30 anos. E os novos velhos problemas

Ontem, como parte da pesquisa para escrever meu próximo livro, assisti a um Roda Viva de dezembro de 1993, com o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. Além de ser engraçado ver jornalistas como Miriam Leitão, Carlos Alberto Sardemberg e Celo Ming 30 anos mais jovens, foram vários os aspectos interessantes do programa, alguns servindo como parâmetro para os desafios que temos hoje. Vejamos.

– É curioso ver como aqueles jornalistas experimentados não conseguiam entender a lógica da URV, unidade de conta que entraria em vigor 3 meses depois. Enquanto os jornalistas tentavam entender como seria o “dia D” da entrada do novo padrão monetário, FHC tentava explicar que não haveria “dia D”. Ao contrário dos planos econômicos anteriores, o governo não determinaria nada, a não ser o valor do salário mínimo em URV. O resto seria livremente pactuado entre os agentes econômicos, o que era uma novidade de difícil entendimento, por fugir completamente à lógica de um Estado interventor na atividade econômica.

– Também é curioso notar como todas as cifras eram denominadas em dólares. Era a confissão implícita do fracasso monetário brasileiro. Quando até o próprio ministro da Fazenda expressa os números do orçamento nacional em uma moeda estrangeira, é que a moeda virou uma peça de ficção. Isso é inimaginável hoje em dia, e uma grande prova de quanto evoluímos neste aspecto.

– O plano Real tinha três etapas, sendo que a primeira era alcançar um “equilíbrio fiscal” das contas públicas. FHC afirmava que, sem essa primeira etapa, a introdução da URV e, depois, do próprio Real, seriam inviáveis. Para tanto, havia um pacote de ajuste a ser aprovado no Congresso, no valor de US$ 22 bilhões. Segundo dados do FMI, o PIB brasileiro, no final de 1993, era de US$ 430 bilhões. Ou seja, o déficit estimado era de aproximadamente 5% do PIB! Hoje, estamos tentando zerar um déficit que, este ano, deve ser algo em torno de 2% do PIB. A tarefa parecia bem mais complexa do que é hoje. Mas, não é bem assim por três motivos: acurácia dos números, carga tributária e flexibilidade do orçamento. É o que veremos nos três itens a seguir.

– Um dos jornalistas lembrou que o ex-ministro Dilson Funaro esteve ali, no mesmo programa, afirmando que havia sido enganado quando lhe afirmaram que o déficit havia sido zerado. Na verdade, Funaro não havia sido enganado. É que ninguém sabia mesmo qual era o déficit naquela barafunda das contas públicas brasileiras, em que a inflação e ralos dos mais diversos tipos e tamanhos contribuíam para a zona. Talvez a coisa tivesse melhorado um pouco nos anos seguintes, mas é duvidoso afirmar que havia uma compreensão completa do orçamento como temos hoje. Então, provavelmente, FHC deve ter colocado um coeficiente de segurança nos números. Tanto que, em determinado momento do programa, Celso Ming questiona o montante com base em algumas premissas, e FHC sai pela tangente.

– Perguntas dos telespectadores (por fax!) chegavam, e a maioria versava sobre o aumento de impostos do pacote. Nesse momento, FHC afirma que o brasileiro não quer pagar imposto para manter os serviços públicos que reivindica, e que a carga tributária no Brasil era baixa: 18% do PIB no nível federal, 4% do PIB nos níveis sub-nacionais. Como sabemos, o ajuste fiscal brasileiro, desde então, foi feito por aí: a carga tributária saiu de 22% para os atuais 34% do PIB. E, mesmo assim, ainda rodamos com déficit. O que demonstra que as necessidades do Estado brasileiro sempre aumentarão e ultrapassarão a capacidade do mesmo Estado de arrecadar impostos. Hoje, a saída adotada por FHC de aumentar a carga tributária parece ser mais difícil, mas não impossível.

– FHC citou dois grandes números importantes em sua entrevista: 20% das despesas do governo eram com pessoal e 20% eram com aposentadorias. O governo ainda gastava 40% do seu orçamento com outros itens obrigatórios e tinha somente 20% de espaço para gastos discricionários. Segundo FHC, esses 20% eram muito pouco espaço para o governo fazer suas políticas, de modo que o pacote fiscal incluía algum nível de desvinculação de receitas. Pois bem: esses números hoje são os seguintes: os mesmos 20% para os funcionários públicos, 45% para aposentadorias, 30% para outros gastos obrigatórios e 5% para gastos não obrigatórios. Não por outro motivo, a primeira coisa que fez o governo Lula foi aprovar um pacote de gastos adicionais de R$ 200 bi, pois aqueles 5% não dão para nada. Hoje, o orçamento público é absolutamente engessado, e a questão das aposentadorias vai somente piorar ao longo do tempo, comendo uma parte cada vez mais relevante dos impostos pagos. A situação, hoje, é muitas vezes pior do que na época de FHC.

O Plano Real foi apenas o início, não o fim, do processo de estabilização. Várias iniciativas foram realizadas para recolocar as contas públicas nos eixos, desde o fechamento dos bancos estaduais, passando pelas grandes privatizações até a LRF e o estabelecimento de um comitê de política monetária independente. Voltamos para trás na disciplina dos entes sub-nacionais e não avançamos em outros pontos, como o equacionamento da previdência (a reforma foi muito pouco, muito tarde). A inflação, que servia para fechar as contas que não fechavam, parece domada. Mas, se não pactuarmos uma forma de financiar o orçamento, é questão de tempo para que volte. Primeiro, devagar. Depois, de repente.

