aprovar uma reforma com o dobro da economia prevista na reforma de Temer. Teve a parceria de Rodrigo Maia no Congresso, o que não diminui o seu mérito, pelo contrário. A reforma aprovada está longe de ser suficiente, precisaremos discutir outra reforma em breve, mas o mérito dessa reforma foi ter aprovado o limite de aposentadoria por idade, agora é só aumentar a idade. O ponto negativo foi retirar categorias, como a dos militares, da reforma. Não era necessário para a aprovação, foi uma idiosincrasia do presidente.

– Aprovação de marcos regulatórios: reformas microeconômicas são tão importantes quanto as macro. O marco do saneamento, das ferrovias, a nova regulamentação do câmbio, a lei da liberdade econômica, são todas mudanças legislativas que permitirão, ao longo do tempo, um ganho enorme de eficiência dos investimentos.

– Autonomia do Banco Central: vivemos o ineditismo de um presidente eleito que não tem disponível o cargo de presidente do BC para nomear. Este é um avanço significativo para a segurança do arcabouço monetário brasileiro. A discussão sobre a autonomia já vinha amadurecendo, mas o governo Bolsonaro teve o mérito de aprová-la.

– Privatização da Eletrobrás: única privatização do governo Bolsonaro, mas uma privatização que vale por muitas. Veio às custas de vários jabutis que pesarão na contade luz do brasileiro nos próximos anos. Mas, apesar de tudo, melhor privatizada do que estatal. Privatizada, a Eletrobras poderá levantar o capital necessário para um plano de investimentos que permita aumentar a segurança energética do país.

Eventos negativos:

– Não encaminhamento das reformas tributária e administrativa. A tributária foi reduzida por Paulo Guedes a uma proposta de substituição dos impostos sobre a folha de pagamentos por algo como uma CPMF disfarçada, jogando fora anos de discussões em torno da PEC 45, que cria um IVA único. A administrativa passou longe de qualquer discussão séria.

– Ruído na relação com a Petrobras. Apesar de não ter havido interferência real nos preços, a troca constante de comando na estatal certamente não foi positiva para a empresa.

– Redução do ICMS sobre combustíveis e outras utilities. Os efeitos de curto prazo foram positivos (redução dos preços dos combustíveis), mas os efeitos de médio prazo serão negativos, pois os Estados precisam desses impostos para equilibrarem suas contas. A conta vai chegar mais à frente.

– Desmoralização da regra do teto de gastos. Para mim, a pior herança deste governo. Em outubro de 2020, Paulo Guedes chamou Rogério Marinho, então ministro do Desenvolvimento Regional, de “fura-teto”. Era a fase ortodoxa de Guedes. Um ano depois, Guedes protagonizou o que viria a ser conhecido como “waiver day”, em que jogou a toalha diante da mudança de critério para calcular o teto de gastos para o ano seguinte, 2022. O pior da pandemia já havia passado há muito, e ficou claro que o furo no teto ocorreu para turbinar os gastos em ano eleitoral. Com isso, legitimou-se qualquer desculpa para gastos adicionais, o que abriu caminho para a PEC da gastança proposta pelo governo eleito.

Considerando prós e contras, o balanço final do governo Bolsonaro na área econômica é, na minha opinião, regular. Podemos ver o reflexo disso nos preços dos ativos. Por exemplo, a bolsa denominada em dólar reflete tanto o movimento da bolsa quanto da moeda. A seguir, temos uma tabela com as rentabilidades em dólar dos principais índices de bolsa no mundo, no período que vai de 28/12/2018 a 28/10/2022 (véspera da eleição), da pior para a melhor:

  • Hong Kong: -42,6%
  • Seul: -12,0%
  • Londres: -4,9%
  • Ibovespa: -2,5%
  • Tóquio: +2,2%
  • Frankfurt: +8,4%
  • Shangai: +9,2%
  • Sidnei: +10,3%
  • México: +19,5%
  • Istambul: +24,6%
  • Bombaim: +40,1%

Podemos notar que a bolsa brasileira não foi a pior do mundo no período, mas ficou longe de ficar entre as melhores. Foi uma bolsa… regular.

