Brasil e Argentina: um paralelo

A inflação no Brasil, este ano, deve fechar próxima de 5%. Os juros, apesar de estarem caindo, ainda estão muito altos. O Banco Central ainda mantém uma política monetária bastante apertada, pois ainda estamos distantes da meta de inflação, que é de 3% para o ano que vem. No entanto, do outro lado das Cataratas do Iguaçu, a inflação na Argentina está hoje em 140%, e só Deus sabe quanto vai fechar no ano.

Por que essa diferença gigantesca? O que o Brasil fez de certo, que lhe permite conviver com uma inflação civilizada? Ou, por outra, o que a Argentina fez de errado, para estar às portas de uma hiperinflação?

Como Brasil e Argentina acabaram com a hiperinflação

Investigar a história é sempre um exercício discricionário, no sentido da escolha que se faz do ponto de partida da narrativa. Neste artigo, decidi estabelecer o ponto de partida da comparação no início da década de 90, quando ambos os países resolveram o problema da hiperinflação que assolou a ambos na década de 80. Comecemos pelo Gráfico 1, que mostra justamente essa transição.

Não se deixe enganar pela escala! Mesmo em anos em que as barras estão pequenas, a inflação era muito alta para os nossos padrões atuais. Por exemplo, em 1986 (ano do Plano Cruzado no Brasil), a inflação brasileira foi de 80%, enquanto na Argentina foi de 82%. Observe que a Argentina resolve o seu problema inflacionário já a partir de 1991, com o Plano Cavallo (nome do ministro da economia de Carlos Menem) enquanto, no Brasil, este problema só é definitivamente endereçado em 1994, com o Plano Real. Vamos mostrar o mesmo gráfico a seguir, mas iniciando em 1995, quando ambos os países já tinham as suas inflações estabilizadas (Gráfico 2).

Observe que há duas fontes para a confecção deste gráfico, o FMI e um site chamado Trading Economics. Isso ocorre porque a base de dados do FMI não possui informações sobre a inflação da Argentina de 1997 para trás, e também para os anos de 2015 e 2016. O FMI somente coloca em sua base de dados informações que possuam um mínimo de confiabilidade. Aparentemente, não foi o caso da inflação argentina antes de 1997 e nos anos de 2015 e 2016. O site Trading Economics tem esses números, com exceção de 2016. Neste ano, nem com muito boa vontade.

A política cambial dos dois países

Voltemos para a análise. Note como, até o ano 2001, a inflação brasileira foi substancialmente superior à Argentina. Isso aconteceu porque o Plano Cavallo adotou uma dolarização disfarçada, chamada de “Currency Board”. Este mecanismo garantia a total conversibilidade entre o peso e o dólar, tornando a moeda norte-americana, na prática, a moeda de referência da economia argentina. No Brasil, também adotamos uma dolarização disfarçada, mas muito menos rígida: as “bandas cambiais”, em que o Banco Central comprava ou vendia dólares sempre que a moeda brasileira se afastava de um patamar pré-determinado. Esse mecanismo um pouco mais flexível gerou, como contrapartida, uma inflação muito mais alta do que a do nosso vizinho. No Gráfico 3, vemos os câmbios brasileiro e argentino no período que vai de 1995 a 1998, antes que ambos os governos desvalorizassem suas moedas. Podemos observar que o peso permanece em 1,00, enquanto o real se desvaloriza de 0,85 até 1,20.

No gráfico 4, temos a extensão do gráfico 3 até a desvalorização das duas moedas. Observe como a desvalorização do real, de 1,20 para cerca de 1,80, foi fichinha se comparada à desvalorização do peso, que foi de 1,00 até 3,80 em questão de meses. Isso aconteceu porque a economia argentina acumulou tensões durante muito mais tempo do que a brasileira, em um sistema muito mais rígido. Quando explodiu, a potência da explosão foi muito maior.

É dessa época o famoso “corralito”, um esquema de sequestro de dólares que pegou os argentinos de calças curtas, equivalente ao calote do Plano Collor.

A Odisseia dos Tontos é um filme com Ricardo Darín que tem como pano de fundo o corralito. Muito bom para quem quiser entender o ambiente da Argentina na época.

Temos, então, já de cara, uma diferença fundamental entre Brasil e Argentina: o governo brasileiro decidiu por um sistema cambial mais flexível, mesmo durante o período do “câmbio administrado”, que durou apenas 4 anos. O Currency Board argentino durou nada menos do que 11 anos, do início de 1991 até o final de 2001, acumulando todo tipo de distorção. Sua saída foi caótica, com o presidente De La Rua tendo que sair de helicóptero do telhado da Casa Rosada e nada menos do que 4 presidentes se sucedendo em pouco menos de duas semanas.

A coisa começa a se estabilizar somente a partir de 2003, com a chegada ao poder de Néstor Kirchner e o início do superciclo das commodities, que irá beneficiar o Brasil, a Argentina e todos os outros exportadores de commodities. No gráfico 5, temos o real e o dólar nesse período, que vai de 2003 a 2011.