O verniz do liberalismo

My Fair Lady foi um fenômeno em seu tempo: levou 8 estatuetas em 1965, incluindo a de Melhor Filme. Conta a história de um professor de linguística que aposta com um amigo que conseguiria disfarçar a origem de qualquer pessoa através de treino de fala. Para tanto, pegam uma vendedora de flores que trabalha nas ruas de Londres, uma mulher do povo, para fazer a experiência. Se, em 6 meses, ela pudesse frequentar uma festa da alta sociedade londrina sem ser desmascarada, o professor ganharia a aposta.

Guedes fez a mesma coisa com Bolsonaro. Ou melhor, neste caso, foi Bolsonaro que contratou Guedes para lhe dar um banho de loja, não de domínio formal da língua, mas de liberalismo. O desafio era fazer Bolsonaro desfilar pelo cenário brasileiro sem acusar sua origem corporativista e estatista.

Em um Roda Viva em julho de 2018, o então candidato Bolsonaro foi questionado com a típica pergunta sobre o legado que gostaria de deixar com o seu governo (o vídeo está disponível no YouTube, a pergunta é logo a primeira). Bolsonaro viaja na resposta, aborda todos os pontos de seu programa, o que leva o jornalista a repetir a pergunta: “mas e se tivesse que escolher um único legado, qual seria”. Bolsonaro responde sem titubear: “que a nossa economia passasse a ser liberal, esse é o nosso sonho”.

Estava feita a transformação, o professor Higgins tupiniquim aparentemente havia ganho a aposta.

Mas descobriu-se, com o tempo, que Bolsonaro havia passado apenas no teste do primeiro baile, o do discurso. Nos bailes seguintes, que exigiam ações concretas, o discípulo falhou miseravelmente.

O tempo encarregou-se de mostrar que a linguagem não muda a pessoa. Assim como o professor Higgins mudou a forma de falar de sua discípula mas não a pessoa que ela era, Guedes conseguiu envernizar Bolsonaro, mas não mudar profundamente as suas convicções.

Bolsonaro no Roda Viva

Minha avaliação do Bolsonaro, ontem, no Roda Viva.

1) Suas limitações ficaram evidentes. A primeira pergunta do programa, que é a mesma para todos os candidatos (qual a marca que gostaria de deixar para a posteridade) já era conhecida, e mesmo assim recebeu como resposta um programa de governo inteiro, obviamente ensaiado, mas que não respondia à questão. Ao insistir na pergunta, o jornalista recebeu como reposta um dos itens daquele programa (um Brasil mais liberal), que pareceu meio aleatório e está longe de ser uma marca memorável. A falta de preparo ficou evidente em outras ocasiões, quando as perguntas eram mais específicas. No fim, não conseguiu citar sequer um brasileiro que o inspira. Podia ter sacado um, sei lá, Duque de Caxias, mas nem isso. Ficou fazendo searching ao vivo.

2) Por outro lado, transpirou autenticidade. Colocou-se firmemente à direita do espectro político, sem preocupação em “ganhar votos” de quem ele sabe que nunca os terá. Usou e abusou do politicamente incorreto, como quando atacou as cotas. Foram os momentos mais divertidos do programa. Sua reposta a José Gregori foi o equivalente semântico à resposta que deu a Maria do Rosário: não te mataria porque você não merece (ele não disse isso, mas foi esse o sentido). Essa característica “bocuda” do candidato é o que dá o sal e o distingue do chuchu Alckmin.

3) Para os que ainda têm dúvidas sobre as suas “convicções liberais”, o candidato me pareceu convincente. Chegou ao ponto de criticar Geisel pela criação de estatais, ainda que contextualizando. O casamento com Paulo Guedes parece firme, e seus “senões” ao programa puro liberal vem mais do perfil médio do brasileiro, que gosta de um Estado grande, e que acaba se refletindo no perfil do Congresso, criando dificuldades para a aprovação de medidas liberais. Isso é só realismo, não é anti-liberalismo, e o Bolsonaro me pareceu realista neste ponto, não anti-liberal. Com o que ele falou ontem, acho que passa no “Teste da Faria Lima”.

4) A bancada do programa foi um espetáculo à parte. Gastaram o primeiro bloco inteiro falando do golpe e da ditadura militar, com a honrosa exceção da jornalista da Veja. E o assunto ainda retornou algumas vezes com outras roupagens. Quando é que esse pessoal vai entender que ele não vai perder votos porque apoia os militares, mas sim porque eventualmente não se mostrará preparado para enfrentar os problemas do Brasil? Essa pauta do golpe parece um disco riscado, que interessa a meia dúzia de intelectuais e jornalistas. E ainda deu palanque para que o candidato mostrasse a sua performance em campo conhecido e confortável.

Conclusão: quem acha que a mera exposição do Bolsonaro o fará desidratar, acho melhor colocar as barbas de molho. Ontem, durante uma hora e meia, foi exposto a uma bancada francamente hostil, e não acho que tenha perdido votos. Lembrando que Bolsonaro, hoje, é o único candidato que pode se dar ao luxo de não precisar de votos adicionais para ir ao 2o turno, basta não perder os que já tem.

A única forma de tirar votos do capitão, em minha modesta opinião, é explorar sua fraqueza, que é a falta de preparo e experiência. Insistir nas pautas da esquerda só vai fortalecer a sua candidatura, pois foi aí que ela se construiu.

Decepção

Doria no Roda Viva.

De maneira geral, muito bom, escapou bem das cascas de banana.

O único senão foi a resposta com relação ao Uber. “Precisa ter igualdade de condições com os táxis”. Ou seja, vai se tornar um serviço mais caro. Decepção.