O Ministério da Verdade A Secretaria de Comunicação do governo, está fazendo uma campanha para lavar a reputação do governo Bolsonaro no tocante às vacinas. Trata-se de um contra-ataque à mídia esquerdista que insiste em denegrir tudo o que este governo faz.
Sabemos que a forma mais insidiosa de se contar uma mentira é dizer uma meia-verdade. Veremos que tudo o que a SeCom disse é verdade. Mas veremos também que faltou muita coisa para que TODA a verdade fosse contada. Contar toda a verdade é o que procuraremos fazer nesse artigo.
Para tanto, antes de analisar a história contada pela SeCom, vou abordar dois aspectos que, a meu ver, contribuíram de maneira relevante para a percepção da opinião pública a respeito da postura anti-vacina do governo: a insistência nos conceitos de segurança e não-obrigatoriedade. Logo em seguida, destrincharemos a história contada pela SeCom.
Segurança
O tema da segurança das vacinas esteve presente nos debates desde o início. Ao lado do tema da obrigatoriedade, esse tema da segurança da vacina constitui a própria essência do boicote. Explico.
É somente óbvio ululante que toda e qualquer vacina (assim como todo e qualquer remédio) somente vem a público depois que sua segurança foi avaliada e comprovada pelos órgãos competentes. A insistência nesse ponto óbvio transmite o conceito justo contrário: forma-se a ideia de que se trata de algo muito perigoso, que vai ser analisado com muito cuidado.
Tão tarde quanto dezembro do ano passado, o presidente ainda usa essa ideia para justificar o atraso brasileiro na busca pelas vacinas:
Ficou famosa a declaração do “virar jacaré”, feita em evento no dia 17/12/2020:
Observe como está por traz o conceito de perigo, de coisa que pode causar mal. Quando a Anvisa aprova um medicamento ou uma vacina, não está afirmando que não possa causar reações adversas, mas que essas reações adversas são suportáveis pelo benefício gerado pelo remédio/vacina. A palavra de um presidente da República tem peso e, nesse caso, está sendo usada para disseminar o temor na população.
Esta questão da falta de segurança é o principal motivo pelo qual as campanhas de vacinação têm perdido adesão no mundo inteiro. No dia 17/10/2020, por exemplo, o Ministério da Saúde patrocinou o chamado Dia “D” de mobilização nacional pela vacinação. Em comunicado do ministério, o secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Medeiros, declarou o seguinte:
“A campanha procura ampliar as coberturas vacinais, resgatar o sentimento de segurança dos pais e responsáveis em relação à vacinação dos filhos e desmitificar as fake news.” (grifos meus).
Escusado dizer que, neste comunicado do Ministério, não há qualquer menção à “não obrigatoriedade” da vacinação.
Os grupos anti-vax espalham e acreditam em todo tipo de boato para desacreditar a segurança das vacinas. Não à toa, grande parte dos comentários nas redes refere-se à segurança das vacinas. Fiz um compilado rápido com alguns comentários mais recentes:
Alguns poderão dizer que isso não passa de folclore, que são coisas tão absurdas que a maioria das pessoas não acredita. Não é bem assim. Pesquisa recente feita pelo Instituto Locomotiva em favelas mostra que esse tipo de “informação” tem a sua repercussão e influência.
Mas, alguns dizem, Bolsonaro não tem nada a ver com isso, ele só está preocupado com a segurança da população. Pois então, há uma linha tênue entre preocupação e sabotagem. Coincidentemente, todas essas reservas em relação às vacinas prevalecem nas redes bolsonaristas e são repercutidas por simpatizantes do presidente. Pode até haver exceções, mas que apenas confirmam a regra de fácil comprovação.
O fato é que a insistência na segurança das vacinas emite o sinal inverso. O mantra “precisa provar antes que é segura” é uma obviedade que, repetida ad nauseam, levanta justamente a desconfiança de que as vacinas não são seguras. Tanto é assim que a aprovação da Anvisa pouco fez para convencer as pessoas de que a vacina é segura. No final, o que vale é o “inception” levado a cabo por meses de campanha de desconfiança.