Note, no entanto, uma coisa estranha: enquanto o real se valoriza de maneira impressionante nesse período, passando de 3,50 para 1,50 entre 2003 e 2008, o peso pouco se move, permanecendo no patamar de 3,00 durante todo esse período. Ora, era de se esperar um comportamento semelhante, dado que os termos de troca eram favoráveis aos dois países, assim como a todos os outros exportadores de commodities. O peso chileno, por exemplo, saiu de 600 para 450 por dólar nesse período.

Por que isso aconteceu? O câmbio serve como um termômetro da saúde de um país. Se o peso não seguiu a tendência dos países exportadores de commodities, é porque algo errado havia. Se observarmos o que aconteceu após a Grande Crise Financeira (GCF) de 2008, ainda no gráfico 5, essa dicotomia fica ainda mais clara: enquanto o real se recupera da grande desvalorização do final de 2008, o peso começa uma escalada de desvalorização que irá somente piorar dali para frente. Podemos estabelecer este evento (a GCF) como o ponto inicial da deterioração da moeda argentina que dura até hoje, apesar de que, como vimos, a distorção está presente desde o abandono do Currency Board.

No gráfico 6, podemos observar o comportamento do ágio entre o câmbio oficial e a cotação do principal câmbio paralelo, o “blue” (infelizmente, só consegui dados a partir de 2008).

Note como o ágio é praticamente zero até 2011, o que indica que o câmbio oficial flutuava livremente. A partir de 2012, algo começa a acontecer, e o governo da então presidente Cristina Kirchner, que havia assumido no final de 2007, começa a controlar o câmbio. Com isso, o ágio explode, variando em torno de 60% a partir de 2013 até a vitória de Maurício Macri, que assume o governo em 2016. O novo governo libera o câmbio, que flutua livremente, fazendo com que o ágio voltasse para zero. Este quadro permanece assim até que Macri perde as eleições, e o novo governo de Alberto Fernández decide tabelar novamente o câmbio, fazendo com que o ágio explodisse novamente. É nesse ponto que estamos hoje.

Para o brasileiro, passou a ser estranho falar de “câmbio paralelo”. A última vez que o Estadão publicou a cotação do câmbio paralelo foi em abril de 2001, ou seja, há mais de 20 anos, e cerca de dois anos após o governo deixar o câmbio flutuar. Na Argentina, onde o câmbio é administrado pelo governo, o mercado paralelo é o que fornece a real cotação do peso.

Última publicação do “dólar paralelo” no Estadão, em abril/2001

As reservas internacionais

O acompanhamento das reservas internacionais fornece uma outra perspectiva do problema externo argentino. Em 2006, a exemplo do Brasil, a Argentina também “se livrou” do FMI. Portanto, vamos acompanhar a evolução das reservas argentinas desde então, no gráfico 7, com e sem os aportes do FMI.

Observe como, a partir de 2011, as reservas, que se encontravam por volta de US$ 50 bi, começam a recuar, até atingir US$ 25 bi em 2014. A partir de meados de 2016, o governo Macri, aproveitando uma onda de boa vontade do mercado internacional de capitais com o seu governo, adota a estratégia de emitir dívida para reforçar as reservas internacionais. Entre abril/16 e maio/18, o governo argentino emitiu US$ 66 bilhões em dívida externa, enquanto as reservas cresceram US$ 20 bilhões nesse período. Só nesta distorção já podemos perceber que havia algo de podre no reino de Buenos Aires. Esse “algo de podre” forçou o governo Macri, em junho/18, a fechar o maior acordo da história do FMI, um stand-by de US$ 56 bilhões. A partir de então, o governo argentino foi sacando desse acordo. Entre junho/18 e agosto/23, a Argentina sacou US$ 50 bilhões deste acordo. Descontando este montante, as reservas argentinas estão negativas em US$ 25 bilhões.

A comparação direta com a trajetória das reservas brasileiras fica prejudicada por conta da diferença de tamanho entre as duas economias. Assim, optei por mostrar a razão entre reservas e o total de importações mais pagamento de serviços de cada país (dados mensais), dado que as reservas servem justamente como uma reserva de emergência para este tipo de gasto. O resultado está no gráfico 8.

Observe como, a partir de 2009, esta relação se deteriora na Argentina, saindo do intervalo de 10-15 meses de importações (como a brasileira), para algo como 5 meses. Com o aumento das reservas feito por Macri, essa relação foi para o intervalo de 15-20 meses (como era a brasileira na época), mas deteriorou-se a partir de então. Note que, mesmo com o aporte do FMI, as reservas argentinas hoje conseguem pagar algo como 5 meses de importações, ao passo que as reservas brasileiras pagam algo como 10-15 meses.

O problema fiscal

Até agora, somente verificamos os sintomas da doença argentina, a inflação e o câmbio. Para entender, contudo, a doença, é preciso abrir o paciente. Ou seja, verificar a sua situação fiscal. É o que fazemos no gráfico 9, a seguir:

Note, em primeiro lugar, que não há estatísticas brasileiras dos resultados das contas públicas na base do FMI antes de 2001. Ocorre que, de fato, estatísticas fiscais do setor público brasileiro consolidado só começam a ser compiladas a partir de 2001. Antes disso, temos estatísticas do governo federal e banco central, em conjunto, a partir de 1991, e separadamente somente a partir de 1999. Temos também estatísticas dos governos subnacionais a partir de 1991, mas sem consolidação com o governo federal. Ou seja, antes de 2001, as contas públicas brasileiras eram bastante opacas, e sabemos que, para qualquer ação de saneamento, antes é necessário ter uma noção da situação real.

