Um Collor argentino?

Há oito anos, Maurício Macri derrotava Daniel Scioli em uma eleição apertada, 51,7% contra 48,3% dos votos. Macri dava fim, assim, a 12 anos da era Kirshnerista no poder. Pró-mercado, Macri era a esperança da volta de alguma racionalidade macroeconômica ao país. Quatro anos depois, Macri perderia as eleições já no primeiro turno para o kirshnerista Alberto Fernandez, com Cristina Kirshner de vice. Macri, ao contrário de todas as promessas, entregou um país com inflação maior e com um pacote giganteesco do FMI, o maior da história da instituição. A estratégia gradualista de Macri não funcionou.

Loco Milei promete que, se eleito, não vai cair nos mesmos erros de Macri. Entrará com os dois pés no peito do Estado argentino, sem chance de reação. Lembra-me um pouco Fernando Collor, que dizia que iria acabar com os “marajás do serviço público” e tinha uma única bala para matar o dragão da inflação. Não era só retórica: Collor protagonizou o maior calote da dívida pública da história ao promulgar o confisco. Apesar de, do ponto de vista microeconômico, o governo Collor tivesse deixado um legado positivo, com as privatizações e a abertura comercial, do ponto de vista macroeconômico foi um desastre, com o seu calote nos assombrando até hoje. Não fosse o impeachment, certamente perderia as eleições de 1994.

A eleição de Massa, por outro lado, promete ser um pouco mais do mesmo, como se isso fosse resolver alguma coisa. A verdade é que a equação macroeconômica argentina não tem solução, a não ser através de um ajuste profundo do Estado, que deixará muitas viúvas pelo caminho. A estratégia Macri não deu certo, a estratégia Fernandez-Kirshner muito menos. A estratégia Milei ainda não conhecemos. Mas, pelo menos, será algo diferente. Só espero que não termine como Collor.

(este post foi escrito antes de conhecido o resultado das eleições, que deu a vitória a Milei)

Sergio Massa será o próximo presidente da Argentina

Sergio Massa será o próximo presidente da Argentina. De onde concluí isso? Comparando os resultados das primárias com os resultados do 1o turno.

A chave ideológica nos levaria a dizer que Javier Milei tem grandes chances no 2o turno. Afinal, sendo de direita, Milei seria capaz de atrair a maior parte dos votos de Patrícia Bullrich. Somando os votos de Milei e Bullrich no 1o turno, temos 53,9% dos votos válidos, mais do que suficiente para que o candidato “anarcocapitalista” seja eleito. Para ser mais exato, Milei precisaria atrair 60% dos votos de Bullrich e dos outros candidatos para ser eleito. Não parece ser algo difícil, considerando o estado atual da economia argentina. Mas…

Mas não é isso o que a evolução do voto entre as primárias e o 1o turno nos diz. Vejamos.

Primárias:

  • Milei: 30,0%
  • Massa: 27,3%
  • Bullrich: 28,3%
  • Outros: 14,4%
  • Comparecimento: 69%

1o turno (número entre parêntesis é a variação para as primárias):

  • Milei: 30,0% (zero)
  • Massa: 36,5% (+9,2%)
  • Bullrich: 23,9% (-4,4%)
  • Outros: 9,6% (-4,8%)
  • Comparecimento: 78%

Ou seja, os votos de Bullrich (e dos outros candidatos) migraram para Massa, não para Milei. Os argentinos que expliquem esse comportamento, mas foi isso o que aconteceu. O comparecimento maior indica que os novos votantes escolheram preferencialmente Massa, o que também não é boa notícia para Milei.

Se esse mesmo padrão de migração de votos de Bullrich e os outros candidatos se repetir do 1o para o 2o turnos, Massa deveria se eleger até com certa folga. Mas ainda tem muita campanha pela frente.

O poderoso exemplo da Argentina

Nenhum governador brasileiro visitou Lula tantas vezes quanto o presidente da Argentina, Alberto Fernandez. Ontem, foi a vez de seu ministro da Economia, Sérgio Massa, na quinta visita de alto nível ao País de um dignatário argentino em 8 meses.

Dessa vez, Massa não saiu de mãos abanando. Obteve uma linha de financiamento às exportações no valor de 600 milhões de dólares, que será garantida pelo Banco do Brasil, que, por sua vez, será garantida pelo CAF – Cooperação Andina de Fomento, uma espécie de BNDES da América do Sul.

O curioso é que esse acordo só foi possível porque a Argentina concluiu a sexta revisão do seu acordo com o FMI, o que permitiu o desembolso, por parte do Fundo, de uma parcela de US$ 7,5 bilhões, dinheiro esse que serviu para quitar parcelas de dívidas com a própria CAF, além de China e Qatar. E o CAF havia emprestado o dinheiro para que a Argentina quitasse parcela da dívida que tinha com o próprio FMI. Ou seja, a Argentina está naquela fase de pagar o saldo do cheque especial de um banco entrando no cheque especial de outro banco.

As reservas da Argentina estão negativas. O que significa que, descontando o empréstimo do FMI e a linha de swap cambial com a China, o governo da Argentina está sem dólares para pagar por importações ou para servir sua dívida externa. É como se alguém fizesse o supermercado com o saldo do cheque especial.

A última renegociação com o FMI, em meados de 2022, teve condições extremamente brandas, sendo elogiada até por Joseph Stiglitz, um desenvolvimentista acima de qualquer suspeita. Pois bem. Mesmo essas condições não foram cumpridas. Nessa última revisão, a meta de chegar ao fim do ano com reservas líquidas positivas de US$ 3 bilhões foi revisada para zero. Ninguém realmente acredita que mesmo essa condição abrandada será cumprida. E o mesmo ocorre com as metas monetárias e fiscais. A verdade é que o FMI, que deveria ajudar países com problemas conjunturais de liquidez, se meteu com um empréstimo gigante em um país com problemas de solvência sem as mínimas condições políticas de resolvê-los (pausa para um merchã: no meu livro Descomplicando o Economês, explico a diferença entre problema de liquidez e de solvência). Lula, como sempre, usa o FMI como boi de piranha, mas a verdade é que nunca o FMI foi tão generoso com qualquer outro país.

Massa foi recebido por Haddad. Ambos representam um pensamento econômico que levou a Argentina aonde ela está agora. A diferença é que Haddad herdou uma economia construída por FHC e depois consertada por Temer. Se dependesse de Dilma, era só uma questão de tempo para chegarmos aonde a Argentina está hoje. Haddad sabe disso, e por isso diz uma coisa mas faz outra: o Brasil de Lula e Haddad tem uma regra de limite de gastos, manteve a meta de inflação em 3% e reajustou os preços dos combustíveis quando precisou fazê-lo. O exemplo da Argentina é suficientemente poderoso para manter os nossos desenvolvimentistas na linha, ainda que o discurso continue a ser de grêmio estudantil. Como diria Guimarães Rosa, Haddad faz o que faz não por boniteza, mas por precisão. Que seja. Melhor assim do que se deixar convencer pelo próprio discurso.