A situação só fez piorar com a insistência na “não-obrigatoriedade” da vacina.
Obrigatoriedade
No dia 06/02/2020, duas semanas antes da confirmação do primeiro caso de Covid-19 em território brasileiro, o governo Bolsonaro promulgou a lei 13.979, com a seguinte redação:
Portanto, está previsto em lei que as autoridades (entende-se quaisquer autoridades no âmbito de sua jurisdição) poderão (não deverão) determinar vacinação compulsória. Trata-se, portanto, de uma faculdade legal.
No dia 31/08/2020, uma admiradora pede a Bolsonaro que não permita “esse negócio de vacina”, por ser muito perigoso. O presidente, então, responde com o que seria, a partir de então, o mote do governo: “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”. É a primeira vez que este assunto vem à baila publicamente no Brasil, e o governo Bolsonaro vê aí a chance de, novamente, reforçar a sua agenda ideológica.
No dia seguinte, 01/09/2020, a SeCom publica o seguinte post nas redes sociais:
O que poderia ser apenas uma resposta improvisada no “cercadinho” do Palácio do Planalto, tornou-se política de governo. Cheguei a comentar sobre este post na época:
“Sim, é verdade, ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina. Nem por isso o governo deveria usar o seu poder de comunicação para vender a ideia de que se trata de uma opção como outra qualquer. Não é. Trata-se de saúde pública. A sua doença vai me afetar, pois será um a mais ocupando um leito hospitalar e alguém a menos para produzir para o país. O governo não precisa obrigar, mas tem o dever de estimular. Mensagens como essa têm o efeito contrário.
Até entendo que essa mensagem vem em resposta a uma pressão para tornar a vacina obrigatória. Mas, com o objetivo de rechaçar uma indevida intromissão nas liberdades individuais, o governo joga o seu peso institucional na direção inversa, quase uma mensagem de boicote. E isso é grave quando parte da autoridade constituída.”
A partir desse momento, toda a comunicação do Ministério da Saúde a respeito da vacinação contra a Covid-19 vem acompanhada com o mantra da não obrigatoriedade. Por exemplo, no comunicado sobre a intenção de compra da Coronavac, em 20/10/2020, está lá a frase: “o Governo Federal oferecerá a vacinação de forma segura, mas não recomendará sua obrigatoriedade aos gestores locais – respeitando o direito individual de cada brasileiro”. No comunicado do dia seguinte, temos: “Quando qualquer vacina estiver disponível, […] ela será oferecida aos brasileiros por meio do PNI e, no que depender desta Pasta, não será obrigatória”.
Em discurso no dia 06/01/2021, o então ministro Pazuello insiste no mantra:
Isso é interessante, porque o Ministério da Saúde patrocina muitas campanhas de vacinação e, em nenhuma delas, existe a observação da “não obrigatoriedade”. Por exemplo, o cartaz abaixo, fazendo a campanha para a vacinação contra a gripe, traz a frase “tem que vacinar”, uma mensagem oposta ao “a vacina não é obrigatória”. Observe que “tem que vacinar” não significa “a vacinação é obrigatória”, mas traz uma mensagem de urgência adequada ao problema.
A própria SeCom, como podemos ver em um dos posts da thread dedicada à lavagem de reputações, coloca a “não obrigatoriedade” como uma virtude do presidente, não percebendo a contradição em termos que isso significa:
Se a Secretaria de Comunicação, que, em tese, deveria entender de comunicação, não consegue sacar que insistir na “não obrigatoriedade” é equivalente a colocar uma névoa de dúvida em torno das vacinas, então entende-se por que esse governo está perdido nesse ponto. Para deixar a coisa mais clara, talvez o vídeo abaixo ajude a convencer que a insistência na “não obrigatoriedade” equivale, na prática, a negar a vacina:
A história da Secretaria de Comunicação
O foco da thread da Secretaria da Comunicação no Twitter é o cronograma de compra das vacinas. Afinal, independentemente de intenções ou sugestões subliminares, o fato é que o governo trabalhou para trazer vacinas para os brasileiros. Pelo menos, é sobre isso que querem nos convencer. O problema, como veremos, é que uma mistura de ideologia, luta política e incompetência atrasou a aquisição de vacinas pelo governo brasileiro. Vamos fazer um “fact checking” da thread produzida pela SeCOM e verificar se a tese se sustenta.