Vejamos a situação da Argentina. Durante os anos do Currency Board, a Argentina tinha uma situação fiscal relativamente equilibrada, com baixos superávits e déficits fiscais. Portanto, a saída atabalhoada da paridade cambial, em 2001, deve-se mais aos desequilíbrios externos do que à situação fiscal doméstica. A partir de 2003, assim como o Brasil, a Argentina produziu superávits primários bastante expressivos, aproveitando-se do crescimento econômico trazido pelo superciclo das commodities. O quadro começa a mudar a partir da GCF de 2008. A partir daí, a Argentina começa a produzir déficits fiscais em série e cada vez maiores. Note a diferença para o Brasil, que também tem problemas fiscais, mas somente a partir de 2014 e em escala muito menor. A Argentina não produz superávit primário simplesmente desde 2009, o que nos leva à conclusão de que os problemas atuais se devem não a desequilíbrios externos, mas ao desequilíbrio doméstico. Com o Banco Central argentino tendo que financiar esses gastos, não é à toa que a inflação saiu do controle.

Por que, afinal, o Brasil se diferenciou da Argentina

Até aqui, fizemos um diagnóstico da situação, mas não entramos na discussão sobre os motivos que levaram o Brasil a seguir uma trajetória diferente da Argentina. Como tudo em economia, não há respostas definitivas. Listo, a seguir, algumas hipóteses.

  1. Câmbio controlado: o Brasil teve um período relativamente curto de câmbio controlado, menos de 4 anos, entre 1995 e 1998, ao passo que a Argentina segurou o Currency Board por mais de 10 anos, entre 1991 e 2001. Além disso, o controle brasileiro era mais flexível, permitindo desvalorizações da moeda ao longo do tempo. Assim, a economia brasileira acumulou bem menos tensões do que a argentina nesse período. E o pior: com exceção do breve período do governo Macri, o câmbio argentino nunca deixou de ser controlado pelo governo, ao contrário do câmbio brasileiro, que flutua livremente desde 1999.
  2. Banco Central autônomo: o Banco Central brasileiro sempre contou com mais autonomia que seu homônimo argentino, mesmo antes da aprovação da sua independência formal, em 2021. O nosso Banco Central não pode financiar o governo, comprando dívida pública, em um processo que chamamos de “monetização da dívida”. Na Argentina, até hoje o BC dá uma mãozinha para o Tesouro, comprando títulos emitidos pelo governo. Além disso, o sistema de metas de inflação só funciona quando o mercado acredita que o BC é autônomo, o que não é o caso na Argentina.
  3. Problema fiscal: como vimos no gráfico 9, o problema fiscal argentino é bem maior que o brasileiro, por incrível que pareça. Além disso, dada a opacidade dos dados do governo argentino, não duvido que esses números não sejam ainda piores, escondidos em rubricas que escapam da contabilidade oficial. Aqui, por ruim que seja, temos uma regra que limita os gastos do governo (o novo “arcabouço fiscal”). Na Argentina, não existe algo semelhante.

Note como as três hipóteses acima formam o nosso “tripé macroeconômico” (câmbio flutuante, metas de inflação e superávits primários), a estrutura em torno do qual se mantém a nossa estabilidade macroeconômica.

Hoje os argentinos escolhem o político que vai pegar essa batata quente. Sergio Massa e Patrícia Bullrich são mais do mesmo do que foi feito nos últimos anos pelos peronistas e por Maurício Macri. Javier Milei, por outro lado, é um salto no escuro. Sua plataforma de enxugamento da máquina do Estado vai na direção correta, ainda que seja preciso entender qual será o real apoio político que terá para tirá-la do papel. Por outro lado, a ideia de dolarizar a economia e aposentar o Banco Central vai na mesma direção do Currency Board, que tantas distorções causou na economia argentina na década de 90 e teve um fim desastroso. Faria bem o candidato, se eleito, se dedicar a fazer o feijão com arroz bem feito, o que já é difícil, e deixar as pirotecnias de lado. O Plano Real, que colocou o Brasil nos eixos, não foi um show de pirotecnia, mas antes, foi a construção de todo um arcabouço fiscal e monetário que permitiu ter alguma estabilidade macroeconômica.

Que nossos hermanos possam tirar alguma lição dessa experiência. E que nossos governantes tenham a sabedoria de preservar o que deu certo.

A economia brasileira na era PT. Episódio 3: Faz de conta que acredito em suas boas intenções

Política monetária é aquela que se refere à administração da moeda no mercado doméstico, enquanto a política cambial trata da administração da moeda no mercado externo. A primeira procura manter a inflação controlada, enquanto a segunda procura manter o equilíbrio no balanço de pagamentos. Há vasos comunicantes entre as duas políticas, porque, afinal, trata-se sempre da mesma moeda.

O governo Lula herdou do governo FHC o tripé macroeconômico: metas de inflação, câmbio flutuante e superávits primários. As duas primeiras pernas desse tripé referem-se às políticas monetária e cambial, enquanto a terceira refere-se à política fiscal, abordada no episódio anterior.

