Meritocracia

Ontem repercuti um post de Felipe Neto, em que o youtuber “prova” que a meritocracia é uma ilusão. Seu argumento? O pai de Elon Musk era um rico dono de jazidas de diamantes na África do Sul. Além disso, o dono da Tesla havia estudado nos melhores colégios canadenses. Portanto, não haveria mérito algum em ter se tornado bilionário. Afinal, suas condições iniciais foram muito melhores do que podem sonhar a imensa maioria dos mortais do planeta.

A mesma polêmica se deu com um post de Rodrigo Silva, responsável pelo site Spotnicks, em que uma casa pobre em um bairro suburbano é apresentada como o primeiro endereço do Nubank. Foram muitas as reações negativas, lembrando que os fundadores do banco mais valioso da América Latina vieram de famílias ricas e estudaram nas melhores universidades, tanto aqui quanto lá fora.

De fato, se observarmos a vida dos fundadores dessas empresas bilionárias, vamos provavelmente descobrir pessoas que nasceram em famílias em boas condições financeiras. Restaria provado, portanto, que o mérito pessoal não conta para nada, essas pessoas estariam fadadas ao sucesso fazendo o que quer que fosse.

Esse raciocínio é, obviamente, uma falácia. Se Elon Musk eventualmente pode ter contado com a fortuna do pai para dar um bom pontapé inicial em sua própria fortuna, o mesmo não se pode dizer de Bill Gates, Mark Zuckerberg, Steve Jobs ou Warren Buffet, vindos de famílias da classe média alta americana.

E mesmo no caso de Musk, o raciocínio inverso também prova a falácia: quantos filhos de milionários criam tantas empresas disruptivas quanto PayPal, Tesla e SpaceX? Quantos nascidos em berço esplêndido se tornam o homem mais rico do mundo? Na verdade, normalmente ocorre o inverso. É conhecido o ditado “pai rico, filho nobre, neto pobre”. O empreendedor de sucesso deixa como herança a sua fortuna mas não o seu talento (outra palavra proibida, a exemplo de mérito). Tente encontrar na lista dos mais ricos da Forbes a quantidade de herdeiros de terceira geração em diante. Onde estão os herdeiros de Rockefeller, o homem mais rico de seu tempo? Por que suas condições iniciais privilegiadas não serviram para os guindar às primeiras posições no ranking, normalmente ocupadas por “forasteiros”?

Um outro exemplo que alguns levantaram foi o do campeão da F1 Max Verstappen. O mérito do holandês seria limitado, se é que existiria, porque seu pai também foi um piloto de F1, o que o teria colocado em uma posição privilegiada desde o berço. Sim, se compararmos Max comigo, que só vi um carro de F1 pela TV. Não, se considerarmos que outros descendentes de campeões da F1, em condições iniciais semelhantes às de Max, como Nelsinho Piquet e Christian Fitippaldi, terem sido pilotos medíocres. Somente ter um pai piloto de F1 explica o sucesso de Verstappen? E o que dizer de Lewis Hamilton, cujo pai dirigiu, no máximo, o carro da família?

Essa discussão sobre mérito e meritocracia está distorcida porque se compara todos os seres humanos entre si. Então, é claro que um Elon Musk, nascido em berço esplêndido, tinha muito mais chance de se tornar bilionário do que um favelado brasileiro. Isso é o óbvio ululante. A meritocracia bem entendida não abdica de considerar as condições iniciais. O “sucesso” de um ser humano é a resultante das condições iniciais mais o mérito pessoal.

O gráfico abaixo ilustra esse ponto, ao relacionar fortuna com condições iniciais.

Se o mérito pessoal não contasse para nada, todos os seres humanos se encontrariam na reta. Ou seja, as condições iniciais responderiam por 100% do sucesso do indivíduo. Mas os exemplos acima, assim como muitos outros em todas as faixas de renda, mostram que não é bem assim: pessoas com aproximadamente as mesmas condições iniciais atingem graus de sucesso completamente diferentes. Um certo retirante que virou presidente da república ilustra a tese.

Os mais céticos dirão que as condições iniciais não se limitam ao berço. Nascemos diferentes e não escolhemos os talentos e os defeitos com que nascemos. Então, Musk ou Zuckerberg nasceram com um talento especial para negócios, não tendo mérito nenhum nisso. Essa tese nos leva longe, pois nega o papel da liberdade humana. Seríamos robôs programados para o sucesso ou o fracasso e o mérito pessoal, aí sim, seria uma ilusão. Bem, para aqueles que acreditam que o mundo é aleatório assim, não tenho muito a dizer, a não ser boa sorte.

A meritocracia não exclui, de maneira alguma, uma discussão séria sobre nivelamento de condições iniciais. Quantos talentos não se perdem porque estão sob os escombros de uma vida muito difícil no nascimento? Muitos dos ataques ao conceito de meritocracia têm essa preocupação de fundo, o que é legítimo. No entanto, um mundo sem a valorização do mérito seria um mundo em que aqueles com talentos especiais não se sentiriam motivados a colocar seus talentos a serviço da humanidade. É a premiação do mérito pessoal que faz com que a humanidade progrida. São os melhores dentre nós que puxam a humanidade para cima. Procurar ser o melhor dentro das suas condições iniciais é o que chamamos de meritocracia.

Encerro com a mais antiga história de meritocracia que conheço: a parábola dos talentos. Jesus conta de um administrador que, para testar seus três empregados, lhes concede cinco, duas e uma moeda. Os que receberam cinco e duas moedas negociaram e obtiveram outras cinco e duas moedas, dobrando a sua riqueza. Já o que recebeu uma moeda a enterrou. O administrador não ficou pau da vida porque o que recebeu menos tinha menos. Sua irritação derivou do fato de que aquele que havia recebido menos não havia colocado seus poucos talentos para trabalhar. A quantidade inicial de moedas não está sob controle das pessoas, mas o que fazemos com elas, sim. Essa é a definição de meritocracia.