Esse primeiro tweet é interessante. De fato, mostra uma atenção do presidente ao tema. Mas achei estranho que não tivesse a parte de baixo com as curtidas. Fui verificar, e o tweet completo é o que vai a seguir:
É o então ministro Luiz Henrique Mandetta que faz o anúncio do primeiro teste de uma vacina. É neste ponto que uma mentira se conta através de uma meia-verdade: Mandetta foi escorraçado do governo justamente porque, digamos, sua linha não “casava” com a do presidente. Nesta época, portanto, o governo estava ainda em sua fase “científica”. Colocar Mandetta na thread comprometeria a narrativa. E o Ministério da Verdade a Secretaria da Comunicação está lá justamente para isso: eliminar da história os novos inimigos do povo.
O próximo tweet da thread fala sobre uma pesquisa da Fiocruz:
Trata-se do desenvolvimento de uma vacina brasileira. A iniciativa é bacana e tals, mas é pouco prática do ponto de vista que interessa: disponibilizar vacinas o mais rapidamente possível. Ou alguém acha que um laboratório federal brasileiro poderia competir com as grandes indústrias farmacêuticas globais? O depoimento do coordenador do estudo, Ricardo Gazzinelli, que reproduzo abaixo, é claro a respeito:
“Gazzinelli ressalta que, embora as atividades já estejam em andamento, o desenvolvimento de uma vacina leva tempo. Em situações de calamidade pública, como a atual, em que as decisões relacionadas a financiamento são mais céleres, é possível chegar a resultados em torno de dois anos a três anos.” (grifo meus)
Lembrando que, em 03/04/2020, Luiz Henrique Mandetta ainda era o ministro da saúde. Sigamos.
Vamos ao próximo tweet da thread:
Note que o nome do ministro não foi citado. Era Nelson Teich, que mal esquentou a cadeira de ministro da Saúde. O governo Bolsonaro ainda tentava passar a ideia de contar com um ministério técnico. De qualquer modo, não há especificação de quais laboratórios estariam sendo contatados. A repercussão que o presidente deu ao “fato” (que não foi reproduzida pela SeCom pelo óbvio motivo de não relembrar que estamos no 4º ministro da saúde desde o início da pandemia) está reproduzida abaixo:
Fica o desafio de entender que raios significa “assim que o mapeamento for detectado”. Sigamos.
O próximo tweet, agora já com o então “ministro interino” Pazuello (a partir de agora a SeCom não precisa mais esconder o ministro da Saúde), mostra a boa intenção do governo. Mas, como sabemos, de boas intenções o inferno está cheio. Declarações de boas disposições não enchem a barriga e nem tiram vacina do nada.
Em seguida vem dois tweets anunciando a aprovação de estudos clínicos com a vacina produzida pela AstraZeneca:
A frase “colocou o Brasil entre as primeiras nações a buscar a vacina contra o coronavírus” é, para dizer o mínimo, imprecisa. O Brasil não foi “buscar uma vacina”. Na verdade, o Brasil foi “buscado” como campo de provas, por ter, na época do desenvolvimento (início de junho), um dos maiores índices de transmissão do mundo. Na época, o país era o líder global em número de casos e óbitos, a exemplo do que está ocorrendo neste momento. Não à toa, Sinovac, Pfizer e Jansen solicitaram e receberam aprovação para testes no país nos dois meses seguintes.