Claro, o próximo governo, ao que tudo vem indicando, não promete ser melhor, muito pelo contrário. Mas, para quem esperava o “primeiro governo verdadeiramente liberal desde o descobrimento do Brasil”, acho que ficaram devendo.

Enfiando a cabeça na terra

O presidente do Chile teve uma excelente ideia: além dos trabalhadores contribuírem para a sua própria aposentadoria, as empresas também serão chamadas a aportar uma contribuição para os seus empregados.

Boric certamente não conversou com Dilma Rousseff, ex-presidente do mesmo espectro político, que introduziu a desoneração da folha de pagamento de setores escolhidos, justamente porque a carga tributária sobre a folha de pagamento estava minando a capacidade de geração de empregos formais. Essa desoneração vem sendo renovada desde então e, provavelmente, continuará sendo pelos séculos sem fim.

As aposentadorias no Chile são muito baixas, dizem. Eu diria que as aposentadorias no Chile são proporcionais à contribuição dos trabalhadores. Não tem mágica: para aumentar o valor das aposentadorias precisa aumentar as contribuições. Boric teve uma brilhante ideia para atingir esse objetivo, ideia esta que já foi abandonada pelo governo brasileiro.

Como o Estado brasileiro “resolveu” o problema das aposentadorias? Simples: enfiamos a cabeça na terra e fazemos de conta que o INSS é sustentável ao longo do tempo. Ano após ano, cobrimos os déficits com receitas vindas de outros fatos geradores. Ou seja, subsidiamos as aposentadorias com outros tributos e com o aumento da dívida pública. No final do processo, quando essas duas fontes de recursos secarem, sempre teremos a inflação para queimar o valor das aposentadorias. Vivemos em um mundo de faz-de-conta, em que os trabalhadores têm a ilusão de que podem se aposentar com pequenas contribuições.

Os protestos no Chile em 2019 tiveram como origem, em grande parte, a insatisfação com o valor das aposentadorias. Boric foi eleito com a promessa de “resolver” o problema. Na aparência, o problema estará resolvido. Na realidade, o Chile resolveu enfiar a cabeça na terra, como nós fazemos por aqui.

O quadro desolador do Estado de Bem-Estar brasileiro

Estou lendo Contas Públicas no Brasil, um livro organizado por Felipe Salto e Josué Pellegrini, com artigos escritos pelos maiores especialistas em políticas públicas no Brasil.

O capítulo sobre benefícios sociais, escrito por Pedro Jucá Maciel e Guilherme Ceccato, é muito esclarecedor, para não dizer estarrecedor.

Em primeiro lugar, os autores medem o tamanho dos “gastos sociais” no Brasil, incluindo,transferências diretas às famílias (aposentadorias, BPC, bolsa família etc) e gastos diretos com com saúde, educação, cultura e saneamento, incluindo os funcionários públicos dessas áreas. Em 2018, de todas as despesas do governo central, cerca de 70% foram para as rubricas de “gastos sociais”. Ou seja, cerca de 30% das despesas são queimadas para sustentar a própria máquina governamental.

Em seguida, os autores fazem uma comparação internacional a respeito da efetividade do governo na função de distribuir renda, tanto do lado da tributação (distribuição justa da carga tributária) como das transferências diretas do governo para a população (aposentadorias, seguro desemprego, BPC, bolsa família etc). Essa efetividade é medida pela melhora do índice de Gini após a tributação/distribuição. O índice de Gini, como sabemos, mede a desigualdade de renda: quanto mais próximo de 1, mais desigual é a distribuição, quanto mais próximo de zero, menos desigualdade temos.