Eu gostaria de ter escrito esse texto


Pare e pense: você seria capaz de viver com R$ 387,07 por mês?

Duro, não?

Mas acredite: há 52 milhões de brasileiros sobrevivendo com essa quantia por aqui. Se nós colocássemos todas essas pessoas numa ilha, ela seria mais habitada que o Canadá e a Espanha.

E R$ 220? Impossível?

Segundo o IBGE, há outros 24,8 milhões de brasileiros vivendo com ainda menos do que isso. Incríveis 12,1% da população.

Se você não tem muita dimensão do que isso significa, eu desenho: há uma Austrália vivendo no Brasil com dinheiro suficiente no mês apenas para abastecer um carro com 52 litros de gasolina, ou adquirir 14 Big Macs, ou ainda conseguir pagar a metade de uma cesta básica. E mais nada.

E tem gente em situação ainda pior. Outros 4,4 milhões de brasileiros – o equivalente a uma Croácia – se viram como podem todos os meses com o mesmo que dois ingressos de cinema: R$ 73.

Se você ainda tinha alguma dúvida é a hora do fim da inocência. Nós indiscutivelmente não somos um país rico – dos brasileiros que trabalham, metade recebe menos que um salário mínimo por mês.

É uma vida do cão. E nas piores condições.

São quase 100 milhões de pessoas (mais do que a população da Coreia do Sul e da Argentina somadas) sem coleta de esgoto, 17 milhões (uma Holanda) sem acesso à coleta de lixo e outras 4 milhões (mais que um Panamá) sem um mísero banheiro em casa.

Eu não faço ideia de quem você seja, mas a sua situação é certamente melhor do que essa. Só por estar lendo este texto tenho certeza que o seu futuro é mais promissor que o de 50 milhões de brasileiros analfabetos ou analfabetos funcionais que não seriam capazes disso.

Também sei que você é mais rico que 35% da população sem qualquer conexão à internet.

Com um salário de R$ 1.500 por mês você ganha mais que 84% dos baianos. Com R$ 2 mil você está melhor que 91% dos maranhenses. Com R$ 2.500 você está acima de 86% dos mineiros. Com R$ 3.500 você está na lista dos 10% com os maiores salários do Brasil.

E o pior: você provavelmente nem sabia disso.

9 em cada 10 brasileiros acham que estão na metade mais pobre do país. Nós somos tão ignorantes a respeito da nossa condição socioeconômica que 68% dos brasileiros que ganham ao menos R$ 4.700 por mês – ou seja, entre os 7% mais ricos do país – acham que estão na parte de baixo da pirâmide social.

E antes que me esqueça – nós evidentemente somos um país com diferenças salariais abissais entre a imensa maioria da população e uma pequena parcela de brasileiros que recebem bem acima desses valores.

Mas não é como se dividir o dinheiro de todo mundo de forma igual fosse uma opção. Primeiro porque esse dinheiro dividido não resolveria a vida de ninguém – a renda domiciliar per capita no Brasil é de R$ 1.268.

Segundo porque essa tentativa já foi realizada em mais de vinte países no século passado e resultou apenas em fuga em massa, desemprego, baixa produtividade, escassez de produtos básicos e violência generalizada.

A grana iria secar rápido.

Como resolver? Não tem outro jeito: aumentando a nossa produtividade.

E eu sei que isso soa economês castiço, mas é bem mais simples do que parece.

A produtividade geral do trabalho no Brasil está entre as mais baixas do mundo: US$ 19,52 por pessoa empregada por hora. A média dos países analisados pelo International Institute for Management Development é de US$ 40,54.

Ou seja: se colocar um brasileiro e um gringo para produzir um prego, eles produzirão o dobro da gente no mesmo espaço de tempo. Nós seremos humilhantemente derrotados.

E não será por acaso.

A nossa educação é pior que a deles. A nossa infraestrutura também. Mas especialmente: as nossas leis são as mais estúpidas do mundo.

Neste momento, cada empresa brasileira segue uma média de 3.796 normas tributárias, com mais de 11 milhões de palavras – o correspondente a quase 6 quilômetros de normas para cada uma delas; uma fila interminável de papel.

Literalmente não há nenhum outro lugar do planeta onde isso aconteça.

Segundo o Banco Mundial, nós estamos apenas na posição 109 no ranking de facilidade de fazer negócios – atrás de Zâmbia, Tonga, Guatemala e Namíbia.

Tudo isso bloqueia a nossa produção de riqueza. E essa não deveria ser uma posição ideológica: o maior programa social é o crescimento econômico. Mesmo os defensores de uma maior presença do Estado na vida das pessoas deveriam entender que a única maneira de construir bem-estar social sustentável é destravando os mecanismos capazes de aumentar a renda média da população.

Não existe milagre.

Passou da hora de medir riqueza pela sua régua. Você vive numa bolha de classe média. Tem gente lá fora sofrendo de verdade. Gente suja, ignorante e mal paga, abandonada por instituições com cada vez menos poder de proteção.

Essas pessoas deveriam ser a prioridade do país. É no colo delas que cai cada tragédia.

E aqui, só entre nós: redistribuição de renda não resolverá os nossos problemas. O esgoto neste país é muito mais baixo. E ele fede muito menos na sua casa.

Rodrigo da Silva, editor do Spotniks