O próximo tweet trata de mais uma possibilidade distante: o início da fase pré-clínica de uma vacina nacional. Lembrando que, depois desta fase, a candidata à vacina precisa ainda passar pelas fases clínicas 1, 2 e 3. Não à toa, a matéria fala em registro somente em algum momento de 2022. São meritórias essas iniciativas, sem dúvida, mas estão na thread da SeCom só para passar a impressão, para o leitor menos atento ou mais engajado, que o governo estava sim fazendo alguma coisa.
A seguir, temos, finalmente, os primeiros tweets relevantes para o objetivo que nos importa: a obtenção de vacinas rapidamente.
Em 27/06/2020, o governo anuncia a parceria com a AstraZeneca para a compra de vacinas do laboratório e produção de vacinas pela Fiocruz. De toda a thread, este é, de longe, o fato mais relevante. Além de fechar a compra de 100 milhões de doses, prevê a transferência de tecnologia, o que é muito positivo. Mas o interessante é o seguinte trecho do comunicado do Ministério da Saúde:
“O acordo tem duas etapas. Começa com uma encomenda em que o Brasil assume também os riscos da pesquisa. Ou seja, será paga pela tecnologia mesmo não tendo os resultados dos ensaios clínicos finais. Em uma segunda fase, caso a vacina se mostre eficaz e segura, será ampliada a compra.
Nessa fase inicial, de risco assumido, serão 30,4 milhões de doses da vacina, no valor total de US$ 127 milhões, incluídos os custos de transferência da tecnologia e do processo produtivo da Fiocruz, estimados em US$ 30 milhões. Os dois lotes a serem disponibilizados à Fiocruz, de 15,2 milhões de doses cada, deverão ser entregues em dezembro de 2020 e janeiro de 2021.
O governo federal considera que esse risco de pesquisa e produção é necessário devido a urgência pela busca de uma solução efetiva para manutenção da saúde pública e segurança para a retomada do crescimento brasileiro.” (grifos meus)
Guarde essa informação: nessa parceria com a AstraZeneca, o governo brasileiro acha plenamente aceitável comprar um lote de vacinas que sequer foram testadas, quanto mais aprovadas pela Anvisa. Voltaremos a este ponto oportunamente.
A seguir, temos um tweet informando sobre a assinatura de uma Medida Provisória liberando US$1,9 bilhões para a produção e aquisição de vacinas.
Ou seja, no início de agosto o governo Bolsonaro separou R$ 1,9 bilhões do orçamento para comprar e produzir 100 milhões de doses da AstraZeneca. Lembrando sempre que esta vacina, assim como todas as outras até aquele momento, não contava com aprovação da Anvisa.
Neste momento interrompo a análise da thread da SeCom para mostrar algumas cenas de bastidores. Ao mesmo tempo em que a SeCom descreve um governo campeão na busca pelas vacinas assinando um grande acordo com a AstraZeneca, um outro grande laboratório global tentava também fechar um acordo com o governo brasileiro.
Os diretores locais da Pfizer, certamente animados com a perspectiva de garantirem fornecimento para um grande mercado consumidor como o brasileiro, começaram a conversar com o Ministério da Saúde. Testes clínicos na Fase 3 haviam sido aprovados pela Anvisa para a sua vacina em 21/07/2020, e a aprovação do acordo com a AstraZeneca no início de agosto com certeza despertou a óbvia possibilidade de negócio com o governo brasileiro. Afinal, 100 milhões de doses do acordo com o laboratório britânico não davam nem para o início em um país como o Brasil, e certamente o governo estaria atrás de outros acordos.