As políticas monetária e cambial, por tratar-se do controle da moeda, são atribuição do Banco Central, enquanto a política fiscal é atribuição direta do governo. Nem sempre foi assim, mas essa independência operacional do BC ganhou força durante o governo FHC e, como veremos, foi respeitada durante a fase da Grande Ilusão, que coincidiu, em grande parte, com a liderança de Henrique Meirelles à frente do BC. A coisa começa a degringolar nos Anos da Húbris, com alguns sinais já no final do governo Lula, mas atingindo o apogeu da deterioração durante o governo Dilma e seu fiel escudeiro no BC, Alexandre Tombini.

A Política Monetária

Antes de começarmos, precisamos explicar brevemente como funciona o sistema de metas de inflação. Nesse sistema, a meta serve como uma âncora de longo prazo para os agentes econômicos. Na falta de qualquer outra informação, os agentes econômicos olham para o futuro e preveem que a inflação estará em torno da meta, se o Banco Central tiver credibilidade. Este “se” é de extrema importância. Se o Banco Central cria uma fama de “leniente” com a inflação, os agentes econômicos começam a duvidar que a meta será cumprida e, consequentemente, começam a prever uma inflação no futuro acima da meta. Isso tem importância no momento de precificar taxas de juros, por exemplo: os bancos procuram “prever” a inflação futura para estabelecer as taxas de juros do crédito. Além disso, outros agentes econômicos, como empresas e até pessoas físicas, começam a querer se proteger antecipadamente de uma inflação mais alta no futuro, o que leva a uma elevação da inflação já no presente. Por isso, nesse sistema, é de grande importância que o Banco Central tenha credibilidade, ou seja, que os agentes econômicos acreditem que a autoridade monetária irá perseguir a meta de inflação ao longo do tempo.

Para que o Banco Central cumpra a sua missão, é fundamental que reaja de maneira coerente às ameaças inflacionárias, aumentando ou diminuindo os juros quando necessário, e que se comunique de maneira coerente com o mercado de taxas de juros, de modo a coordenar as expectativas dos agentes econômicos. No sistema de metas de inflação, esse conjunto de atividades do Banco Central (determinação da taxa básica de juros e comunicação com o mercado) determina o seu sucesso ou fracasso em sua missão de controlar a inflação ao longo do tempo.

Nesse sentido, o governo Lula começou com o pé direito, indicando para o Banco Central um executivo com grande credibilidade junto ao mercado financeiro, o ex-presidente do Bank Boston, Henrique Meirelles. E Meirelles, consciente do seu desafio de construir credibilidade em um mar de desconfianças, começou seguindo a receita do governo FHC: juros altos para manter a inflação sob controle. Em várias ocasiões, o BC de Henrique Meirelles mostrou ser conservador, surpreendendo o mercado e enfurecendo o setor produtivo. Por exemplo, no COPOM de 18/junho/2003, depois de ter elevado a taxa Selic de 25% até 26,50% desde o início do ano, o BC decidiu cortar a taxa Selic em apenas 0,50%. A reação foi a seguinte:

No Copom seguinte, em 23/julho/2003, a Selic foi reduzida novamente, desta vez em 1,50%, mas a reação foi a mesma:

No Copom de 21/janeiro/2004, o BC surpreende novamente o mercado, que esperava novo corte de juros, decidindo pela sua manutenção:

Esta será uma constante em praticamente todo o mandato de Henrique Meirelles à frente do BC. Em 18/setembro/2005, o próprio Armínio Fraga, presidente do BC no 2º mandato de FHC e introdutor do sistema de metas de inflação no Brasil, reconheceu a austeridade do BC de Henrique Meirelles:

O resultado foi a redução da inflação para níveis compatíveis com a meta, conforme podemos observar no gráfico abaixo, que mostra a inflação (medida pelo IPCA, em azul), e a meta (em laranja). Observe como a inflação, depois de uma grande volatilidade no início do governo Lula (muito em função da desvalorização cambial causada pelo próprio receio do mercado com relação à sua eleição), convergiu para a meta, principalmente a partir de 2006.

No entanto, estávamos no fim da fase da Grande Ilusão também na política monetária. No final de seu mandato, até Meirelles se rendeu à lógica eleitoral, e interrompeu um ciclo de alta de juros que havia sido iniciado em abril de 2010. Após apenas 3 altas, o BC deu por encerrado o ciclo, mesmo com as expectativas de inflação ainda subindo, em meio a uma forte recuperação da atividade econômica naquele ano.

Os analistas estavam corretos. No primeiro Copom do governo Dilma, o novo presidente do BC, Alexandre Tombini, precisou retomar a alta dos juros. Foi a primeira vez, desde o início do sistema de metas de inflação, que um ciclo de alta precisou ser retomado após uma breve pausa. A segunda vez seria em 2014, quando o ciclo de alta foi interrompido em abril para ser retomado na semana seguinte do 2º turno das eleições. O fato de ser também um ano eleitoral não é mera coincidência.