O Brasil, antes dos impostos, tem Gini de 0,58 (dados de 2017). A média dos países da OCDE é de 0,47. Os autores atribuem essa diferença ao grau de acesso à boa educação, que já separa no berço ricos e pobres. Os mais pobres nos países da OCDE teriam acesso à educação mais semelhante aos mais ricos, explicando a diferença inicial. Até aqui, nenhuma novidade.

O interessante vem agora. Depois da cobrança de impostos e das transferências governamentais, o Gini médio dos países da OCDE cai para 0,31, enquanto o Gini do Brasil cai para 0,47. Ou seja, os países da OCDE conseguem reduzir seu Gini em 0,16, ao passo que o Brasil reduz o seu Gini em apenas 0,11. Isso acontece mesmo ajustando-se pelo tamanho da carga tributária de cada país. Em outras palavras, o estado brasileiro é menos eficiente do que a média da OCDE na sua função redistributiva.

Os autores dão alguns exemplos que ajudam a entender o problema. Por exemplo, o imposto sobre o consumo, que tributa horizontalmente, é maior no Brasil do que nos países da OCDE, ao passo que o imposto sobre a renda, que é progressivo, tem aqui as menores alíquotas, além de contar com muitas isenções. Outro exemplo: de todas as transferências diretas, 30% vão para os 10% mais pobres, enquanto na média dos países da OCDE, este número é de 70%. Isso acontece por conta dos benefícios da previdência, que tem regras generosas para os trabalhadores formais, deixando os informais dependendo de transferências menores, como bolsa família e BPC.

Enfim, a desigualdade brasileira é uma realidade irrefutável. Claro que o crescimento econômico é desejável e mitigaria o problema da pobreza, mas há muito o que se fazer também em termos de redistribuição sem necessariamente aumentar a carga tributária. O problema, como sempre, é mexer na renda do “andar de cima”, em que nos incluímos todos os que frequentam essa página. Apontar o dedo para ”os políticos” ou “para as corporações de funcionários públicos” é fácil. Difícil é aceitar receber menos aposentadoria ou pagar mais imposto de renda.

PS.: Reconheço que não é nada animador topar pagar mais imposto para um estado como o brasileiro. Trata-se de um bom motivo para manter o status quo.

Colonizando o orçamento público

Quando TODAS as centrais sindicais se unem para publicar um anúncio de página inteira, o melhor a fazer é segurar sua carteira.

O assunto é a desoneração da folha de pagamento. O fim, como sempre, é muito nobre e também eficiente, quando se trata de disfarçar transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos, função que nossas leis cumprem muito bem.

Para quem está chegando agora, trata-se de diminuir a contribuição patronal para a previdência social. Como não há fonte alternativa de recursos e as aposentadorias continuam sendo pagas religiosamente, há que se sacar dinheiro de outro lugar. Ou outro imposto é criado, ou aumenta-se a dívida pública. De qualquer forma, alguém irá pagar por isso.

O mais curioso é que as centrais sindicais foram absolutamente contra a reforma da previdência. Quer dizer, defendem uma previdência com as regras mais generosas do mundo, mas na hora de pagar a conta, tentam empurrar o papagaio para os outros.

Nesse sentido, vale ler o último parágrafo do manifesto, em que as centrais defendem que o “financiamento da previdência seja amplamente reformulado”. Em outras palavras, que se encontre alguém para pagar pelas nossas aposentadorias. O ministro Guedes já encontrou essa solução: a volta da CPMF, um imposto que todos pagam, inclusive os mais pobres. Está aí, pela enésima vez, um mecanismo de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos, no caso, dos trabalhadores sem carteira para os trabalhadores com carteira assinada.

O lobby é muito forte e a extensão da desoneração será aprovada. Será apenas mais um exemplo de como as elites extrativistas colonizam o orçamento para o seu próprio benefício. Depois, saímos correndo para encontrar R$ 30 bilhões para matar a fome dos descamisados. Descamisados estes que são roubados do outro lado sem perceber.