No entanto, aparentemente, não era bem assim. Soubemos depois (no final de janeiro) que o CEO mundial da Pfizer escreveu uma carta pessoal para o presidente Jair Bolsonaro, que reproduzo a seguir:
No terceiro parágrafo da carta, o CEO global da Pfizer afirma: “Minha equipe no Brasil se reuniu com representantes de seus Ministérios da Saúde e da Economia, bem como com a Embaixada do Brasil nos Estados Unidos. Apresentamos uma proposta ao Ministério da Saúde do Brasil para fornecer nossa potencial vacina […], mas até o momento não recebemos uma resposta”. (grifo meu)
Trabalho em uma multinacional que é uma fração do tamanho da Pfizer. Em qualquer multinacional, e quanto maior mais essa regra é verdadeira, leva-se para o CEO somente os problemas que não têm realmente solução. Afinal, estamos ali para resolver problemas, não para levar problemas. Para que o presidente da subsidiária brasileira tivesse reconhecido seu fracasso diante do CEO global nas tratativas com o governo brasileiro, é que deve ter tentado MUITO, sem sucesso.
Um ponto da carta chamou-me a atenção: a ênfase no negócio fechado com o governo americano, então ainda liderado por Donald Trump. Observe que o CEO cita acordos com vários países, mas cita nominalmente somente o presidente dos EUA. O objetivo parece-me claro: Bolsonaro venerava Donald Trump, e seu aval serviria para mitigar eventuais resistências. Afinal, se Trump aprovou é que deve ser bom.
Ledo engano. A carta, assim como as tentativas anteriores, ficou sem resposta. Difícil de entender por quê. Quando a carta veio à tona, o governo brasileiro tentou explicar, em nota oficial, porque não fechou acordo com a Pfizer. Os motivos seriam os seguintes:
- Seriam poucas doses disponíveis (2 milhões de doses no primeiro trimestre)
- Cláusulas leoninas, como ativos brasileiros no exterior como parte do pagamento e foro em Nova York para eventuais disputas
- Isenção do laboratório em relação a quaisquer efeitos colaterais provocados pela vacina
- Dificuldade de logística (a solução da caixa térmica somente seria apresentada em novembro, segundo o Ministério)
Com relação às doses disponíveis, a AstraZeneca, até o momento (final do 1o trimestre), entregou 5 milhões de doses no Brasil, não muito diferente das supostas duas milhões prometidas pela Pfizer. Digo supostas porque no Reino Unido, terra da AstraZeneca, a Pfizer entregou 1,2 milhões de doses já em 2020, de um contrato total de 40 milhões de doses. Fica difícil de acreditar que teriam entregue apenas duas milhões de doses para o Brasil em todo o 1º trimestre.
Com relação às cláusulas leoninas, é fácil entender por que uma multinacional exige garantias de pagamento de um governo como o brasileiro. Aliás, essas cláusulas devem existir em todos os contratos com governos de países, digamos, bananeiros.
Com relação à cláusula de isenção de responsabilidade, difícil acreditar que essa mesma cláusula não constasse dos contratos assinados com outros países. Se a agência reguladora de um país certificou a segurança da vacina, essa cláusula serve para proteger a empresa de processos relacionados a efeitos de longo prazo que dificilmente podem ser correlacionados com a vacina. Afinal, processos desse tipo podem quebrar uma empresa. Ademais, a empresa tinha a faca e o queijo na mão, era assinar com a cláusula ou ficar sem a vacina.
Aliás, não ficou claro se essas cláusulas não constam mais do contrato que foi assinado pelo Ministério da Saúde para o fornecimento de 70 milhões de doses do laboratório norte-americano. Na nota em que o ministério informa sobra a conclusão das negociações, não há menção a essas cláusulas, mas duvido muito que a empresa as tenha retirado. A não menção a algo tão fundamental, por parte do Ministério da Saúde, parece-me ser a confirmação dessa tese.
Por fim, as dificuldades de logística não me parecem suficientes para não fechar um contrato de fornecimento. Estas vacinas poderiam ser usadas nas grandes metrópoles, onde o armazenamento mais complicado poderia ser realizado, enquanto as vacinas da AstraZeneca seriam distribuídas em lugares onde o armazenamento seria menos complexo.