O BC, então, recomeça o processo de elevação dos juros. No entanto, na reunião de agosto de 2011, Tombini começa a virada que marcará, daí em diante, a sua atuação frente ao Banco Central. Surpreendendo o mercado, e sem respaldo nas expectativas de inflação, que continuavam a subir, o BC decide dar um cavalo-de-pau e reduzir as taxas de juros:

Esta foi a primeira (e, até o momento, única) vez em que o BC iniciava um ciclo de queda de juros sem que o ciclo de alta anterior tivesse tempo para fazer o seu efeito. A justificativa foi uma virada no cenário externo (na época, a situação na Europa estava realmente se deteriorando), que provocaria uma recessão global e afetaria negativamente o crescimento brasileiro e, por tabela, reduziria a inflação. Além disso, apostava-se na “austeridade” do governo Dilma. Sem dúvida, uma aposta e tanto!

De fato, a inflação saiu de 7,23% no mês de agosto de 2011, até atingir 4,92% em junho de 2012, respondendo ao aperto monetário feito até junho de 2011. Em outubro de 2012, quando a taxa Selic atingiu a mínima histórica de 7,25%, a inflação já havia subido para 5,45%, e estava em processo firme de alta. Lembrando sempre que a meta era de 4,50%. Foi então que começou a se cristalizar no mercado a convicção de que o Banco Central estava, na realidade, trabalhando com uma espécie de “meta paralela” de inflação. A meta oficial era de 4,50%, mas o mercado começou a desconfiar que o BC estava perseguindo algo entre 5,50% e 6,50%, que era o topo da meta. A exemplo de outras áreas do governo Dilma, o BC estaria “jogando com as regras debaixo do braço”, trabalhando no limite de seu mandato e não para atingir a meta oficial.

Essa desconfiança tinha a sua razão de ser. Vejamos o gráfico a seguir:

Observe como, durante os 4 anos do primeiro mandato de Dilma Rousseff (quadro pontilhado vermelho), a inflação nunca ficou abaixo da meta de 4,5%, mas ficou sempre orbitando em torno de 5,5%, o que, com o tempo, foi minando a confiança do mercado.

Mas essa falta de credibilidade do BC foi um trabalho a quatro mãos. Não somente a postura ambígua do BC começou a chamar a atenção do mercado, mas o próprio discurso intervencionista do governo contribuiu para aumentar a desconfiança. A esse respeito, é precisa a descrição da jornalista Claudia Safatle, do Valor Econômico, ao comentar a decisão do Copom de 06/03/2013, em que a diretoria do BC sinaliza que deverá iniciar um ciclo de alta dos juros na reunião seguinte, apenas 6 meses após ter encerrado o ciclo de baixa anterior:

O resultado, como vimos, foi uma inflação constantemente mais alta do que a meta ao longo do tempo, com um estouro da boiada em 2015, pós-eleição, quando os preços administrados foram liberados. Aliás, controle de preços de combustíveis e energia elétrica faziam parte da “maquiagem” da inflação. Era como usar a Petrobras e a Eletrobras para fazer política monetária. Com o fim dessa política, a inflação rapidamente chegou a 10% no final de 2015.

Alguns poderão dizer que estamos novamente com uma inflação de dois dígitos, então este BC é tão leniente quanto o da época do PT. No entanto, é preciso contextualizar e, para isso, ser-nos-á útil comparar a inflação brasileira com a inflação global. É o que fazemos no próximo gráfico:

Note como, a partir de 2011, primeiro de maneira lenta, e depois mais rapidamente, a inflação brasileira vai se descolando da inflação global, até atingir uma diferença de quase 8 pontos percentuais em 2015 (barras verdes). Agora em 2021, com o mesmo nível de inflação de 2015, a diferença para a inflação global é menor que 4 pontos percentuais. Ou seja, hoje, a inflação brasileira tem um componente global muito maior do que em 2015, quando a inflação foi essencialmente fruto da barbeiragem local.

Para finalizar, uma palavra sobre a postura intervencionista do governo Dilma nas taxas de juros, que, de resto, foi a sua marca registrada em praticamente todas as áreas da economia. O ponto alto, sem dúvida, foi o discurso da presidente por ocasião do Dia do Trabalho de 2012:

O governo Dilma já vinha usando o Banco do Brasil e a Caixa Econômica para “reduzir” as taxas de juros, mais ou menos a mesma coisa que vinha fazendo com a Petrobras para “reduzir” os preços dos combustíveis e como faria, no final deste mesmo ano, com a Eletrobras para “reduzir” os preços da energia elétrica. Ficou até famosa a campanha publicitária do Banco do Brasil, “Bom Pra Todos”, em que anunciava os juros mais baixos:

O problema, como sempre, foi a realidade. O gráfico a seguir mostra os spreads de crédito do sistema financeiro, já contando com Banco do Brasil e Caixa, para pessoas físicas e jurídicas:

Em maio de 2012, quando Dilma fez o seu incendiário discurso demonizando os bancos, o spread de crédito (quanto os bancos cobram acima da taxa básica de juros) para as pessoas físicas e jurídicas era de 26,0% e 9,6% respectivamente. A partir de então, os spreads até recuaram um pouco, mas em abril de 2016, quatro anos depois e no mês de seu impeachment, esses mesmos spreads estavam em 36,2% e 9,6% respectivamente. Ou seja, os spreads para a pessoa física haviam aumentado em 10 pontos percentuais, enquanto para a pessoa jurídica estavam no mesmo lugar, não haviam recuado.

