Raciocínio lógico

Se Renan Calheiros for mantido na presidência do Senado mas retirado da linha sucessória da presidência da República, poderemos concluir que um réu pode ser presidente do Senado, mas não presidente da República. De onde se conclui que, para o STF, o Poder Executivo é mais digno do que o Poder Legislativo. Assim, o STF estará, na prática, acabando com a igualdade entre os Poderes da República.

Evento institucional grave

O documento assinado pela mesa do Senado invoca a independência dos poderes para justificar a desobediência à liminar do ministro Marco Aurélio Melo, que decidiu monocraticamente afastar da presidência do Senado o senador Renan Calheiros. Entendo que há ao menos duas incongruências combinadas aqui:

1) Ao dizer que não acataria a decisão do Supremo por esta ter sido monocrática, o Senado concorda implicitamente que o colegiado do Supremo tem o poder de afastar o seu presidente. Ora, se o colegiado tem este poder, também o tem um ministro que toma uma decisão monocrática, ainda que incorreta. Se assim não fosse, as decisões monocráticas deveriam ser abandonadas de todo, pois nada valeriam.

Mas o segundo ponto é o mais importante.

2) A decisão de Marco Aurélio Melo afrontou a independência entre os Poderes? Ora, quando o Supremo afastou Eduardo Cunha da presidência da Câmara, discutiu-se este ponto, e aparentemente não houve dúvida de que o Supremo poderia ter tomado aquela decisão. Naquele caso, entendeu-se que o Supremo não invadiu as atribuições da Câmara, pois entre estas não está a de julgar os seus pares por crime, sendo esta uma atribuição exclusiva do Supremo. A diferença entre um caso e outro não pode ser decisão monocrática versus decisão colegiada pois, como vimos no ponto acima, as duas têm o mesmo enforcement. Portanto, a decisão, por mais estapafúrdia que seja, deveria ter sido cumprida. Ao não ser que, e este é o ponto crucial no meu entender, O SENADO TENHA INVADIDO A COMPETÊNCIA DO SUPREMO. Se houve desrespeito à separação de poderes, foi do Senado em relação ao Supremo, e não vice-versa.

Como este imbroglio poderia ter sido resolvido pelo Senado? Simples: Renan acataria a decisão, o Senado faria pressão para que o Supremo julgasse rapidamente a liminar, que poderia ser derrubada, desmoralizando (mais uma vez) Marco Aurélio Melo, dado que a decisão foi mesmo estapafúrdia.

Como este imbroglio será resolvido agora, em que o Senado liderou uma desobediência civil? Sinceramente, não sei. O Supremo será obrigado a confirmar a liminar de Marco Aurélio, que de outra forma poderia ser rejeitada, mas ir adiante com qualquer outra penalização é institucionalmente inviável.

Este é um evento grave. De agora em diante, o Congresso decide quais decisões do Supremo sobre seus membros vai ou não acatar, e em que condições.

A garotinha que não envelhece

Já ouvi gente boa e honesta colocando reparos à operação Lava-Jato. Que haveria prisões arbitrárias. Que os procuradores se colocariam como “salvadores da Pátria”. Que o Moro atuaria na zona cinzenta da lei.

A Lava-Jato veio desafiar as estruturas de poder baseadas no crime? Ou não passam de um bando de Savonarolas, que atropelam o Estado de Direito sob o pretexto puritano de “purificar” o país?

Este “choque de narrativas” me faz lembrar do filme Mente Brilhante, que conta a história do matemático e prêmio Nobel John Nash. Nash (atenção: spoiler!) sofria de esquizofrenia, e vivia, desde a juventude, uma vida dupla: a real e a imaginária. Na imaginária, havia alguns personagens com os quais Nash convivia, entre as quais uma garotinha. No ápice do filme, quando Nash desespera-se por não saber distinguir a realidade de suas alucinações, de repente se depara com a evidência que vai definir a distinção entre uma coisa e outra: a garotinha não envelhece. Ele nota isso, e descobre o seu mundo de alucinações.

A narrativa construída, em primeiro lugar, pelo PT, e abraçada gostosamente por baluartes da moralidade como Renan Calheiros, é de que o Ministério Público e o juiz Sérgio Moro estão destruindo o Estado de Direito no Brasil, achacando testemunhas, prendendo sem provas, liberando escutas, espetacularizando a justiça, imiscuindo-se nos assuntos “interna corporis” de outros poderes da república.

Segundo esta narrativa, as 10 medidas contra a corrupção seriam, na verdade, o instrumento final da Ditadura do Ministério Público. Pior que a ditadura militar, como várias vezes ouvimos dos “defensores do Estado de Direito”.

Articulistas influentes, como Reinaldo Azevedo, e fontes insuspeitas, como o editorial do Estadão, já alinharam-se, em maior ou menor grau, a esta leitura da realidade. Não é à toa que se produziu, como definiu Deltan Dalagnol outro dia, uma “fissura” entre a opinião pública e a operação Lava-Jato. E os procuradores da operação sabem que esta fissura é a morte da operação. Sem a opinião pública a seu lado, os procuradores e os juízes são nada perto dos interesses poderosos que estão sendo desafiados.

Mas, afinal, como distinguir alucinação de realidade? Onde está a “garotinha que não envelhece”, que nos dará a certeza de que a Operação Lava-Jato está agindo dentro da lei, ou, ao contrário, está destruindo o Estado de Direito no Brasil?

Poderia aqui entrar nas tecnicalidades. Por exemplo, a de que a essência do trabalho dos procuradores é acusar, e os empreiteiros/políticos acusados exercem plenamente o seu direito de defesa, pagando os melhores advogados do Brasil. Ou que Sérgio Moro pode ter as suas decisões reformadas pelas instâncias superiores, até o STF. Ou seja, há pesos e contrapesos, de modo que a história de “justiceiros” sem lei parece fora de lugar.

Mas, para mim, a “garotinha que não envelhece” fica evidente quando vejo, de um lado, Moro e Delagnol, e do outro, Lula, Renan, Temer, e toda a cambada do Congresso. Lula, Renan, Temer, são “a velha política que não morre”. Tem algo de muito estranho, mas muito mesmo, quando vemos um baluarte da moralidade como Renan defendendo o “Estado de Direito”. A “garotinha que não envelhece” é evidente.

Não se deixe enganar por alucinações. Temos uma oportunidade única de avançar no patamar civilizatório brasileiro.

Dia 4, nos encontramos na Paulista.