Enfim, a história não contada pelo thread da SeCom escancara a incompetência ou a desídia do governo na contratação de vacinas. Não custa lembrar que a primeira vacina a ser aplicada no mundo foi da Pfizer:
Voltemos à thread da Secretaria de Comunicação. O próximo tweet fala dos testes que estão sendo levados a cabo no Brasil (onde lê-se “junho de 2020” leia-se “agosto de 2020”):
Como se a mera autorização para conduzir testes no Brasil significasse algum esforço do governo para adquirir vacinas, o que já constatamos estar longe da realidade.
Os próximos dois tweets abordam a adesão do Brasil ao consórcio Covax:
Em primeiro lugar, um esclarecimento: a iniciativa Covax é um dos quatro pilares de uma iniciativa mais ampla chamada ACT-Accelerator. Esta iniciativa está no âmbito da OMS e foi lançada em um evento em abril, cujos anfitriões foram o presidente da OMS, o presidente da França, Emmanuel Macron e a Fundação Bill & Melinda Gates. Não deixa de ser curioso que o governo Bolsonaro tenha aderido a um grupo que transpira globalismo pelos poros. Não contaram ainda para os fãs do Olavo de Carvalho o que o governo Bolsonaro anda fazendo…
Em segundo lugar, não houve “reconhecimento à postura criteriosa e comprometida do Brasil” coisa nenhuma. Como podemos ver na tabela abaixo, com os membros do conselho do ACT-accelerator, o Brasil foi convidado por ser um “market shaper”, ou seja, faz parte de um grupo de países grandes que fazem diferença em suas regiões. Pelo seu tamanho, o Brasil seria convidado qualquer que fosse o governo.
Por fim, a adesão ao Covax e o desembolso de R$ 2,5 bilhões em vacinas ainda não aprovadas pela Anvisa mostram mais uma vez que o governo Bolsonaro não hesita em comprar vacinas sem a devida aprovação (vacinas que nem existiam à época!) quando avalia que esta é a melhor decisão. A adesão à Covax é como aquelas vaquinhas de escritório para comprar presente: não dá para não participar. Praticamente todos os países do mundo estão participando. Pelo menos, foi útil para a narrativa do comprometimento do governo com o esforço global de vacinação no mundo.
O próximo tweet da thread já vimos na seção sobre “não obrigatoriedade”:
Mas é o próximo tweet que nos interessa, não pelo que ele diz, mas, como sempre, pelo que não diz:
A notícia completa está aqui:
A afirmação de que esta foi a notícia que criou a narrativa do governo anti-vacina é um acinte à inteligência do leitor. Em primeiro lugar porque já havia todo um precedente, descrito no início deste artigo, de mal disfarçada prevenção contra a vacina, traduzida na insistência sobre a segurança e a não obrigatoriedade das vacinas.
Mas, o principal está na data da notícia: 21/10/2020, dia em que o governo Bolsonaro esnobou a vacina do seu arqui-rival, João Doria:
Vamos voltar um pouco no tempo, mais precisamente um dia. No dia 20/10/2020, o ministro da Saúde havia se reunido com os 27 governadores dos estados e DF (note a presença maciça, não há como dizer que foi algo improvisado). Dessa reunião resultou uma nota oficial do ministério. Destaquei os trechos mais importantes para entender o que foi escrito.
Em primeiro lugar, tratava-se de um protocolo de intenção para possível aquisição. Por que isso? Porque, obviamente, qualquer aquisição depende de a Anvisa assegurar a segurança e a eficácia da vacina. É o que está escrito neste comunicado: “é importante ressaltar que elas devem ser liberadas pela Anvisa e ter eficácia e segurança garantida”. Note o “elas” na frase, referindo-se às vacinas do Butantan e também da AstraZeneca. As duas vacinas são colocadas lado a lado – ambas estão em Fase 3, ambas precisam de aprovação, ambas são somadas para se chegar ao total de vacinas disponíveis. A única diferença entre essas duas vacinas (e que não está escrito nesse comunicado) é que o Governo Federal, como vimos, colocou dinheiro no desenvolvimento da vacina da AstraZeneca, enquanto foi o governo de São Paulo que colocou dinheiro no desenvolvimento da vacina da Sinovac. De resto, o paralelo entre as duas vacinas é o que salta aos olhos neste comunicado. Como cereja do bolo, temos a frase “não descarta novas aquisições”, deixando claro, para quem ainda tinha alguma dúvida, de que de aquisição é que se trata, sujeito, claro, à aprovação da Anvisa.