Em maio de 2012, quando Dilma fez o seu incendiário discurso demonizando os bancos, o spread de crédito (quanto os bancos cobram acima da taxa básica de juros) para as pessoas físicas e jurídicas era de 26,0% e 9,6% respectivamente. A partir de então, os spreads até recuaram um pouco, mas em abril de 2016, quatro anos depois e no mês de seu impeachment, esses mesmos spreads estavam em 36,2% e 9,6% respectivamente. Ou seja, os spreads para a pessoa física haviam aumentado em 10 pontos percentuais, enquanto para a pessoa jurídica estavam no mesmo lugar, não haviam recuado.

Aprendemos (aprendemos?) que não são discursos contundentes ou o uso de bancos estatais que resolvem o problema dos juros altos. Aliás, este tipo de intervencionismo normalmente tem o efeito justo inverso: aumenta o risco percebido pelo sistema, que coloca prêmios de risco maiores nas taxas de juros para se protegerem de eventuais intervenções ou mudanças de regras de jogo no futuro.

A Política Cambial

Lula iniciou seu governo em uma situação realmente delicada, em parte criada pela própria expectativa de sua eleição, o que piorou algo que já não era bom. No gráfico abaixo, podemos observar o valor do dólar, ajustado pelo diferencial de inflação entre Brasil e EUA. Ou seja, o nível real do dólar, já descontado o efeito da inflação, o que nos dá o real poder de compra da moeda brasileira em relação ao dólar ao longo do tempo.

Observemos que Lula iniciou seu governo com o dólar próximo de R$ 7,00 a valores de hoje. Logo nos primeiros meses de seu governo, a moeda voltou para o nível de R$ 5,50, mesmo nível da segunda metade do governo FHC e, a partir de meados de 2004, engatou um processo de valorização que iria se reverter apenas brevemente durante a crise financeira de 2008 e encerrar-se em meados de 2011, com o dólar batendo R$ 2,50 em dinheiro de hoje.

Mas este foi um período de grande desvalorização do dólar globalmente. No gráfico a seguir, podemos verificar que o Real não se valorizou sozinho. Escolhemos o período que se inicia em 30/04/2003 para expurgar o overshooting pré-eleição, até o ponto de mínimo, em 31/07/2011.

Observemos que o Real foi a moeda que mais se valorizou, mas não foi a única. De modo que uma parte desta valorização foi, de fato, mérito do governo Lula, mas outra parte foi devido a um movimento global que favoreceu as moedas de países exportadores de commodities e até moedas de países mais desenvolvidos, como Franco Suíço e Iene.

Esta grande valorização do real foi firmemente combatida pelo ministro Guido Mantega, que até cunhou uma expressão para se referir a este movimento: “guerra cambial”. O jornal britânico Financial Times, nesta reportagem, foi o primeiro a chamar a atenção para este termo:

Segundo o ministro brasileiro, após a crise financeira de 2008, os países desenvolvidos, liderados pelos EUA, estariam depreciando propositalmente as suas moedas, através de estímulos monetários gigantescos. Estes estímulos monetários (que significam taxas de juros menores), acabaram, segundo Mantega, por afastar investidores destes países, que passaram a procurar rendimentos maiores em países como o Brasil, que precisam praticar taxas de juros maiores para controlar a inflação. Mantega, no melhor estilo desenvolvimentista, passou a demonizar o real apreciado, colocando nele a culpa da nossa “falta de competitividade”.

Veremos que Mantega tinha razão no diagnóstico, ainda que sua narrativa de um complô dos países desenvolvidos careça de racionalidade. De fato, como veremos mais adiante quando abordarmos a formação das reservas internacionais, uma boa parte do fluxo de dólares foi de investimentos financeiros. O problema é que os países desenvolvidos estavam procurando combater uma grande recessão, e o único instrumento monetário disponível era trazer a taxa de juros para zero. A depreciação de suas moedas é apenas um efeito colateral, não o seu objetivo maior. Mas, a narrativa desenvolvimentista sempre envolve manipulação do câmbio, e com Mantega não é diferente.

É irônico que a expressão “Guerra Cambial” tenha ganhado destaque apenas dois dias antes da megacapitalização da Petrobrás, que atraiu nada menos que R$ 21 bilhões de investidores estrangeiros.

Ou seja, ao mesmo tempo que o governo, com uma mão, amaldiçoa o fluxo de recursos do exterior, com a outra procura avidamente estes mesmos recursos para financiar as suas atividades. É um pouco como, por um lado, demonizar os credores da dívida pública, e por outro, fazer déficits que aumentam essa mesma dívida. Mas, sigamos.

Será que Mantega tinha razão? Será que fomos vítimas de uma armação dos EUA para minar a competitividade da nossa indústria via câmbio?

Bem, se você perguntar para qualquer desenvolvimentista, o câmbio sempre estará pelo menos 20% mais apreciado do que deveria estar para “impulsionar” a indústria, qualquer que seja o nível da moeda. E se, por obra e graça da providência, o câmbio estiver no “lugar certo”, faltará a garantia de que ficará ali para sempre, o que, em um regime de câmbio flutuante, é obviamente impossível de se garantir. O câmbio é o preço de nossa moeda, e qualquer tentativa de se controlar preços é inócua, e pode até ser perigosa. Em nossa história econômica já vivemos muitas crises de balanço de pagamentos, justamente porque o câmbio foi “tabelado”, o que sempre acaba por redundar em escassez de moeda forte. O câmbio flutuante é uma benção, e desde a sua adoção, em 1999, não sabemos mais o que é crise de balanço de pagamentos. Ao contrário, por exemplo, de nossos vizinhos ao sul.