Depois do piti do presidente, o Ministério da Saúde soltou um “esclarecimento”, que reproduzo abaixo:
O contorcionismo verbal é evidente. A “nota de esclarecimento” somente repete o que foi afirmado na nota original: que as vacinas do Butantan serão adquiridas se forem aprovadas pela Anvisa. Esta é a essência do tal “protocolo de intenções”. Ninguém entendeu que a pasta tenha “aprovado” a vacina. Aliás, este expediente é manjado: atribuir ao seu interlocutor algo que ele não falou e negar veementemente.
Dizer que “não houve compromisso […] no sentido de aquisição de vacinas”, mas apenas um “protocolo de intenção” de aquisição é apenas uma malandragem. A nota original, como vimos, é clara sobre a intenção de aquisição, desde que tenha todas as aprovações sanitárias necessárias. Trocar a palavra “intenção” por “compromisso” é somente mais um subterfúgio para confundir algo simples: o ministério da Saúde não somente agregou as vacinas da Sinovac ao montante prometido de vacinas, como comemorou o feito em sua nota original. A aprovação pela Anvisa (e, portanto, a efetiva aquisição das vacinas) é algo que vale tanto para a Sinovac quanto para a AstraZeneca.
O único ponto que fugiu ao estilo somebodylove que marca essa nota de esclarecimento é a “não intenção de comprar vacinas chinesas”. Aliás, é exatamente isso que está escrito no tweet do presidente: “minha decisão é de não adquirir a referida vacina”. Como vimos, menos de três meses depois as vacinas chinesas foram as primeiras a serem distribuídas aos brasileiros.
Obviamente, a thread elaborada pelo Ministério da Verdade pela SeCom não faz menção a essa história. Prefere acusar a imprensa de manipular as falas presidenciais, como se todo esse affair da “vacina chinesa” não tivesse influenciado a opinião pública. Como se essa história simplesmente não existisse.
Aliás, é interessante como o governo, através da SeCom, age como se nada disso tivesse acontecido. No último dia 23/03, a SeCom publicou o seguinte tweet:
Nem vou entrar no mérito da comparação em números absolutos, e não em proporção de sua população. O ponto aqui é outro: dessas 14,12 milhões de doses administradas até o dia 22/03, nada menos do que 84% eram da “vacina chinesa do Doria”. Se fosse depender somente dos acordos fechados pelo governo “pró-vacina”, o país teria administrado algo como 2,5 milhões de doses, o que o colocaria lá na rabeira desse ranking, bem atrás de outros países muito menos populosos.
Concluindo
A postura anti-vacina do governo Bolsonaro foi construída de modo quase subliminar, através da ênfase no binômio segurança e não-obrigatoriedade. Segurança é um aspecto obviamente importante e não se trata de minimizá-la. Mas a insistência em chamar a atenção para este ponto, aliada à ênfase com relação à não-obrigatoriedade (conceito prima-irmã da desconfiança com relação à segurança), pavimentou a percepção da opinião pública. É excesso de polêmica para algo tão óbvio quanto uma vacina.
Para piorar, o governo Bolsonaro, seja porque tenha sido levado pelos seus vieses ideológicos, seja por pura incompetência, claramente ficou para trás na corrida pelas vacinas. Apostou todas as fichas em um acordo com a AstraZeneca e desprezou outras oportunidades que surgiram ao longo do caminho. Além disso, como vimos, entrou em uma querela política na qual não tinha nada a ganhar, a não ser agradar o seu eleitorado mais fiel.
A SeCom tenta reescrever a história, e nos conta as glórias de um governo campeão da vacinação. Assim é se assim lhe parece.