A reação do governo Lula foi a de tentar conter o fluxo de capital estrangeiro através de taxação e outras medidas que puniam o ingresso de recursos. A estreia dessa estratégia ocorreu em 20/10/2009, quando o governo estabeleceu uma alíquota de IOF de 2% sobre o investimento estrangeiro em renda fixa e bolsa.

Essa foi apenas a primeira de uma série de medidas que se sucederiam alucinadamente nos 4 anos seguintes, como podemos observar no gráfico a seguir (em vermelho temos as intervenções para fazer o dólar subir, enquanto em verde são as intervenções para fazer o dólar cair):

Estas intervenções são tão deletérias para o bom funcionamento do mercado cambial, que uma das principais exigências para a adesão à OCDE é justamente a eliminação de cobrança do IOF em operações neste mercado. O governo do PT, em linha com sua visão de mundo, usou e abusou desses instrumentos, com resultados pífios do ponto de vista da cotação da moeda que, como vimos, segue leis macroeconômicas próprias. É um pouco como a criança que pretende segurar as ondas do mar com suas mãozinhas.

Para terminar este episódio, vamos entender de onde vieram as reservas internacionais acumuladas durante o governo do PT, uma das grandes conquistas alardeadas pelo partido.

A construção das reservas internacionais

O acúmulo de reservas internacionais é um dos grandes legados do governo Lula. Este fato é cantado em verso e prosa toda vez que se acusa o governo do PT de ter sido um mal para a economia brasileira. De fato, trata-se de um seguro que nos dá o conforto de afastarmos a ameaça de uma crise de balanço de pagamentos, tão comum ao longo da história econômica brasileira. A falta de dólares sempre foi um fator de desestabilização. A manutenção de um sistema de câmbio quase fixo durante o primeiro mandato de FHC quase nos quebrou, exaurindo as poucas reservas que tínhamos. Tivemos que fazer um acordo com o FMI, acordo este que foi encerrado durante o primeiro governo Lula, fato que o ex-metalúrgico faz questão de lembrar com justificável orgulho.

No gráfico a seguir, podemos observar a evolução de nossas reservas (a parte hachurada cobre todo o período dos governos do PT):

Observe como as reservas começam a decolar em 2006 e principalmente em 2007, fazem uma pausa em 2008 e atingem o nível atual em 2012, já no governo Dilma. Portanto, o grosso das reservas atuais são construídas em 5 anos, entre 2007 e 2011, em grande parte na fase que chamo de Anos da Húbris.

Vamos entrar no detalhe de como essas reservas foram construídas. Para tanto, precisamos entender como os dólares são obtidos pelo governo brasileiro.

Como imprimimos reais e não dólares, é preciso que estrangeiros estejam dispostos a comprar os nossos reais com os seus dólares. Isso acontece, basicamente, através de dois canais: receitas correntes e investimentos financeiros.

As receitas correntes de um país (chamada de “conta corrente”) são formadas por três componentes: 1) a balança comercial (o comércio de mercadorias com outros países), 2) a balança de serviços (os serviços que consumimos e fornecemos para outros países) e 3) o pagamento de juros e dividendos.

Já o investimento financeiro é constituído de dois componentes: 1) o Investimento Estrangeiro Direto (chamaremos de IED daqui em diante) e 2) os investimentos em títulos (ações e renda fixa). Em primeiro lugar, vamos ver de onde vieram as reservas observando o comportamento da conta corrente e dos investimentos financeiros no gráfico a seguir:

Observe como os anos de 2007 a 2014 são caracterizados por um grande fluxo de investimentos financeiros (barras laranjas). O fluxo foi tão grande que mais que compensou o déficit em conta corrente até 2012 (barras azuis), fazendo com que sobrasse recursos. Esses recursos (bolinhas brancas) são as reservas. Portanto, o que permitiu construir as reservas foi o fluxo financeiro para o país, principalmente a partir de 2009.

Antes de continuarmos, vamos explorar esta distinção entre conta corrente e investimento financeiro. É importante entender essa diferença, porque nos diz sobre a permanência desses recursos no Brasil. No caso da conta corrente, o dinheiro que entra é nosso. Como foi fruto do comércio, vendemos mercadorias e o dinheiro passa a ser nosso, não precisamos devolvê-lo no futuro. Já o fluxo financeiro não é nosso. Trata-se de um dinheiro “emprestado”. No caso do IED, trata-se de um empréstimo de longo prazo, que será cobrado na forma de juros e dividendos ao longo dos anos, quando não pela venda do empreendimento e repatriação do dinheiro. Veremos adiante que a conta dos juros e dividendos não é pequena. Já o investimento em títulos (ações e renda fixa) pode ser resgatado a qualquer momento. Por isso, é preciso ter muito cuidado ao dizer que podemos usar as reservas para isso ou para aquilo. Na verdade, as reservas são nossas somente se a conta corrente é positiva. Como a nossa conta corrente é negativa, usamos uma parte do fluxo financeiro para pagar esses gastos. Portanto, estamos na verdade em débito. Se, de uma hora para outra, todos os investimentos estrangeiros resolvessem sair do país, não teríamos dólares para pagar a todos, pois usamos uma parte do dinheiro que entrou para pagar o nosso déficit em conta corrente. Por isso, é bom tratar bem os investidores estrangeiros. Vejamos, no gráfico abaixo, o detalhamento desse fluxo financeiro:

Podemos observar que grande parte desses recursos foram Investimentos Estrangeiros Diretos (barras laranjas), ou seja, recursos, em tese, de mais longo prazo para investimentos no país. Digo em tese, porque uma parcela desses recursos entrou como empréstimos intercompanhias, o que poderia ser interpretado como um simples fluxo financeiro. Também tivemos um grande fluxo para a compra de ações (barras amarelas), principalmente em 2007, 2009 e 2010, ano da megacapitalização da Petrobrás.

Por outro lado, a conta corrente brasileira foi negativa em grande parte desse período. Vejamos no gráfico a seguir:

Observe como a conta corrente torna-se positiva somente durante um breve período (de 2003 a 2006), passando a ficar novamente negativa a partir de 2008. O aumento do saldo da balança comercial (barra laranja) é o grande responsável pelo equilíbrio da conta corrente até 2007. A partir de 2010, a conta corrente torna-se bem mais negativa, principalmente porque a balança de serviços (“pobre viajando de avião”) e o pagamento de juros e dividendos começam a cobrar o seu preço. Em outras palavras, o crescimento da renda da população, que começa a demandar serviços do exterior, e o pagamento dos investimentos estrangeiros feitos no passado fazem com que a conta corrente torne-se bastante negativa. No entanto, ainda teríamos um bom fluxo de investimentos estrangeiros para cobrir essa conta, e as reservas permaneceram intactas.

Há, neste ponto, portanto, um grande equívoco, ao relacionar a ascensão da China como potência global, puxando o consumo de commodities, e a constituição das reservas. Sim, há um aumento do saldo positivo da balança comercial neste período. Mas vimos que o grande responsável pela constituição das reservas foi o fluxo financeiro (mais especificamente, o Investimento Estrangeiro Direto). Além disso, como podemos ver no gráfico abaixo, a China vai ganhar importância na balança comercial muitos anos depois da constituição das reservas.

Note que a participação das exportações para a China, de fato, sobe de praticamente zero até o ano 2000, para 5% em 2003, ficando neste patamar até 2007. Ou seja, neste período em que as exportações se elevam, a única região que ganha importância relativa é o Mercosul, que havia perdido muito nos anos anteriores. Na realidade, de maneira geral, as participações das diversas regiões se mantêm mais ou menos constantes durante todo esse período. A China vai ganhar relevância somente a partir do ano de 2009. Mas, como vimos, o saldo da balança comercial está longe de ser brilhante neste período.

Pode-se argumentar que, enquanto é verdade que a China cresce de maneira relevante como parceiro comercial somente após 2009, não é menos verdade que as nossas exportações alcançaram um novo patamar após a ascensão do PT ao poder. Este novo patamar pode ser visto no gráfico abaixo, que divide a balança comercial entre exportações e importações:

De fato, as exportações crescem de algo como US$ 50 bilhões até 2002 para quase US$ 200 bilhões em 2008, atingindo US$ 250 bilhões a partir de 2011. Esse salto permitiu aumentar igualmente as importações, o que significa uma maior abertura da economia brasileira ao mundo, o que costuma ser benéfico para o aumento da renda e da produtividade. É o que chamamos de corrente de comércio, a soma das exportações e importações.

Mas vamos analisar em detalhe a corrente de comércio brasileira no gráfico a seguir:

Quando medimos a corrente de comércio em percentual do PIB, como é a norma para a comparação da abertura comercial entre países, podemos observar que a nossa corrente de comércio cresce de 13% para 21% do PIB ainda no segundo mandato de FHC, e fica oscilando entre este patamar e 24% do PIB até a Grande Crise Financeira, quando cai para baixo de 20% do PIB, oscilando entre 17% e 20% do PIB até o fim do governo PT. Não há realmente nada de excepcional aqui. O aumento da corrente de comércio em dólar reflete o aumento do PIB em dólar, tanto pela valorização do real como pelo próprio crescimento do país neste período.

Portanto, não devemos buscar na soja ou no minério de ferro a explicação do grande montante de reservas internacionais acumulados nesse período. A reservas foram constituídas porque o governo Lula se mostrou confiável durante os anos da Grande Ilusão, a ponto de atrair investimentos estrangeiros, então abundantes no mundo. Tratava-se de um governo de esquerda com políticas macroeconômicas razoáveis, fazendo uma combinação irresistível para este investidor. Realmente uma pena que tenha sido somente uma Grande Ilusão.


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

Mistérios

Ciro defende um “câmbio competitivo” para ajudar na “reindustrialização” do país.

Ao mesmo tempo, Ciro defende a ideia de vender US$ 200 bilhões das reservas para pagar a dívida.

Como Ciro pretende internalizar US$ 200 bilhões e, ao mesmo tempo, desvalorizar a moeda, é desses mistérios que somente um gênio da raça como o Coronel domina.